Thursday, October 29, 2015

A Costela de Adão



Certo dia, no Paraíso, Adão acordou com o seu par de neurônios em curto-circuito e percebeu que estava só. Para onde quer que ele olhasse, só via animais. Bestas sem alma, que nem sequer sabiam existir.
E por não haver nenhuma criatura semelhante a ele, Adão entrou em crise existencial e foi para debaixo da macieira matutar sobre sua desdita. Foi aí que apareceu o arcanjo Gabriel, a quem cabia zelar pela ordem no Jardim do Éden. Nada que saísse de sua confortável rotina lhe escapava. Gabriel era, por assim dizer, o síndico do condomínio.
- E aí, Adão? O que é que tá pegando? – Perguntou o arcanjo, ao ver Adão pensativo, duro como uma estátua de Rodin.
O homem soltou um suspiro, sem saber por onde começar, para explicar o que lhe magoava por dentro. O fato é que, cansado da dura vida de funcionário público, e de conversar com animais que nada lhe respondiam, resolveu pensar num modo de dar um fim à pasmaceira geral que dominava a sua, até então, breve existência.
- Tava aqui pensando... – Começou ele.
- De novo? Por isso sinto esse cheiro de queimado. Você tem que parar com essa mania de pensar, Adão. Pô, vai acabar botando fogo na árvore do fruto proibido. Olha aí, ó! Já tem folha chamuscada.
Foi então que tudo ficou claro para Adão. Educado e sensível como era, ficou muito puto com o comentário de Gabriel.
- Pensar tem tudo ver comigo. Afinal... Não fui feito à imagem e semelhança do Criador?
- Bem...Mais ou menos. Como cópia, tu não é lá grande coisa. Mas diz aí... O que tá esquentando essa cachola?
- Bem... Só umas coisinhas básicas. Por exemplo: quem sou eu? De onde eu vim? Para onde vou? Por que...
- Tá bom! Tá bom! – Exclamou Gabriel, impaciente. – Eu já entendi. Sabia que isso ia dar rolo, mas o Criador não quis me ouvir.
- Agora quem não entendeu fui eu.
- Deixa pra lá. Por que você não esquece esse negócio de pensar e aproveita a moleza? Vai por mim. Garanto que não tem emprego melhor que o seu. – Disse Gabriel, na tentativa de contornar os conflitos existenciais de Adão, antes que o caldo entornasse. Todavia, seu pupilo não era de desistir facilmente, quando botava alguma coisa na cachola.
- Não sei não. Todo dia é a mesma coisa: dormir, comer, dormir... Não tem nada pra fazer, além de conversar com esses bichos de quatro patas.
Nesse ínterim, dois veadinhos surgem detrás de alguns arbustos e correm alegremente ao redor da macieira sob o olhar de Adão, não muito feliz com aquela interrupção.
- Eu não sou o que você tá pensando! – Disse o primeiro.
- Sei, sei. – Respondeu o segundo. – Vamos brincar na cachoeira?
- Tá bom, mas só um pouquinho.
Em seguida, os dois veadinhos saíram trotando alegremente e sumiram atrás dos arbustos, por onde haviam surgido.
- Esses dois aí são muito esquisitos. – Sussurrou Adão para Gabriel.
- O que é que tem? Os animais do Éden podem ser ótimas companhias. Você tem que usar a imaginação. Bem... Deixa pra lá. Seguinte, mané. Acabo de receber uma mensagem do Chefe para você.
- Mensagem? Ué! Por que não disse logo? Eu nunca recebi uma mensagem do chefe antes.
- Bom, agora recebeu. O Criador ouviu tua choradeira e resolveu atender o teu pedido.
- Então... Acabou minha solidão?
- Segura a onda, Mané! A coisa não é assim tão simples. Tenho que seguir o regulamento, preencher alguns formulários e aguardar o despacho celestial.
- Ih! Lá vem burocracia... – Lamentou Adão, que mal se aguentava de tanta ansiedade.
- Bom... O prazo regulamentar é de nove meses.
- Pô! Tudo isso?
- Sossega! Você tem costas quentes. – Respondeu o arcanjo. – Então, a sua encomenda chega amanhã.  Quando você acordar, tudo estará resolvido.
- Acordar? Eu nem vou conseguir dormir. Acho que ficarei aqui embaixo da macieira, contando as maçãs até o sono vir.
- Boa ideia! Só não esquece que esse fruto é proibido. Pode contá-lo, mas não tocá-lo. “Só falta este mané descobrir a Lei da Gravidade” – Pensou o arcanjo. – Mais uma coisinha... Amanhã você terá uma costela a menos.
Antes que Gabriel acabasse, Adão soltou um sonoro ronco.
- Pô! O sacana já dormiu.
O que aguardará nosso ... Hum ... Herói, no dia seguinte? Terá a companhia que tanto deseja? Ou tudo não passará de uma grande piada celestial? Quem matou Lineu? Opa! Essa já é velha. Bem... De qualquer modo não percam a emocionante sequência desse drama.
O dia amanhece no Jardim do Éden. O canto dos pássaros enche o ar, enquanto Adão continua dormindo, sem perceber a mulher ao seu lado. Ela também dorme profundamente, apesar do ronco dele.
Quando Adão finalmente acorda leva um tremendo susto ao ver Eva. Antes que as más línguas acordem também, é bom lembrar que ele nunca havia visto uma mulher antes. Então o susto é plenamente justificável. Segundos depois, mais calmo, ele lembra da conversa que teve com Gabriel na noite anterior.
- O que temos aqui? Uma criatura nova no paraíso. Será que você é a companhia que o Chefão me prometeu?
