Wednesday, May 14, 2008

O Caso da Loura Traída - Parte um

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Mais um dia havia se passado. Mais exatamente o 54º dia sem aparecer nenhum caso para resolver, desde que eu abri a agência particular de investigação. Não foi mole pagar aquele cursinho de detetive por correspondência, mas consegui. Fui diplomado com louvor, apesar do ceticismo e da convicção familiar de que era mais uma idéia minha fadada ao fracasso.


Junto com o diploma, recebi um kit de investigação composto por um distintivo, uma lupa, um gravador e um manual que explicava os macetes para iniciar o negócio e atrair os primeiros clientes. Inexperiente nos aspectos mercadológicos da profissão, segui tudo a risca: aluguei uma sala num edifício já um tanto decadente, mas o aluguel era compatível com o meu orçamento. Coloquei uma placa na porta, anunciando o negócio: J. Silva – detetive particular, escrito em letras pretas sobre fundo dourado. Depois de comprar uma escrivaninha, um arquivo e um sofá numa loja de móveis usados, distribui panfletos pela cidade e contratei uma estagiária de segundo grau para a recepção. Contratar estagiários é um ótimo pretexto para explorar o próximo, mas eu não estava em condições de ser escrupuloso. Todavia, a menina estava ansiosa para trabalhar e aceitava o que eu podia pagar. Ana Lúcia era o nome dela, mas preferia ser chamada de Analú.

Bonitinha, simpática e atenciosa, ela logo mostrou que íamos nos dar bem. Só tive uma certa dificuldade em convencê-la a usar sutiã e trocar a camiseta por outra de número maior. Jesus! O que as adolescentes comem hoje em dia? Seja o que for deve estar recheado de hormônios. Quando eu tinha a idade dela não percebia tanta exuberância, ou então era cego.
Por fim, para me garantir de qualquer mal olhado, coloquei um saquinho de sal grosso na gaveta da escrivaninha. Eu não acredito muito nisso, mas a gente nunca sabe...

Além de mim e da Analú, havia mais uma integrante na equipe: era Kafka, uma barata enorme e cascuda, única sobrevivente da dedetização feita no prédio no mês anterior. Manhosa, escapou de todas tentativas que fiz para livrar-me dela e acabou sendo admitida na equipe. Ainda não sei que função devo atribuir a Kafka, mas ela é uma boa ouvinte, e nunca retruca quando leva bronca. Limita-se a mexer suas antenas e olhar-me com aquele ar de superioridade de quem sabe que sobreviverá a uma guerra atômica e eu não.

Bem, os dias se passaram e, apesar do esforço, tudo o que consegui foi investigar o paradeiro de alguns emitentes de cheque sem fundo. O que me levou a um pequeno desvio na atividade da agência: tornei-me um cobrador, o algoz de funcionários públicos relapsos, pequenos comerciantes falidos e vigaristas contumazes. Infelizmente tive que restringir essa atividade, por conta do excesso de zelo na execução das cobranças e algumas divergências com o Código de Defesa dos Consumidores. De qualquer modo, essa atividade paralela não me atraía e servia apenas para pagar as contas mais urgentes. Pagar contas! Se não entrasse algum cliente nos próximos dias, esse seria o único mistério que eu teria para resolver.

Sozinho, no fim de mais um dia sem que o telefone tocasse, tornei a enfiar os boletos bancários vencidos na gaveta e comecei a preparar-me para ir embora. O dia seguinte seria melhor, esperava, já pensando em voltar a vender planos de consórcio ou me empregar como porteiro em algum condomínio. Quando peguei as chaves, alguém bateu a porta. Reprimi a intenção de chamar Analú para atender, ao lembrar que ela já tinha ido embora. Até mesmo Kafka já tinha se retirado para sua fresta favorita. Ouvi novamente a batida e distingui um ritmo já impaciente. Será que era algum cobrador? Se fosse, não deixaria de ser uma ironia, considerando as atividades a que me dediquei ultimamente. 


Enfim, resolvi abrir a porta e botar o importuno prá correr. 
Já estava de saco cheio daquele dia inútil e não seria nada mal encontrar um saco de pancadas. Abri a porta de supetão e, para minha surpresa, não encontrei nenhum cobrador com cara de fuinha. Na minha frente, uma loura espetacular me olhava com a encantadora expressão de “quero colo”. Bom... Na verdade era isso que eu desejava ver, mas ela me fitava levemente irritada e impaciente.
- Detetive J. Silva? – Perguntou, com a voz ligeiramente rouca.
- Ao seu dispor. – Gaguejei, como um idiota, abrindo passagem para ela entrar.
- Tenho um caso para o senhor investigar. - Ela disse com aquela boquinha vermelha, que parecia guardar tantas promessas.
Deus é pai, pensei.




2 comments:

vinícius reis said...

Estou surpreso com a figura do "Kafka" em todo o canto. Você, um homem mais velho, sabe a importância dessa figura. Gostei muito do texto. Muito mesmo. Gostei da barata, sinceramente. haushuahuhsa' Abraço

rascunhos said...

Sou ilustrador, se ainda tiver interresse em uma parceria, me escreva:

www.ronaldmartins.wordpress.com

Contato: ronald.tm16@gmail.com