Friday, March 28, 2014

A Teia da Vida

A teia da vida
Fritjof Capra 
Um novo paradigma  
Resenha

A ideia de olharmos para a realidade, e os fenômenos que a compõe, como uma trama de relações é fascinante. Capra nos apresenta uma forma de compreender a vida, que subverte o senso comum. Leva-nos a outra compreensão da vida, baseada numa cadeia de sistemas e subsistemas que interagem em vários níveis, sendo cada um importante, mas não mais que outro, na totalidade. Essa compreensão se aplica não apenas aos sistemas vivos, no caso da biologia, mas representa também uma nova percepção da realidade, em todos os níveis, desde fenômenos físicos e químicos, como também às instituições sociais, políticas, jurídicas e econômicas.


Nesse sentido, talvez a contribuição mais importante da Teoria Sistêmica — pela urgência que o
assunto requer — seja percebermos as questões ambientais como uma totalidade de uma cadeia de sistemas, delicadamente equilibrada e inter-relacionada. Significa olharmos o planeta  como olhamos um ser vivo. Essa mudança no pensar não é tarefa das mais fáceis, pois significa abrir mão de valores profundamente arraigados em nossa cultura, baseada na acumulação e no consumismo desenfreado. E mais que isso, admitir a ideia de que o planeta é a totalidade  de uma complexa teia viva, significa olharmos para nós mesmos como uma parte (e não a mais importante) desse sistema. Indo mais adiante, talvez percebamos uma nada lisonjeira analogia entre seres humanos e os micro organismos que causam doenças. Seria justo então pensar que o planeta está doente e que, nós, seres humanos, somos os responsáveis por isso. A diferença é que, ao contrário de um vírus, sabemos disso; e ao saber, temos a possibilidade de evitarmos a tragédia final.

Pela teoria sistêmica — no dizer de Capra — as soluções para conter a degradação ambiental é pensarmos que os problemas de nossa época não podem ser entendidos isoladamente. São problemas sistêmicos, interligados e interdependentes. O que significa que a restauração do equilíbrio ambiental passa por mudanças no modo de gerir os recursos naturais, conter a expansão populacional e mudar drasticamente nosso modo de vida, sob o risco de esgotarmos a capacidade da natureza em renovar-se. Nesta visão, extremamente simplista, se oculta a necessidade de implementar-se soluções para problemas que vão do combate à pobreza, distribuição de renda, educação e saúde, que remetem a outras questões de natureza política, jurídica e econômica.

O caminho para as soluções viáveis, segundo o autor, do ponto de vista sistêmico, são soluções “sustentáveis”, que não esgotem os recursos do meio ambiente e não comprometam a manutenção do equilíbrio ecológico em sua totalidade, pondo em risco a própria existência. Isso significa que o próprio homem deve abdicar de sua visão antropocêntrica do mundo em que vive e olhar para além de seu próprio umbigo, para não comprometer as gerações futuras.
A mudança de paradigma, assim preconizada por Capra, implica em alterações profundas na produção e uso do saber. A imagem mental que me ocorre quando penso na teoria sistêmica — e  a complexa rede de relações que nos apresenta — é a Internet, como se apresentava nos seus primórdios, onde cada computador se interligava a outro, sem que algum tivesse um papel predominante nessa teia virtual. A Internet, como funcionava no início, não tinha dono, ignorava fronteiras e driblava sistemas políticos autoritários e as tentativas de controle da informação que ela proporcionava. Sua existência só era possível pelo paradigma que sustenta a teoria sistêmica. Esse mesmo paradigma  traz no seu bojo a ameaça do desconhecido, ao questionar outros conceitos sobre os quais ainda se apoiam a produção do conhecimento, seu controle e uso. Ora, o saber dominante significa poder, e mudanças de paradigmas não são bem vindas pelos que já detém o poder, quando podem significar alterações nas relações de domínio. Entrementes, questões políticas e relações de poder não são os únicos fatores que dificultam a difusão da teoria sistêmica.
 
Adotar uma visão sistêmica significa abrir mão da pretensa e confortável exatidão proporcionada pelo determinismo mecanicista de Descartes e de Newton. São alterações dramáticas no modo de pensar a existência e o papel do homem, que implica, por sua vez, em mudanças radicais em sua relação com o mundo físico e espiritual, revisão de valores morais e éticos e alterações profundas nas relações dos homens entre si e destes com o universo, de modo que a ação do homem na natureza se torne mais integrativa do que afirmação e espoliação.
 
