A teia da vida
Fritjof Capra
Um novo paradigma
Resenha
A
ideia de olharmos para a realidade, e os fenômenos que a compõe, como uma trama
de relações é fascinante. Capra nos apresenta uma forma de compreender a vida, que subverte o senso comum. Leva-nos
a outra compreensão da vida, baseada numa cadeia de sistemas e subsistemas que
interagem em vários níveis, sendo cada um importante, mas não mais que outro,
na totalidade. Essa compreensão se aplica não apenas aos sistemas vivos, no
caso da biologia, mas representa também uma nova percepção da realidade, em todos os níveis, desde fenômenos físicos e químicos, como também às
instituições sociais, políticas, jurídicas e econômicas.
Nesse
sentido, talvez a contribuição mais importante da Teoria Sistêmica — pela
urgência que o
assunto requer — seja percebermos as questões ambientais como uma totalidade de uma
cadeia de sistemas, delicadamente equilibrada e inter-relacionada. Significa
olharmos o planeta como olhamos um ser vivo. Essa mudança no
pensar não é tarefa das mais fáceis, pois significa abrir mão de valores
profundamente arraigados em nossa cultura, baseada na acumulação e no consumismo
desenfreado. E mais que isso, admitir a ideia de que o planeta é a totalidade de uma complexa teia viva,
significa olharmos para nós mesmos como uma parte (e não a mais importante)
desse sistema. Indo mais adiante, talvez percebamos uma nada lisonjeira
analogia entre seres humanos e os micro organismos que causam doenças. Seria
justo então pensar que o planeta está doente e que, nós, seres humanos, somos
os responsáveis por isso. A diferença é que, ao contrário de um vírus, sabemos
disso; e ao saber, temos a possibilidade de evitarmos a tragédia final.
Pela
teoria sistêmica — no dizer de Capra — as soluções para conter a degradação
ambiental é pensarmos que os problemas de nossa época não podem ser entendidos
isoladamente. São problemas sistêmicos, interligados e interdependentes. O que
significa que a restauração do equilíbrio ambiental passa por mudanças no modo
de gerir os recursos naturais, conter a expansão populacional e mudar
drasticamente nosso modo de vida, sob o risco de esgotarmos a capacidade da
natureza em renovar-se. Nesta visão, extremamente simplista, se oculta a
necessidade de implementar-se soluções para problemas que vão do combate à
pobreza, distribuição de renda, educação e saúde, que remetem a outras questões
de natureza política, jurídica e econômica.
O
caminho para as soluções viáveis, segundo o autor, do ponto de vista sistêmico,
são soluções “sustentáveis”, que não esgotem os recursos do meio ambiente e não
comprometam a manutenção do equilíbrio ecológico em sua totalidade, pondo em risco
a própria existência. Isso significa que o próprio homem deve abdicar de sua
visão antropocêntrica do mundo em que vive e olhar para além de seu próprio
umbigo, para não comprometer as gerações futuras.
A
mudança de paradigma, assim preconizada por Capra, implica em alterações profundas na
produção e uso do saber. A imagem mental que me ocorre quando penso na teoria
sistêmica — e a complexa rede de
relações que nos apresenta — é a Internet, como se apresentava nos seus primórdios, onde cada computador se interligava a outro, sem que algum tivesse um papel predominante nessa teia virtual. A
Internet, como funcionava no início, não tinha dono, ignorava fronteiras e driblava
sistemas políticos autoritários e as tentativas de controle da informação que
ela proporcionava. Sua existência só era possível pelo paradigma que sustenta a
teoria sistêmica. Esse mesmo paradigma
traz no seu bojo a ameaça do desconhecido, ao questionar outros conceitos sobre
os quais ainda se apoiam a produção do conhecimento, seu controle e uso. Ora, o
saber dominante significa poder, e mudanças de paradigmas não são bem vindas pelos
que já detém o poder, quando podem significar alterações nas relações de
domínio. Entrementes, questões políticas e relações de poder não são os únicos
fatores que dificultam a difusão da teoria sistêmica.
Adotar
uma visão sistêmica significa abrir mão da pretensa e confortável exatidão
proporcionada pelo determinismo mecanicista de Descartes e de Newton. São alterações
dramáticas no modo de pensar a existência e o papel do homem, que implica, por
sua vez, em mudanças radicais em sua relação com o mundo físico e espiritual,
revisão de valores morais e éticos e alterações profundas nas relações dos
homens entre si e destes com o universo, de modo que a ação do homem na
natureza se torne mais integrativa do que afirmação e espoliação.