Eva finalmente acorda. É a vez dela assustar-se. Olha para Adão, faz beicinho e cara de choro.
- Mamãe?

- Hum... Você não parece muito comigo! – Exclama ele, examinando Eva de cabo a... Bem, você entendeu, não?
- Tuas formas são um pouco mais... Pelas estrelas! Que peitos enormes! Ué? cadê o bilau? Ih! Acho que você veio com defeito de fabricação.
Antes que a confusão tomasse proporções bíblicas, Gabriel apareceu para botar ordem no pedaço.
- Ah! Vejo que já conheceu Eva. Muito bem! Muito bem! Então, meu caro Adão, o que achou da sua nova companhia?
Adão, então achou que aquele era um bom momento para reclamar de certas características de sua encomenda.
- Não sei. Ela é um pouco diferente do que eu tinha imaginado. – Diz, apontando os peitos de Eva.
- Claro, mané. Ela é uma mulher. É uma fêmea da sua espécie.
- Não foi isso que eu pedi. Ela nem mesmo tem um bilau, como eu.
- Fêmeas não têm bilau. Você levou foi a maior sorte. É a primeira vez que o Criador bota uma fêmea no paraíso.
- Isso é bom?
- Ah! Isso eu não sei. Você vai ter que descobrir.
Seguindo sua natureza, Adão continuou insistindo no assunto, julgando que entender aquele detalhe fosse muito importante.
- Uma fêmea... E sem bilau? Não sei, não. Acho que fui enganado.
- Bilau! Bilau! Tu nem sabe pra que serve isso.
Adão ia insistir no assunto, mas foi providencialmente interrompido por Eva, que perdeu a paciência ao ouvir uma discussão que não compreendia, quando ela tinha questões mais importantes para resolver ali.
- Mamãe?
- Pô, ela só fala isso? – Pergunta Adão, ainda insatisfeito.
- Tu foi a primeira criatura que ela viu. Eva tá pensando que tu é a mãe dela, morou? Bom, de certa forma faz sentido. Ela foi feita da tua costela.
- Pô! Por isso tô sentindo um vazio aqui. – Responde Adão, apalpando suas costelas. – Então eu sou mãe?
- Isso não vai dar certo. – Disse Gabriel ao perceber a confusão. – Peraí. Acho melhor lhe explicar umas coisinhas.
Contudo, antes que o arcanjo articulasse seus pensamentos para uma explicação inteligível, Eva voltou a atacar.
- Mamãe! Mamãe!
- Filhinha! – Respondeu Adão comovido, enquanto abria os braços para abraçar Eva.
- Vão parar com essa frescura? Você é o macho da espécie humana. Eva é a fêmea. Somente as fêmeas podem engravidar. Entendeu, mané?
- Não.
- Já vi que isso vai longe... – Falou Gabriel, com um longo suspiro.
- Pô! Se não sou a mãe, como é que ela nasceu de mim?
- Bom... Ela tinha que sair de algum lugar, né? – Responde Gabriel, embaraçado. Aquele era um assunto que ele não dominava com desenvoltura.
- E daí?
- Daí que o Criador tomou uma de tuas costelas emprestada para criar Eva. Bom, Você conseguiu a companhia que queria. Agora descobre o que fazer com ela e vê se não enche mais o saco!
- E pra que ela serve?
- Pô! Sei lá! Como é que eu vou saber? Nunca teve uma teve uma fêmea aqui. Acho que o Criador tá de gozação contigo, mas esse negócio de brincar de mamãe não tem nada ver, definitivamente.
- Mamãe? – Insiste Eva.
- Pô. Será que ela só sabe falar isso?
- Eva acabou de nascer. Espera um pouco pra ver. Ela vai falar mais do que você vai aguentar.
Adão coçou a cabeça, sem saber o que fazer com Eva. É certo que ele queria uma companhia, mas não pensou que tivesse que tomar conta dela. De repente, teve uma ideia.
- Vamos para a cachoeira brincar com os veadinhos? – Perguntou para ela.
Eva sorriu como se concordasse, mas não tinha entendido nada, é claro. Enquanto isso, Gabriel soltou mais um de seus costumeiros suspiros, quando algo o desagradava.
- Acho que ele ainda não entrou no espírito da coisa. – Disse para si mesmo. – Mostra o Éden para Eva, mas vê se não esquece da proibição, hein? Na árvore do fruto proibido não podem tocar.
E assim foi. Adão Tanto esperneou, que o Criador resolveu conceder-lhe uma companheira. No princípio, ele ficou feliz. Finalmente teria um ser semelhante a si para dividir sua solitária existência no Paraíso.
Todavia, sua companheira era uma mulher. Tá certo que ela era uma fêmea da sua espécie, mas ele
nem sabia para que ela servia. Aliás, Eva era a primeira fêmea de qualquer espécie a existir no Éden, um clube do bolinha zelosamente administrado pelo arcanjo Gabriel, que de fêmeas também não entendia nada, mas era o síndico do pedaço e se achou na obrigação de administrar a encrenca que se prenunciava. Essa é a história de Adão e Eva, numa versão que não está no catecismo.
No dia seguinte, Adão acordou cheio de expectativa. O fato de não estar mais só abria novas possibilidades que poderiam acabar de vez com o tédio em sua, até então, solitária existência.
- Onde você está Eva? Pergunta aflito, ao não ver sua companheira. – Onde está essa criança?
- Estou aqui, Adão. – Responde Eva.
- Pelas barbas de Gabriel! Você está falando!
Eva não compreendeu por que Adão estava tão surpreso, mas deduziu com muita perspicácia que era melhor não estender o assunto. Permaneceu calada enquanto ele a examinava de novo.