De acordo com a visão sistêmica apresentada por Capra, as propriedades das partes são propriedades do todo, cuja propriedade em si, nenhuma das partes possui, posto que ela surge exatamente da interação entre essas partes. Então, as propriedades que são inerentes ao todo deixam de existir se suas partes são isoladas, seja de modo físico ou teórico. Isso significa  que, na abordagem sistêmica, a propriedade das partes só podem ser perfeitamente entendidas a partir da organização da totalidade, ou seja, de um contexto mais amplo. Assim, a visão sistêmica nos proporciona uma ciência contextual da realidade, em oposição ao pensamento analítico da ciência clássica, que busca isolar as partes do todo, a fim de compreendê-lo.
 
Além do que podemos chamar de pensamento contextual, como descrito acima, há na abordagem sistêmica outro viés de igual importância. Esse outro caminho é o pensamento processual, onde toda estrutura é vista, no dizer de Capra, como processos subjacentes. Essa linha de pensamento confirma a ênfase que se dá à teia de relações e interconexões; como elas se dão e como promovem a interação e tornam-se, então, o objeto do conhecimento.
 
Outra contribuição importante da visão sistêmica é que tanto as propriedades das partes quanto sua interação entre si e com o todo não são estáticas. Existem níveis de complexidade a considerar; o que ocorre em determinado nível pode não existir em outro, como ocorre com as propriedades dos materiais sólidos no nível subatômico, como demonstra a teoria quântica. No dizer de Capra: “partículas subatômicas não são “coisas”,` mas interconexões entre coisas, e estas, por sua vez, são interconexões entre outras coisas, e assim por diante". De acordo com essas afirmações, a natureza se apresenta como uma teia de relações entre as partes de um todo, e não como blocos isolados. É a compreensão dessa teia de relações que desvenda a propriedade do  todo, que é o objeto de conhecimento da visão sistêmica. 
 
Contudo, há vários níveis e sistemas, em cada qual, novas e complexas teias de relações, o que faz da abordagem sistêmica uma busca sem fim e, talvez, seja essa a principal dificuldade para torná-la universalmente aceitável. Em tese, a busca do conhecimento científico sobre determinado aspecto da teia de relações não se esgotaria nunca, pois a cada olhar, o observador poderia se deparar com novos aspectos a considerar, porquanto a sua própria natureza é dinâmica e depende ainda do seu ponto de vista, e o que procura.

Os critérios do pensamento sistêmicos são interdependentes e o foco de sua atenção se dirige para a teia de  interconexões, nas quais identifica os padrões como sendo “objetos”, e essa identificação depende da percepção do observador e do processo do conhecimento, que destaca ainda a mudança do pensamento da ciência objetiva para um pensamento epistêmico, onde os métodos de questionamentos tornam-se parte das teorias científicas. Vale dizer que a abordagem sistêmica vai além do utilitarismo da ciência, e considera as consequências da intervenção do homem nos sistemas com os quais interage. Uma perspectiva interessante, considerando a época em que vivemos, onde o homem se esforça tanto para aumentar sua capacidade de destruição, e que grande parte dos avanços científicos tem finalidade militar e comercial.

Para cada inovação tecnológica que a ciência nos coloca, ocorre alterações significativas no modo como nos relacionamos com nossos semelhantes e a natureza. A Internet, as grandes redes de comunicação disponibilizam uma quantidade imensa de informações que, ao mesmo tempo em que se constituem em poderosa ferramentas de pesquisa, transmissão e armazenagem de dados, empobrece o espírito e a diversidade cultural, numa relação quase sempre de dominação e dependência.

No ambiente cibernético, a informação é frequentemente  tomada como pensamento, quando na verdade a ideia é a base do pensamento humano. A mente humana cria com ideias, não com informações. Embora as informações alimentem o processo cognitivo, o conhecimento é baseado em dados abstratos, analíticos, enquanto que a mente humana age num nível contextual; as ideias é que formam o conhecimento e a informação, e não o contrário.