De
acordo com a visão sistêmica apresentada por Capra, as propriedades das partes
são propriedades do todo, cuja propriedade em si, nenhuma das partes possui,
posto que ela surge exatamente da interação entre essas partes. Então, as
propriedades que são inerentes ao todo deixam de existir se suas partes são
isoladas, seja de modo físico ou teórico. Isso significa que, na abordagem sistêmica, a propriedade
das partes só podem ser perfeitamente entendidas a partir da organização da totalidade,
ou seja, de um contexto mais amplo. Assim, a visão sistêmica nos proporciona
uma ciência contextual da realidade, em oposição ao pensamento analítico da
ciência clássica, que busca isolar as partes do todo, a fim de compreendê-lo.
Além
do que podemos chamar de pensamento contextual, como descrito acima, há na
abordagem sistêmica outro viés de igual importância. Esse outro caminho é o
pensamento processual, onde toda estrutura é vista, no dizer de Capra, como
processos subjacentes. Essa linha de pensamento confirma a ênfase que se dá à
teia de relações e interconexões; como elas se dão e como promovem a interação
e tornam-se, então, o objeto do conhecimento.
Outra
contribuição importante da visão sistêmica é que tanto as propriedades das
partes quanto sua interação entre si e com o todo não são estáticas. Existem
níveis de complexidade a considerar; o que ocorre em determinado nível pode não
existir em outro, como ocorre com as propriedades dos materiais sólidos no
nível subatômico, como demonstra a teoria quântica. No dizer de Capra:
“partículas subatômicas não são “coisas”,` mas interconexões entre coisas, e
estas, por sua vez, são interconexões entre outras coisas, e assim por
diante". De acordo com essas afirmações, a natureza se apresenta como uma
teia de relações entre as partes de um todo, e não como blocos isolados. É a
compreensão dessa teia de relações que desvenda a propriedade do todo, que é o objeto de conhecimento da visão
sistêmica.
Contudo, há vários níveis e sistemas, em cada qual, novas e
complexas teias de relações, o que faz da abordagem sistêmica uma busca sem fim
e, talvez, seja essa a principal dificuldade para torná-la universalmente
aceitável. Em tese, a busca do conhecimento científico sobre determinado
aspecto da teia de relações não se esgotaria nunca, pois a cada olhar, o
observador poderia se deparar com novos aspectos a considerar, porquanto
a sua própria natureza é dinâmica e depende ainda do seu ponto de vista, e o que
procura.
Os
critérios do pensamento sistêmicos são interdependentes e o foco de sua atenção
se dirige para a teia de interconexões,
nas quais identifica os padrões como sendo “objetos”, e essa identificação depende
da percepção do observador e do processo do conhecimento, que destaca ainda a mudança do pensamento da ciência objetiva para um
pensamento epistêmico, onde os métodos de questionamentos tornam-se parte das
teorias científicas. Vale dizer que a abordagem sistêmica vai além do
utilitarismo da ciência, e considera as consequências da intervenção do homem
nos sistemas com os quais interage. Uma perspectiva interessante, considerando
a época em que vivemos, onde o homem se esforça tanto para aumentar sua
capacidade de destruição, e que grande parte dos avanços científicos tem
finalidade militar e comercial.
Para
cada inovação tecnológica que a ciência nos coloca, ocorre alterações
significativas no modo como nos relacionamos com nossos semelhantes e a
natureza. A Internet, as grandes redes de comunicação disponibilizam uma
quantidade imensa de informações que, ao mesmo tempo em que se constituem em
poderosa ferramentas de pesquisa, transmissão e armazenagem de dados, empobrece
o espírito e a diversidade cultural, numa relação quase sempre de dominação e
dependência.
No
ambiente cibernético, a informação é frequentemente tomada como pensamento,
quando na verdade a ideia é a base do pensamento humano. A mente humana
cria com ideias, não com informações. Embora as informações alimentem o
processo cognitivo, o conhecimento é baseado em dados abstratos, analíticos,
enquanto que a mente humana age num nível contextual; as ideias é que formam o
conhecimento e a informação, e não o contrário.