- Gabriel tem razão. Você é realmente muito diferente de mim,
-Sou? Pensei que fôssemos iguais!
- Somos diferentes em alguns detalhes. Eu tenho um pingolim e você não tem, vê? Você nada tem entre as pernas. – Completa ele todo orgulhoso.
Eva olha aquele apêndice com uma indiferença que teria fulminado Adão,  se tivesse percebido que só ele parecia dar importância ao detalhe em questão.
- É verdade. Não tenho nada pendurado, mesmo.
- Não falei? Somente o macho tem um destes.
Eva pega o pênis de Adão, segura-o pela ponta dos dedos e o examina mais atentamente.
- Mas pra que serve isto?
- Bem...Eu faço xixi, com ele. – Responde Adão desconcertado com o pouco caso de sua companheira ao seu estimado apêndice.
- Ora! Eu faço xixi também, e não preciso dessa coisa aí.
- Sim, mas você precisa se agachar, do contrário se molha toda. Eu posso fazer isso de pé.
- Grande vantagem! – Retruca Eva, fazendo beicinho.
 - Você diz isso, porque não tem um.
- Por que eu iria querer isso? Além de feio, parece inútil.
Adão ia retrucar, mas Eva encerrou o assunto com um gesto de enfado e se afastou. Era hora de conhecer o Jardim do Éden, mesmo que tivesse de fazer isso sozinha.
- Onde você vai?
- Vou dar um rolê para conhecer a área.
- Mas... E eu?
- Você fica aí pensando na razão do Criador ter lhe dotado com esse penduricalho. Isso deve ter alguma utilidade, além de servir para você fazer xixi em pé.
A relação de Adão com sua companheira não parecia ter começado de forma muito auspiciosa. Isso o fez pensar se o Criador não tinha lhe dado um presente de grego, embora nunca tivesse ouvido falar dos gregos até aquele momento. De qualquer modo, alguma coisa não se encaixava.
Como se tivesse ouvido tais pensamentos, Gabriel surgiu de repente. Estava curioso sobre como Adão estava lidando com a situação.
- Então, meu caro? Está se divertindo com a sua companheira?
- Você zomba de mim, Gabriel?
- Não, Não. – Disse Gabriel contemporizador. – Mas percebi que Eva o deixou bastante irritado.
- Ela fala que meu pingolim não tem nenhuma função.
- E você? O que acha?
- Não sei. Antes de Eva chegar, eu achava que ele servia apenas para aliviar a minha bexiga. Agora já não sei. Diga-me você, Gabriel. Para que isso serve?
- Eu? Mas eu nem sexo tenho! Como vou saber para que serve esse negócio pendurado aí? Hum! ... Caramba, como é grande! Na verdade, pouco sei da vontade Divina. Contudo, posso dizer-lhe que o seu atributo é um sinal de superioridade.
Ao ouvir aquilo, Adão ficou confuso. Sempre teve a impressão de que Gabriel falava menos do que sabia, mas dessa vez, tinha certeza de que ele tentava ludibriá-lo.
- Como assim?
- Não percebe, Adão? Você é superior à sua fêmea. A vontade de Eva deve sempre ser a sua vontade, pois ela deve se submeter a você.
- Ela sabe disso? – Perguntou Adão, num lampejo de sagacidade.
- Você deve mostrar isso a ela. Cabe a você ensinar Eva a obedecer.
Aquilo parecia fazer sentido, mas ele não tinha muita certeza sobre a disposição de Eva para colaborar. Aliás, desconfiava que teria sérios problemas com essa questão de obediência.
De repente Eva ressurge toda agitada.
- Adão, Adão! Vem ver o que eu descobri!
- Acalme-se criatura! Não vê que estou ocupado? O que pode ser tão urgente, aqui no Éden?
- Você já poderia saber, se não perdesse tanto tempo fazendo perguntas. – Respondeu Eva impaciente. –Vem de uma vez!
- Está bem! – Disse Adão, com um suspiro. – Mas que fique registrado que essa é a minha vontade.
Gabriel nada diz, limita-se a abanar a cabeça, achando que aquilo não ia dar certo.
- Está vendo, Senhor? Eva já está botando as manguinhas de fora. Isso sem falar no desrespeito à minha pessoa. Ela veio aqui, falou com Adão e levou-o embora, como se eu nem existisse. Imagine o que fará com ele, coitado. Eva parece ter sido criada para pôr Adão a prova. Mas à prova de que Senhor? De obediência, talvez? Se for isso, não bastaria a proibição de comer a maçã? Por que dar vida a uma criatura tão semelhante a Adão, se apenas uma bastaria aos propósitos de existência do Éden? Como se não bastasse, é uma fêmea! ... Isso me lembra a criação da serpente. Ainda hoje, passados vários milênios, não consigo atinar para que serve tão vil criatura. Eu sei Senhor, que suas razões não importam a este humilde servo. Todavia há momentos em que eu me sinto como Adão. Espero que o Senhor não me considere impertinente em minha falta de compreensão dos assuntos Divinos. Não Senhor, não é falta de fé! Só gostaria que o resultado de tais experiências não venha a aborrecê-lo mais tarde. Mas que bobagem eu estou dizendo? Naturalmente, o Senhor, em Vossa onisciência, tudo sabe!
De repente um ruído de algo se arrastando entre os arbustos chama a atenção de Gabriel.

- Que sombra é aquela? Tem alguém espreitando das sombras! Mas não é possível! É aquela minhoca de novo!! – Exclama ele colérico. Tira o tamanco e sai correndo atrás da serpente. – Agora eu lhe pego!
Enquanto isso, ignorando o que havia acontecido em sua ausência, Adão e Eva retornam de sua breve incursão.