Não obstante, o questionamento do conhecimento baseado no pensamento mecanicista, não é o único fator a causar inquietações à abordagem sistêmica. A ênfase na totalidade, já presente no holismo, envolve riscos, como a se considerar que os fins justificam os meios, o cerne que serve de justificativa para toda sorte de abusos em sistemas de governos totalitários, ou de governos cujos processos “democráticos” não sejam transparentes e participativos. A apropriação de um ferramental teórico, como a abordagem sistêmica, por grupos dominantes é tão nefasta que podem embasar  ideologias espúrias como o nazismo na Alemanha e o fascismo italiano, ou, ainda as ditaduras latino-americanas, num passado recente, que prendeu e matou indiscriminadamente sob o pretexto de defender os “valores pátrios” e a “segurança nacional” da expansão comunista.

Do ponto de vista científico, autor resgata os questionamentos de Robert Lilienfield, em cujos ensaios críticos, publicados no fim da década de 70, declarava não haver evidências da utilização da abordagem sistêmica na solução de algum problema científico em qualquer campo onde houvesse sido aplicada. No entender de Capra, apesar do pensamento sistêmico ter realmente enfrentado uma crise no âmbito da ciência pura, já naquela época, era possível considerar tais críticas excessivamente radicais, devido à contribuição do pensamento sistêmico à compreensão dos organismos vivos, como sistemas energeticamente abertos e organizacionalmente fechados. É verdade que a teoria sistêmica ainda devia modelos matemáticos aplicáveis às ciências empíricas, o que viria a ser superado somente com o surgimento de uma geração de computadores mais poderosos e o advento, pelos ciberneticistas, de fenômenos não lineares, tais como os laços de realimentação  e as redes neurais. Na década de 80, por sua vez, surgiram uma série de modelos sistêmicos bem sucedidos que descrevem vários aspectos do fenômeno da vida. Segundo Capra, a principal contribuição da teoria sistêmica foi criar uma nova maneira de pensar, uma nova linguagem, novas concepções que levaram avanços científicos significativos em anos recentes.

De outro lado, há o risco de apropriação dos princípios da abordagem sistêmica em subsistemas, como as instituições jurídicas, políticas e econômicas, onde grupos dominantes podem se servir dessa ferramenta teórica para legitimar seus interesses. É verdade que esses grupos dominantes se apropriam de qualquer coisa ou conhecimento que lhes permita reproduzir-se e legitimar-se no poder. Contudo, a mesma abordagem sistêmica pode servir de arcabouço teórico para a criação de instituições democráticas e participativas, dada a sua natureza integrativa, na construção de sociedades mais justas, que não considerem apenas o homem, mas também o ecossistema onde o mesmo está inserido.

A abordagem sistêmica aplicada à organização das instituições públicas e privadas baseia-se na concepção do sistema social como organismos vivos, e incorpora muitas das ideias vindas da biologia, da ciência cognitiva, da psicologia e da ecologia. Para Capra, essas concepções, em desenvolvimentos mais recentes, fizeram surgir uma nova disciplina: “a administração sistêmica” , ensinada em escolas europeias. Nesse sentido, os setores de recursos humanos das modernas organizações empresariais costumam adotar a abordagem sistêmica nos programas de treinamento e desenvolvimento de pessoal, particularmente nos cursos de natureza comportamental, como a análise transacional. 
 
Na onda da “responsabilidade social e ecológica”, muitas empresas adotam políticas sociais e educacionais que contemplam as comunidades onde estão inseridas, além de adotar políticas restritivas aos fornecedores cujas atividades agridam o meio ambiente. Para isso, muito tem contribuído a ação de ONGs que atuam na defesa do meio ambiente, direitos humanos, e na conscientização dos indivíduos. Vale destacar o movimento de empresas do setor alimentício, nos EUA e Europa, que visam boicotar os produtores de carne brasileiros, acusados de utilizar rebanhos bovinos criados em áreas desmatadas ilegalmente. Em que pese os interesses envolvidos, nem sempre originados em questões ambientais legítimas, essas iniciativas caminham na direção certa, embora ainda não sejam generalizadas. Há muito a ser feito.

Nas instituições públicas como o judiciário, por exemplo — herdeiro da tradição positivista e, por isso de natureza mais conservadora —  a abordagem sistêmica teria um vasto campo a explorar, embora não de forma isolada. Afinal, não se pode conceber a atuação do judiciário sem o respaldo de leis emanadas do legislativo, como também sua aplicação no que se refere às prerrogativas institucionais do executivo. Entrementes, a abordagem sistêmica sobre a organização do judiciário, particularmente sobre o sistema de informação, processual e de recursos humanos, pode minimizar uma das maiores aflições daqueles que aguardam uma decisão judicial: a lenta, dolorosa e às vezes inútil espera.





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