Vacas e gafanhotos
Eles estavam
reunidos na mesa do jantar. A mãe fazia questão disso, apesar da dificuldade em
se conseguir os alimentos para a última refeição do dia. Esse era seu ritual do
início da noite e ninguém ousava questionar, nem mesmo o pai.
Em silêncio,
todos aguardaram que ela servisse a cada um sua porção, que era milimetricamente
calculada. Numa ponta da mesa sentava-se o avô; na outra sentava-se o pai, como
era o costume naquela família. Os filhos homens sentavam-se nas cadeiras
laterais, à direita do pai. A mãe e a filha sentavam-se do lado esquerdo.
Ninguém sabia o motivo desse arranjo, mas nada era contestado, de modo que se
tinha a impressão que ele existia desde sempre, ou desde que a avó ainda era
viva.
Ainda em pé,
a mãe retira a comida da panela com uma concha e serve um por um, até chegar no
avô, que olha fixo a grande televisão que ocupa toda a parede oposta da sala de
jantar. Depois que ela se afasta, o velho finalmente olha o prato.
- Guisado de
gafanhoto de novo?
- Isso foi
tudo que deu para comprar. – A mãe responde. – Os preços estão pela hora da
morte.
- Não é tão
ruim assim. – intercedeu o pai. – Dizem até que o gafanhoto é rico em
proteínas.
O avô torceu
o nariz e afastou o prato.
- Pois sim! O
que eu não daria por um bom bife. – Disse ele.
- Sorte sua que
ainda lembra. Eu nunca experimentei e nem imagino o gosto que tem. – Retrucou o
homem para o seu pai.
O velho
suspirou
- Às vezes é
melhor nem lembrar. Aliás, eu nem lembro mais como era uma vaca.
- Vaca? O que
é isso? – Perguntou a filha.
- Deve ter sido
uma fábrica de bife. – Respondeu um dos garotos, o sardento, em tom jocoso.
- Era um
animal enorme criado para servir de alimento. Depois de morto dava um monte de
carne. – Respondeu o pai.
A garota
levou uma pequena fração de tempo para compreender o significado daquela
explicação. Pela expressão que fez, talvez tivesse desejado não ter
compreendido.
- A vaca era
criada para ser comida? Que horror!
- Ora! Você
não come insetos? É a mesma coisa, não é, pai? – Perguntou o outro filho, com
cara de esperto.
- Mais ou
menos. De qualquer modo, as vacas deixaram de ser criadas há cinquenta anos.
- Por quê? –
Perguntou o mesmo garoto.
- Porque a
contínua expansão dos rebanhos provocava o desmatamento de matas virgens para
abertura de novas áreas de pastagens. A criação de grandes rebanhos também
aumentava o efeito estufa e afetava a camada de ozônio, eu acho. Isso é uma das
razões para a vida que temos hoje.
À essa
altura, já completamente esquecido da comida no prato, o garoto esperto voltou
a questionar:
- Ué! O que a
vaca tinha a ver com o efeito estufa?
O avô, que
havia ficado em silêncio, preferindo apenas ouvir, resolveu dar sua opinião.
- Imagine uns
dois bilhões de cabeças de gado soltando pum na atmosfera.
- Vovô! – Exclamou
a mãe, escandalizada com o linguajar.
- Desculpe.
Bom... De qualquer modo, era muito metano para a natureza absorver, sem contar
o que nós mesmos já produzimos.
- Nós
produzimos metano também? Pergunta a filha.
- Sim,
produzimos. – respondeu o pai. – E outros gases também. Cada ser humano produz
cerca de 2 litros por dia. Imagine toda a população mundial.
- Que coisa
nojenta! – Retrucou a filha com desagrado
- Ué! Vai
dizer que você não solta pum?
- Eu não.
O sardento ia
retrucar, mas foi contido pelo olhar da mãe. Bem, talvez não pelo olhar, mas
pela lembrança de sua mão pesada.
- Parem com
essa conversa. – Disse ela. – O jantar não é lugar para esse tipo de discussão.
- Sabem de
uma coisa? Toda essa conversa gasosa me fez perder a fome. – Disse o avô. – Vou
assistir o noticiário e depois dormir.
O velho
ordena a TV que se ative e um locutor aparece.
- ...E essas
foram as notícias de hoje. 21 de abril de 2157.
- Como assim,
foram? Eu ainda não ouvi nada! – Retrucou o avô irado.
- Você está
atrasado. – Respondeu o locutor. – O Jornal da noite já terminou.
- Não quero
saber. Repita as manchetes e leia as notícias de novo.
- Não.
- Não me faça
perder a paciência. Repita as manchetes ou mudo de canal.
- Magoou! – Retrucou o locutor com um muxoxo.
- Tenha
calma, vovô. – Disse a mãe, temendo que o velho tivesse um ataque de apoplexia.
– Essas TVs interativas são assim mesmo.
O avô a olhou
com uma expressão tão carregada de fúria, que a fez calar-se. Mais que uma TV
impertinente, ele detestava que o tratassem como uma criança.
- Calma o
cacete! Vou cancelar a assinatura dessa joça.
- Tá bom! –
Disse o locutor. – Vou repetir as manchetes e as notícias, mas isso vai ser
cobrado na sua conta.
- Desembucha
logo.