- Era isso que você queria mostrar-me com tanta urgência? Não é nenhum segredo que todas as criaturas do Éden são do sexo masculino.
- Exceto a mim, que sou fêmea.
- Justamente! Foi com a sua vinda que essa regra foi quebrada, mas tudo já estava escrito, pois essa é a vontade do Criador.
A mulher não ficou satisfeita com aquela explicação, mas sabia que seu companheiro não poderia lhe dar resposta às perguntas que fervilhavam em sua mente.
- Parece que tudo se explica como sendo da vontade do Criador. Devemos ser apenas marionetes de sua vontade, então. Criaturas sem nenhuma importância.
- A vontade do Criador é tudo o que importa. É por essa vontade que existimos.
- Mesmo quando essa vontade significa que devemos ser privados de provarmos do fruto desta árvore?
- Ora! Que importância tem a maçã, se podemos comer todos os outros frutos que existem no Éden? Eu a proíbo de tocar nesse assunto novamente, ouviu?
- Você me proíbe? – Retruca Eva furiosa. – Como você ousa falar comigo dessa maneira?
E-Eu sou o seu senhor! – Gagueja Adão. – Você deve obedecer à minha vontade, pois eu tenho um pingolim e sou superior a você... Ora essa!
- Mas que interessante! Você finalmente achou uma função para essa coisa horrorosa.
- Mais respeito, ouviu? Isto aqui é o atributo do macho. Sinal de força e superioridade sobre a fêmea.
- Não brinca! Deixe-me adivinhar... Foi Gabriel quem lhe falou isso?
- Naturalmente, quem mais poderia ser?
- Realmente! Depois você vem me dizer que ele não tem sexo.
- Mas eu nunca lhe disse isso... De qualquer modo, você deve obediência à mim, pois foi por minha vontade que o Criador lhe deu existência. – Disse ele, sem muita certeza do que estava falando.  
Parecia-lhe que, desde o surgimento de Eva, ele já não conseguia mais ter certeza de nada. A companhia que tanto desejara não era o que esperava e, taciturno, Adão ficou em silêncio. Todavia, Eva não lhe deu trégua.
- Será mesmo, meu querido? Ou, quem sabe, eu já fazia parte dos desígnios do Criador, muito antes do barro ter sido moldado em sua forma?
- Você fala com a peçonha da Serpente, mulher. Você tenta colocar a dúvida no meu espírito, como aquele ser asqueroso fez antes!
- De quem você está falando?
- Você não sabe? – Retruca o homem com ironia. – Você fala do mesmo modo daquela vil criatura. Será que você não é mais um ardil engendrado pela serpente?
- Não seja tolo Adão! Você acabou de dizer que lhe devo a minha existência. Agora, no entanto, já credita isso a um ser misterioso a autoria da façanha! Francamente, você é ridículo!
- Pode ser que eu esteja sendo ridículo! Mas é verdade que você me inferniza com suas perguntas e seus questionamentos incessantes. Ora! Não tenho que ficar aqui, ouvindo suas tolices. Prefiro a companhia de Gabriel.
Assim, Adão e Eva tiveram a primeira DR de suas vidas. Depois dessa discussão, ele a deixa sozinha.
- Nossa! Que bicho o mordeu? Só estávamos trocando algumas ideias. De repente ele me deixa aqui falando sozinha. Justamente euzinha, que nasci da inquietude da solidão que lhe corroía o espírito... Já vi que o macho é complicado, mesmo!
Absorta em seus pensamentos, Eva encontra a serpente.
- Se não for incômodo, mocinha, poderia tirar o pé do meu rabo?
- Q-que criatura é você? – Ela pergunta assustada.
- Eu sou o lado oculto do Éden. O ser das sombras. Em outras palavras eu sou a única, terrível, magnífica e fabulosa...
- Tá! Já entendi.
- Então me diz mocinha, que negros pensamentos entristecem seus lindos olhos?

-  Eu não sei ao certo.
- Ora, ora! Mas o que lhe falta?  - Pergunta a serpente insinuante. – Não é você um espécime humano, feito à semelhança do Criador?
- Eu sei apenas o que Adão diz que sou. Ele diz que sou humana, semelhante a ele em quase tudo, exceto pelo pingolim. Porém eu sinto que a diferença vai além disso! ... Adão me trata como se a ele pertencesse. Eu sou sua fêmea, como ele diz. Só que eu não sei o que significa isso.
- É provável que ele também não saiba. – Diz a serpente com ironia.
- Como posso ser semelhante a ele? Sua origem é um desejo Divino. A minha é apenas um desejo seu. Minha existência parece ser um complemento da existência de Adão.
- Bem... Pelo menos, de uma coisa você já pode ter certeza...
- Do quê?
- Você é o primeiro ser humano com crise existencial!
- E como vou resolver isso?
- Eu não tenho a menor ideia, mas com o tempo encontrará todas as respostas que precisa. Entretanto, a sua chegada no Paraíso não deixa de ser intrigante.
-  É mesmo? Por quê?
- Eu estava pensando em qual motivo levou o Criador a fazer de você uma fêmea. Afinal, Adão queria uma companhia, mas ele não estava pensando numa fêmea. Não poderia pensar em algo que, até então, desconhecia, isso é certo. Além do mais, não há necessidade de procriar no Éden. Na verdade, isso nem foi cogitado na criação deste lugar.
- Por que não tenho um belo falo entre minhas pernas, com tem o meu companheiro? Acho uma injustiça não ter um falo, como tem Adão.
- não se preocupe. Certamente você ainda terá um falo, como tanto deseja.
- você tem certeza? Terei um lindo falo, a balançar entre as minhas pernas?