Não
obstante, o questionamento do conhecimento baseado no pensamento mecanicista,
não é o único fator a causar inquietações à abordagem sistêmica. A ênfase na
totalidade, já presente no holismo, envolve riscos, como a se considerar que os
fins justificam os meios, o cerne que serve de justificativa para toda sorte de
abusos em sistemas de governos totalitários, ou de governos cujos processos
“democráticos” não sejam transparentes e participativos. A apropriação de um
ferramental teórico, como a abordagem sistêmica, por grupos dominantes é tão
nefasta que podem embasar ideologias
espúrias como o nazismo na Alemanha e o fascismo italiano, ou, ainda as
ditaduras latino-americanas, num passado recente, que prendeu e matou
indiscriminadamente sob o pretexto de defender os “valores pátrios” e a “segurança
nacional” da expansão comunista.
Do
ponto de vista científico, autor resgata os questionamentos de Robert
Lilienfield, em cujos ensaios críticos, publicados no fim da década de 70,
declarava não haver evidências da utilização da abordagem sistêmica na solução
de algum problema científico em qualquer campo onde houvesse sido aplicada. No
entender de Capra, apesar do pensamento sistêmico ter realmente enfrentado uma
crise no âmbito da ciência pura, já naquela época, era possível considerar tais
críticas excessivamente radicais, devido à contribuição do pensamento sistêmico
à compreensão dos organismos vivos, como sistemas energeticamente abertos e
organizacionalmente fechados. É verdade que a teoria sistêmica ainda devia
modelos matemáticos aplicáveis às ciências empíricas, o que viria a ser
superado somente com o surgimento de uma geração de computadores mais poderosos
e o advento, pelos ciberneticistas, de fenômenos não lineares, tais como os
laços de realimentação e as redes
neurais. Na década de 80, por sua vez, surgiram uma série de modelos sistêmicos
bem sucedidos que descrevem vários aspectos do fenômeno da vida. Segundo Capra,
a principal contribuição da teoria sistêmica foi criar uma nova maneira de
pensar, uma nova linguagem, novas concepções que levaram avanços científicos
significativos em anos recentes.
De outro lado, há o risco de apropriação dos princípios da abordagem sistêmica em subsistemas, como as instituições jurídicas, políticas e
econômicas, onde grupos dominantes podem se servir dessa ferramenta teórica para
legitimar seus interesses. É verdade que esses grupos dominantes se apropriam
de qualquer coisa ou conhecimento que lhes permita reproduzir-se e legitimar-se
no poder. Contudo, a mesma abordagem sistêmica pode servir de arcabouço teórico
para a criação de instituições democráticas e participativas, dada a sua
natureza integrativa, na construção de sociedades mais justas, que não
considerem apenas o homem, mas também o ecossistema onde o mesmo está inserido.
A abordagem sistêmica aplicada
à organização das instituições públicas e privadas baseia-se na concepção do
sistema social como organismos vivos, e incorpora muitas das ideias vindas da
biologia, da ciência cognitiva, da psicologia e da ecologia. Para Capra,
essas concepções, em desenvolvimentos mais recentes, fizeram surgir uma nova
disciplina: “a administração sistêmica” ,
ensinada em escolas europeias. Nesse sentido, os setores de recursos humanos
das modernas organizações empresariais costumam adotar a abordagem sistêmica
nos programas de treinamento e desenvolvimento de pessoal, particularmente nos
cursos de natureza comportamental, como a análise transacional.
Na onda da
“responsabilidade social e ecológica”, muitas empresas adotam políticas sociais
e educacionais que contemplam as comunidades onde estão inseridas, além de
adotar políticas restritivas aos fornecedores cujas atividades agridam o meio
ambiente. Para isso, muito tem contribuído a ação de ONGs que atuam na defesa do
meio ambiente, direitos humanos, e na conscientização dos indivíduos. Vale destacar o movimento de empresas do setor alimentício, nos EUA e Europa, que visam boicotar os produtores de carne brasileiros, acusados de utilizar rebanhos bovinos criados em áreas desmatadas ilegalmente. Em que pese os interesses envolvidos, nem sempre originados em questões ambientais legítimas,
essas iniciativas caminham na direção certa, embora ainda não sejam generalizadas. Há muito a ser feito.
Nas
instituições públicas como o judiciário, por exemplo — herdeiro da tradição
positivista e, por isso de natureza mais conservadora — a abordagem sistêmica teria um vasto campo a
explorar, embora não de forma isolada. Afinal, não se pode conceber a atuação
do judiciário sem o respaldo de leis emanadas do legislativo, como também sua
aplicação no que se refere às prerrogativas institucionais do executivo.
Entrementes, a abordagem sistêmica sobre a organização do judiciário,
particularmente sobre o sistema de informação, processual e de recursos humanos,
pode minimizar uma das maiores aflições daqueles que aguardam uma decisão
judicial: a lenta, dolorosa e às vezes inútil espera.
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