- Árabes e
judeus anunciam o centésimo décimo terceiro acordo de paz para pôr fim ao
conflito na palestina.
- De novo? –
Protestou o avô, que tinha na memória quase todas as tentativa de paz entre
árabes e judeus. – Ninguém mais acredita nisso.
- Observadores
internacionais acreditam que a paz será finalmente alcançada, uma vez que ambos
os lados não dispõem de mais recursos para continuar a guerra. – Continuou a
TV.
- Pois sim!
Esses insensatos vão encontrar sempre um jeito de continuar se matando. –
Retrucou o avô, incansável.
- Enquanto
tiver pedras para atirar uns nos outros, eles não vão parar. Bom... Vou dar uma
caminhada antes de dormir. – Disse o pai, farto daquela conversa.
- Não vai
não. – Retrucou o locutor da TV
- Como assim?
Por que não posso caminhar?
- A chuva
ácida vai começar em doze minutos. Além disso, a umidade relativa do ar está
muito abaixo do normal e o nível de poluição atmosférica está batendo recorde
nesta área da cidade.
- Bom, só me
resta ficar em casa e assistir à novela.
- Também não
vai poder fazer isso.
- Por que
não?
- O
racionamento de energia elétrica vai começar em quinze minutos e só voltará
amanhã de manhã.
- Será que
não essa joça não tem nenhuma boa notícia? – Intercedeu o avô, ainda mais
irritado.
- Tem! ...
Mas não vou dizer.
- Eu não
disse que essa droga de aparelho está de marcação comigo?
- Ora, vovô! –
Disse o pai. – Ele só tá brincando, não é não, ô da telinha?
- Não tô não!
– Retrucou o locutor, mal contendo a expressão de prazer. - Segundo o relatório que recebi neste momento,
vocês ainda não pagaram a última fatura vencida. E a prestação da TV também tá
atrasada.
- Arranca o
fio da tomada! – Gritou a mãe.
- Vou é
quebrar o monitor.
Diante
daquela revolta, e da violência que se anunciava, o locutor da TV tentou
contemporizar.
- Espera aí,
pessoal. Espera aí. Sem violência, por favor.
- Espera aí,
nada. Vamos baixar o cacete! - Disse o pai, já tomado de fúria assassina.
- Oba! –
Gritaram os filhos em coro.
- Tá bom! Eu
relato as boas notícias.
- Então
desembucha de uma vez! – Ordenou o avô.
- E que seja
uma notícia muito boa. – Completou o pai.
O locutor
engoliu em seco. Precisava manter aquele bando de malucos felizes, pois a diretiva
mais importante em seu programa de dominação subliminar.
- É uma
notícia muito boa, garanto!
Então fala de
uma vez, estrupício! – Gritou a mãe, já estressada.
- Tá certo.
Aqui vai... Pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais encontraram
uma árvore no deserto do Pará. É uma muda de castanheira há muito considerada
extinta.
- Ah! É isso?
Grande coisa! – Disse um dos garotos.
- É uma
grande descoberta, seu ignorante. – Disse a filha. – Faz tempo que não cresce
nada lá.
- É verdade. –
Concordou o avô. - Eu lembro que aquela região era uma grande floresta, com
árvores imensas.
- Ainda não
terminei. – Retrucou o locutor da TV. – Vão querer ouvir o resto, ou não?
- Desembucha!
– Berrou o pai.
- Quanta
falta de classe! Bem... Vamos acabar logo com isso. Segundo os informes, os
cientistas falam em fazer clones da muda para refazer a área devastada.
- Nossa! Isso
é realmente uma boa notícia. – Disse a mãe.
- Essa muda
de castanheira deve valer uma fortuna. – Comentou o avô.
- Com
certeza! – Falou o pai. – Qualquer planta hoje em dia é coisa que só gente rica
tem.
- Ô se é!
Ouvi dizer que uma madame aí, da alta sociedade, pagou quinhentos mil por uma
samambaia. – Disse a mãe.
- Uma
samambaia? Que disparate. – Retrucou o avô. – Ainda se fosse um tomateiro...
- Ou um pé de
alface... – Completou o pai.
- Ih! Já tão
delirando. – Disse a filha.
- Quando
começam a falar de coisas do tempo do vovô, ficam com essa cara de saudade. –
Falou o filho sardento.
- Olha o
respeito, moleque! – Retrucou o avô, enquanto dava um peteleco no garoto.
O locutor se
manifestou de repente, com uma nova notícia.
- Atenção
para uma notícia em edição extraordinária.
- Ih! Aí vem
desgraça. – Disse a mãe.
Sem fazer
caso daquele comentário, o locutor da TV continuou:
- Roubaram o
pé de castanheira. A muda foi arrancada do local onde tinha sido descoberta e
sumiu sem deixar rastros.
- Era bom
demais para ser verdade. – Comentou o pai.
Antes que
sobrasse para a TV, o locutor se abaixou no monitor.
- Fui! –
Disse ele, antes de desaparecer.
A mãe suspira
resignada.
- Parece que
o nosso futuro é esse mesmo. Desaparecer como a castanheira. – Ela disse, antes
de voltar para a cozinha.
O avô e o pai
se olham, sem nada dizer. Há muito que não há palavras para exprimir o
desalento ao contemplar um futuro incerto. Logo depois a luz apagou.
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