- Sim, com certeza você terá um falo... Isso vai dar uma confusão... Mas por hora contente-se com o que tem.
- Contentar-me com o que tenho? – Pergunta Eva exasperada. – Você pode dizer-me o que tenho, afinal?
Insinuante, a serpente coloca-se entre as pernas de Eva.
- Certamente! Certamente! Em breve você descobrirá que o falo que Adão exibe tão orgulhoso destina-se a você.
- A mim? Como é possível, se o falo de Adão pertence ao seu corpo, e não ao meu?
- A resposta para isso está na sua natureza. Você deve descobrir o propósito de sua existência.
- Eu pensei que você soubesse.
- Certas coisas você terá que descobrir por si mesma, caso contrário não se cumprirá o destino que o criador reservou para você.
- Destino? Que destino?
- Como eu vou saber? Não fui eu que inventei essa besteira toda. Mas o fato de você ser a única fêmea deste jardim zoológico celestial deve ter um propósito, eu imagino.
As palavras da vil criatura não a tranquilizaram. Na verdade, Eva começa a achar que a serpente estava lhe enrolando também.
- Você está parecendo com o que Adão falou a seu respeito.
- Oh! Então Adão falou de mim? Pensei que tinha me esquecido, aquele danadinho! Então, mocinha, o que Adão falou a meu respeito? Não me esconda nada, hein?
- Adão falou que você é uma criatura vil e ardilosa.
- Falou isso? Oh! Que gentil!
- Você não está zangada? – Eva perguntou confusa. Ela ainda não havia se habituado às sutilezas do raciocínio da serpente.
- Imagina! Eu sou isso tudo e muito mais! Se Adão tivesse me ouvido, ao invés de ouvir aquele horror de camisolas chamado Gabriel, certamente não seria o banana que você conheceu. Agora você tem a oportunidade de escolher. Quer ficar como Adão? Ou quer trilhar o caminho do conhecimento?
Aquela era uma pergunta tão capciosa, que até mesmo Eva percebeu que tinha alguma cilada nas palavras da serpente. O que lhe faltava em experiência, ela sabia compensar com uma sagacidade inata.
- Se eu escolher o caminho que você aponta, o que vou encontrar?
- Conhecerá novos aspectos de sua existência. Novas sensações. Você gostará desse novo caminho, não tenho dúvida!
A serpente sabia ser persuasiva e, isso, era algo que Eva desejava aprender. Num lugar em que os machos eram a maioria quase absoluta, talvez aquela criatura rastejante pudesse lhe ser útil, afinal de contas.
- Vou esperar para ver o que você tem a ensinar-me. Mas se tentar me trair, vai se arrepender até o último guizo.
A serpente, que também não era boba, caprichou na expressão de terrivelmente injustiçada.
- Trair-lhe? Oh! Como pode pensar isso de mim, minha bela? Acaso não tenho, respondido de boa vontade às perguntas que me faz?
- Mais ou menos. Suas respostas não são muito claras e, pelo que sei, sua reputação já não é lá grande coisa.
- Quanta injustiça! Pois saiba que tudo se tornará mais claro no devido tempo. Além do mais esclarecer-lhe algumas coisinhas vai deixar Gabriel subindo nas tamancas. Para mim, isso não tem preço, ora essa!
- O que você quer dizer com isso?
- Não pense nisso agora, querida! Contudo, depois de nossas conversas, esse tedioso Jardim do Éden jamais será o mesmo, tenha certeza!
- Então talvez eu não devesse lhe dar ouvidos!
- Talvez sim! Talvez não! Você tem livre arbítrio. Pode escolher entre os riscos de novas descobertas, ou refugiar-se na segurança do que você já conhece, como fez Adão. Assim terá uma eternidade de tédio para arrepender-se do que não teve coragem de fazer.
- Você é ardilosa, sem dúvida!
- Siimm! – Respondeu a serpente, sibilante. – E, em breve, você também será!
Eva sou uma sonora gargalhada. Começava a gostar daquele conchavo.
- Não sei como Gabriel tolera sua presença, aqui no Éden.
- Gabriel nada pode contra mim. Aliás, ele precisa de mim.
- Agora acho que você está delirando.
- De forma alguma! Agora pense minha querida... Qual a importância da ordem, sem a presença do caos? Eu sou o outro lado de Gabriel. Aquele ladinho obscuro que ele sempre tenta esconder. Sem mim, Gabriel não tem um propósito de existência. Nada que justifique sua presença no Éden.
- Quanto a mim? Qual o propósito de minha existência, afinal?
Antes que a serpente pudesse responder, ela ouviu um ruído. Alguém estava se aproximando.
- Shh! – O réptil sibilou. – Está ouvindo? É Adão que se aproxima. Não é bom que ele saiba de nossas conversas, por enquanto.
A criatura rastejou por entre as folhagens e sumiu de vista, antes que Eva pudesse esboçar qualquer reação. Todavia, ela tinha impressão de que Adão não gostaria realmente de suas conversas com a serpente.
Eva ficou sozinha, mas só por alguns segundos. Adão logo surgiu.
- Sinto tê-la deixado sozinha, Eva. Eu tinha muito em que pensar.
- Não se preocupe por isso, Adão. Foi bom ter ficado sozinha. Descobri que o Éden possui muitos aspectos interessantes.
- Sim! Este lugar é maravilhoso! Por isso eu concluí que tenho tudo o que preciso para ser feliz. Não vejo motivos para procurar razões ou propósitos nas ações do Criador. Preciso apenas aceitar e ser grato por tudo o que existe.
- Encontrou seu caminho, então! O que antes buscava já não existe para você.
- Sim, pois tudo o que preciso já existe! Por que devo preocupar-me com questões irrelevantes, como diz Gabriel, quando há muito que aproveitar deste paraíso?
Eva reprimiu um bocejo. Começava a achar o macho da espécie humana uma mala sem alça.
- Se você está feliz, tudo está perfeito!
Foi aí que Adão percebeu que havia algo errado. Diga-se a favor de Adão, que ele estava longe de ser um estúpido mané, apesar da opinião geral e de sua atitude conformista e retrógrada.
- O que se passa você? Não parece estar muito satisfeita.
- Está tudo bem, Adão. Hoje eu conheci o outro lado do Éden e estou um pouco cansada. Apenas isso.
- Pois não parece! Há algo diferente em você. Não está, nem mesmo enchendo com o seu rosário infinito de perguntas.
Minhas perguntas para você se esgotaram. Podes ficar sossegado que não lhe atormentarei mais com questões que não lhe interessam.
Para Adão. Aquela atitude era muito estranha. Ele estava certo de que Eva não aceitaria sua decisão, sem espernear e falar pelos cotovelos. Aí tinha coisa!
- Falaste com Gabriel? Ele lhe disse alguma coisa rude, quem sabe?
- Não! Não falei com Gabriel. Não aconteceu nada de extraordinário. Apenas conheço melhor o Paraíso e agora consigo compreender suas razões.
Embora ainda estivesse desconfiado, Adão resolveu dar-lhe um voto de confiança. Afinal, o que ela disse fazia sentido.
- Aleluia! Agora vejo que a fé também te alcançou! Você acredita e aceita, como Gabriel diz que tem que ser.
- Aleluia, irmão! – Respondeu Eva com ironia.
- Agora nós podemos deixar de lado as preocupações e apenas gozar a vida. Vem! Vamos brincar na cachoeira.
- Precisa desculpar-me Adão. Mas hoje o dia foi muito cansativo. Penso apenas em ficar descansando sob a macieira.
- Está bem! Se esse é o seu desejo, deixaremos as brincadeiras para amanhã.
- Não se prive da diversão por minha causa, Adão. Vá à cachoeira. Ficarei aqui, esperando por você.
- Está bem! Você me espera aí, mas não deve esquecer da proibição. Não toque nas maçãs!
- Não se preocupe, Adão! Como é possível esquecer, se você me lembra a todo o momento?
- Melhor prevenir que remediar. Disse Adão afastando-se.
Eva suspira aliviada. Tudo o que queria era ficar a sós com seus pensamentos. Havia muitos aspectos da sua existência que desejava repensar. Entretanto, ela não estava tão só como pensava. Em seu escritório, o arcanjo Gabriel fitava os monitores com muita apreensão.
- Eu não disse, Senhor? A coisa tá ficando preta! Aliás, já começou quando criou a mulher. Ela não é como Adão. É mais teimosa enxerida! Eu não entendo, Senhor, por que não criou um outro homem, como Adão? Eles seriam grandes companheiros! Brincariam juntos na cachoeira... Eva não tem nada a ver com Adão. Ela nem mesmo gosta de suas brincadeiras. Prefere ficar zanzando pelo Éden, olhando tudo, especulando! Eva é reparadeira, Senhor! Não perde uma oportunidade de questionar sua obra. Como? O Senhor ri de minhas preocupações? Acha que eu estou com ciúmes? Com todo o respeito, Senhor, o meu zelo pelo Jardim do Éden ser confundido com esse sentimento pobre é uma grande injustiça! Logo eu, que sempre lhe fui fiel, incapaz de uma traição... Por falar em traição, o Senhor deveria voltar seus divinos olhos para aquela criatura rastejante. Hoje a serpente abordou Eva, aqui no bosque. Boa coisa eles não devem ter conversado, mas não consegui ouvir, pois o áudio estava horrível! Isso só pode ser coisa daquele ser desprezível. Aquela criatura tem um arsenal infinito de ardis e subterfúgios, o Senhor sabe. Ah! O Senhor ri novamente de minhas preocupações! Francamente! Às vezes acho que as ações daquela criatura horrorosa estão de acordo com seus desígnios, Senhor! Só de pensar nisso, fico arrepiado, imaginando as consequências.
Enquanto Gabriel manifesta suas preocupações às instâncias superiores, o fado de Adão e Eva continuava a se desenrolar, sob a batuta da ardilosa serpente.
- Não sei... Talvez seja melhor esquecermos tudo isso, afinal. – Disse Eva, em dúvida diante da maçã.
- Agora é você que se acovarda! - Retrucou a criatura rastejante.
- Temo pelas consequências de meus atos. Não gostaria de prejudicar ninguém que não fosse eu mesma.
- É uma atitude louvável, mas tola.  – Disse a serpente. Você está recuando nos seus propósitos! Oh! Mas não é uma pena? Logo hoje, que eu iria lhe revelar o maior dos segredos!
- Segredo?
- Aquele que explica a sua existência, minha querida! O que poderia acontecer de mal em você saber coisas que são da natureza humana? Não há o que pensar, a menos que queira se tornar uma mediocridade eterna, como o patético macho da tua espécie.
- Isso nunca! Prefiro deixar de existir!
- Não seja tão dramática. Tudo o que precisa fazer é morder a maçã. Este fruto é a única coisa proibida ao homem pelo Criador. Nunca lhe será permitido prová-lo! Porém você o fará. Provará do fruto proibido e induzirá seu homem a desobedecer ao Criador.
- Mas por que devo fazê-lo? Por que devo provocar a ira Divina?
- Porque assim você alcançará tudo o que almeja, minha cara! Acaso você não deseja um falo, como tem o seu companheiro? Não deseja encontrar a sua própria identidade?
- Sim. Mas como irei alcançar o que desejo, desobedecendo ao Criador?
- Ao provar deste fruto, você fará algo que seu companheiro nunca se atreveu a fazer. Farás algo por si mesma, por seu livre arbítrio e iniciativa. Isso a identificará consigo mesma, sem as dúvidas existenciais que agora atormentam seu espírito.
Ainda em dúvida, Eva recua.
- Não sei, não...
- É a sua chance. Coma o fruto! Você não se arrependerá, lhe asseguro!
De repente ela se decide. Pega o fruto e o morde com fúria.
- Está feito, finalmente! – Exclama a serpente exultante.
- Meu Deus! O que eu fiz? – Eva pergunta, chocada com seu próprio ato.
- Você fez aquilo que era seu destino fazer! – Responde a serpente. – Você não sabia, mas não tinha escolha. Esse negócio de livre arbítrio é pura balela. Agora preste atenção! Seu companheiro está vindo. Oferece seu fruto a ele.
- Para que? Já não basta um pecador?
- Não seja tola! Adão também precisa conhecer a verdade.
- Você ainda não me respondeu. Por que Adão deve ser envolvido em meus atos? – Insiste Eva, agastada.
- Sem Adão, você não se completará como mulher. Será estéril! Agora devo esconder-me, pois ele se aproxima. Livra o seu coração de temores e cumpra o seu destino. Você está ligada à terra e não ao Jardim do Éden!
A serpente se oculta, enquanto Adão se aproxima. Eva oferece a maçã para o seu companheiro .
- O que você fez criatura?
- Não está vendo? Comi a maçã!
- Mas você sabia que era proibido tocar nesse fruto. Por que fez isso?
- Eu tenho meus motivos! Você não compreenderia Adão.
- Compreendo que você desafiou o Criador! Aquele que nos deu a própria existência. Como pensa, agora, justificar tal insanidade?
- Não penso em justificar-me. Para quê? A onisciência não é uma prerrogativa Divina? Além do mais, ao Criador se deve a determinação de minha natureza.
À essa altura dos acontecimentos, Adão já tinha se acalmado. Ele era esperto e sabia que acabaria perdendo a discussão para Eva.
- Pensando assim, seus atos parecem lógicos, mas estarão corretos?
Eva deu de ombros, pois já não se importava.
- Por que devo preocupar-me com isso? O meu destino já está traçado, e pertence aos desígnios Divinos, não é isso?
-Você tinha escolha, Eva! Não me venha falar de um destino já traçado!
- Fala do livre arbítrio? Não seja tão ingênuo! O livre arbítrio existe apenas no cotidiano de nossas vidas. O nosso destino pertence ao jogo cósmico do Criador, onde somos apenas peças a serem manipuladas.
- Você não compreende a extensão dos seus atos! – Insistiu Adão. – Desobedeceu às determinações do Criador e, agora, a desgraça irá abater-se sobre nós. Seremos malditos por toda a eternidade. É o fim!
- Se o fim existe, Adão... Ele certamente não será agora, em consequência de uma única mordida no fruto proibido. Por que deveríamos temer algo que foi cometido por nossa decisão? Ora! Não foi o Criador que nos dotou de livre arbítrio? Não seria esse o fato que nos completaria como seres humanos?
- Você me confunde com esse jogo de palavras!
Eva respirou fundo e se encheu de paciência. Aquilo não ia ser fácil, pensou a mulher. Aquele mané tinha dogmas incrustados em sua mente há uma eternidade, enquanto que ela existia há apenas um momento na escala cósmica do Criador. Teria que usar os artifícios de sedução aprendidos com a serpente.
- Só tem um jeito de você aquietar seu coração – Ela disse. Em seguida mostrou a maçã mordida e seu sorriso mais sedutor.
- Isso é loucura!
- Talvez! Mas é uma loucura deliciosa.
Eva puxou Adão para trás da macieira e lhe mostrou que havia coisas bem mais divertidas para fazer no Paraíso, que brincar na cachoeira com os veadinhos.
- Venha, meu querido. Venha provar o fruto! Sinta a doçura do meu pecado na sua boca!
- Ahhh! – Gemeu, Adão pela primeira vez.
- Já? – Reclamou Eva, também pela primeira vez.
Todavia, aquele gemido foi suficiente para alertar Gabriel, em sua indefectível sala de controle do Jardim do Éden.
- Aconteceu Senhor! Macularam o Éden! Agora não há nada mais a fazer, a não ser expulsá-los do Paraíso. Sinto-me triste, Senhor! Até já começava a gostar desses seres criados à sua semelhança!
Não muito longe dali, a serpente se regozijava.
- Pobre Gabriel! Ele já sabia, mas insistiu em adiar o inevitável! Minhas ações foram simplesmente devastadoras! No começo, perdi a batalha com Adão, mas Eva se mostrou bem mais receptiva. Tendo-a como aliada, tentar Adão foi pura covardia. Mas, afinal, eu fiz foi um grande favor àquele panaca. Graças a mim, o paspalho descobriu que a fêmea de sua espécie é bem mais interessante do que ele esperava. Mal posso esperar o desfecho desta comédia celestial! Ai! Não sou terrível?
No entanto, apesar de toda a satisfação da serpente com o desfecho de suas intrigas, Gabriel não se deu por vencido e saiu no encalço de Adão e Eva, à essa altura, considerados totalmente subversivos e perigosos à manutenção da ordem no Jardim do Éden.
- Adão! Eva! Venham cá! – Ele gritou possesso. – Eu sei que estão por perto. Não adianta ficarem escondidos, pois é hora de responderem ao insano ato que praticaram.
Verdade seja dita. Adão e Eva não estavam escondidos. Eles apenas estavam se arrumando com o novo modelito bolado por Eva, que de repente começou a achar esse negócio de andar nu pelo paraíso algo totalmente over, se é que me entendem. 
Na verdade, havia um outro motivo. Ela estava grávida e, como no Paraíso o tempo é relativo, a gravidez já estava num estado avançado. Eva não sabia o que tinha acontecido, mas intuiu que não era hora de aparecer barriguda. Então, quando eles se aproximaram de Gabriel, ela tentou manter-se atrás de Adão.
- Ah! Resolveram aparecer, hein? O que é isso?
- U-uma folha de parreira – Gaguejou Adão muito sem jeito.
- Verdade? Por um momento pensei que fosse uma melancia. Se não for muito incomodo, poderia dizer-me por que está usando isso ai, pendurado?
- É para esconder-me dos olhares dos outros seres, pois não suporto que vejam meu corpo nu. – Disse Adão, que não levava jeito para ocultar seus motivos.
- Verdade? Eu julgava que nada poderia embaraçá-lo. Agora o vejo aí, a esconder-se atrás de uma folha de parreira. Você queria saber tantas coisas. Parece que agora sabe o que é a vergonha. E você, Eva, por que está atrás de Adão? A folha de parreira não é suficiente para a sua vergonha? O que é isso?
- Uma folha de parreira.
Gabriel solta um suspiro.
- Não vamos começar isso de novo, está bem? Você sabe que estou me referindo ao seu ventre proeminente. Talvez Adão possa explicar-me esse fenômeno.
- N-não sei! De repente a barriga dela começou a crescer, sem nenhuma razão.
- Sem nenhuma razão? Sem nenhuma razão? – Berrou Gabriel possesso. – O que vocês acham que fizeram?
Diante daquela situação, Eva resolveu tomar a iniciativa.
- Eu não sei a razão de minha barriga estar crescendo. De qualquer modo, sinto que algo existe dentro de mim. Diga-me o que é, Gabriel, você que sabe tudo.
- Você não sabe?  - Gabriel pergunta com desdém. – Eu sei tudo? O que me diz daquela criatura rastejante, com quem você tanto conversou? Ela, certamente, deveria ter uma resposta para as suas perguntas, não?
- Nunca mais a vimos, desde que... – Tenta responder Adão, no lugar de Eva
- Desde que comeram o fruto proibido! Claro! Ela conseguiu o que queria. Por que iria se preocupa com vocês? Mas a responsabilidade da ordem no Éden repousa sobre meus ombros. Não fui ouvido quando os adverti para não tocarem no fruto. Agora terão que assumir as consequências daquilo que fizeram.
- Ora! O que fizemos? Nada mais do que usar das prerrogativas que nos deu o Criador!
- Sim! E a primeira coisa que você faz é ficar grávida!
- Grávida? – Perguntou Adão assustado.
- Grávida? – Repetiu Eva, com uma expressão estranha no olhar.
- Exatamente! Isso que você carrega no ventre é um filho, ou melhor, dois filhos! Pelo tamanho da barriga, certamente você terá gêmeos.
- Filhos! Eu vou ter filhos! – Falou Eva emocionada.
- Então esse é o segredo. – Disse Adão atônito. A ficha tinha caído! - Finalmente eu percebo aquilo que me foi negado, por tanto tempo.
- Bem...Você sempre foi um pouco lento para entender. De qualquer modo, agora vocês irão saber o que foi escrito por linhas tortas.
- Seja o que for, já não importa! – Responde Adão, já farto daquela celeuma toda.
- Sim! Não queremos mais saber de seu jogo de palavras vazias! – Corroborou Eva, cheia de si, com a atitude de Adão.
- Ah! É assim? Só porque experimentaram um pouco de sacanagem, já pensam que sabem tudo! – Falou Gabriel colérico, ao tirar a espada da bainha. – Pois já que renegaram as minhas palavras, estão expulsos do Éden para todo o sempre.
- Isso é arbitrariedade! – Falou Eva.
- Puro casuísmo! – Disse Adão.
- Oh! É mesmo? Pois saibam que o Éden não foi projetado para aumento de população. Além disso, o regulamento do condomínio, do qual eu sou o síndico, não permite crianças.
- Mas... – Começou Adão, tentando protestar.
- Basta! Vão embora para a terra, ganhar o sustento com o suor de seus rostos. Acabou a moleza! Xô! Xô!
Então, sem alternativa, Adão e Eva vão embora do Paraíso. Logo depois, a serpente reaparece diante de Gabriel.
- O que você está fazendo aqui?
- Esqueceu nossa aposta, “Biel”?
- Schh! Não me chame assim! É claro que não esqueci, mas você não poderia esperar um pouco mais?
- Você perdeu! Agora deixe de rodeio e paga!
- Está bem! Toma! Toma! – Disse Gabriel, enquanto entrega a espada para a serpente. – Mas saiba que ter usado Eva foi um golpe baixo.
- Naturalmente! Esperava outra coisa de mim? – Retruca o ofídio, com uma risadinha de satisfação.
- Na verdade não. Mas você sempre me surpreende!
- Mas bem que você gosta, não é? Seu danadinho!
Sem uma resposta à altura, Gabriel prefere se calar.
- Ora! Não se aborreças por isso, meu caro! Se você for bonzinho, eu deixo segurar a minha espada, de vez em quando, está bem?
- Nem em mil anos! Não quero nada de você!
- Deixa disso “Bielzinho”. Você sabe que estamos ligados um ao outro...
- Essa é a minha sina!
- Bobagem! Agora o Paraíso é nosso! – Disse a serpente insinuante e cheia de segundas intenções.

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