Monday, January 09, 2017

Vacas e Gafanhotos


Vacas e gafanhotos

Eles estavam reunidos na mesa do jantar. A mãe fazia questão disso, apesar da dificuldade em se conseguir os alimentos para a última refeição do dia. Esse era seu ritual do início da noite e ninguém ousava questionar, nem mesmo o pai.
Em silêncio, todos aguardaram que ela servisse a cada um sua porção, que era milimetricamente calculada. Numa ponta da mesa sentava-se o avô; na outra sentava-se o pai, como era o costume naquela família. Os filhos homens sentavam-se nas cadeiras laterais, à direita do pai. A mãe e a filha sentavam-se do lado esquerdo. Ninguém sabia o motivo desse arranjo, mas nada era contestado, de modo que se tinha a impressão que ele existia desde sempre, ou desde que a avó ainda era viva.
Ainda em pé, a mãe retira a comida da panela com uma concha e serve um por um, até chegar no avô, que olha fixo a grande televisão que ocupa toda a parede oposta da sala de jantar. Depois que ela se afasta, o velho finalmente olha o prato.

- Guisado de gafanhoto de novo?
- Isso foi tudo que deu para comprar. – A mãe responde. – Os preços estão pela hora da morte.
- Não é tão ruim assim. – intercedeu o pai. – Dizem até que o gafanhoto é rico em proteínas.
O avô torceu o nariz e afastou o prato.
- Pois sim! O que eu não daria por um bom bife. – Disse ele.
- Sorte sua que ainda lembra. Eu nunca experimentei e nem imagino o gosto que tem. – Retrucou o homem para o seu pai.
O velho suspirou
- Às vezes é melhor nem lembrar. Aliás, eu nem lembro mais como era uma vaca.
- Vaca? O que é isso? – Perguntou a filha.
- Deve ter sido uma fábrica de bife. – Respondeu um dos garotos, o sardento, em tom jocoso.
- Era um animal enorme criado para servir de alimento. Depois de morto dava um monte de carne. – Respondeu o pai.
A garota levou uma pequena fração de tempo para compreender o significado daquela explicação. Pela expressão que fez, talvez tivesse desejado não ter compreendido.
- A vaca era criada para ser comida? Que horror!
- Ora! Você não come insetos? É a mesma coisa, não é, pai? – Perguntou o outro filho, com cara de esperto.
- Mais ou menos. De qualquer modo, as vacas deixaram de ser criadas há cinquenta anos.
- Por quê? – Perguntou o mesmo garoto.
- Porque a contínua expansão dos rebanhos provocava o desmatamento de matas virgens para abertura de novas áreas de pastagens. A criação de grandes rebanhos também aumentava o efeito estufa e afetava a camada de ozônio, eu acho. Isso é uma das razões para a vida que temos hoje.
À essa altura, já completamente esquecido da comida no prato, o garoto esperto voltou a questionar:
- Ué! O que a vaca tinha a ver com o efeito estufa?
O avô, que havia ficado em silêncio, preferindo apenas ouvir, resolveu dar sua opinião.
- Imagine uns dois bilhões de cabeças de gado soltando pum na atmosfera.
- Vovô! – Exclamou a mãe, escandalizada com o linguajar.
- Desculpe. Bom... De qualquer modo, era muito metano para a natureza absorver, sem contar o que nós mesmos já produzimos.
- Nós produzimos metano também? Pergunta a filha.
- Sim, produzimos. – respondeu o pai. – E outros gases também. Cada ser humano produz cerca de 2 litros por dia. Imagine toda a população mundial.
- Que coisa nojenta! – Retrucou a filha com desagrado
- Ué! Vai dizer que você não solta pum?
- Eu não.
O sardento ia retrucar, mas foi contido pelo olhar da mãe. Bem, talvez não pelo olhar, mas pela lembrança de sua mão pesada.
- Parem com essa conversa. – Disse ela. – O jantar não é lugar para esse tipo de discussão.
- Sabem de uma coisa? Toda essa conversa gasosa me fez perder a fome. – Disse o avô. – Vou assistir o noticiário e depois dormir.
O velho ordena a TV que se ative e um locutor aparece.
- ...E essas foram as notícias de hoje. 21 de abril de 2157.
- Como assim, foram? Eu ainda não ouvi nada! – Retrucou o avô irado.
- Você está atrasado. – Respondeu o locutor. – O Jornal da noite já terminou.
- Não quero saber. Repita as manchetes e leia as notícias de novo.
- Não.
- Não me faça perder a paciência. Repita as manchetes ou mudo de canal.
- Magoou! – Retrucou o locutor com um muxoxo.
- Tenha calma, vovô. – Disse a mãe, temendo que o velho tivesse um ataque de apoplexia. – Essas TVs interativas são assim mesmo.
O avô a olhou com uma expressão tão carregada de fúria, que a fez calar-se. Mais que uma TV impertinente, ele detestava que o tratassem como uma criança.
- Calma o cacete! Vou cancelar a assinatura dessa joça.
- Tá bom! – Disse o locutor. – Vou repetir as manchetes e as notícias, mas isso vai ser cobrado na sua conta.
- Desembucha logo.
- Árabes e judeus anunciam o centésimo décimo terceiro acordo de paz para pôr fim ao conflito na palestina.
- De novo? – Protestou o avô, que tinha na memória quase todas as tentativa de paz entre árabes e judeus. – Ninguém mais acredita nisso.
- Observadores internacionais acreditam que a paz será finalmente alcançada, uma vez que ambos os lados não dispõem de mais recursos para continuar a guerra. – Continuou a TV.
- Pois sim! Esses insensatos vão encontrar sempre um jeito de continuar se matando. – Retrucou o avô, incansável.
- Enquanto tiver pedras para atirar uns nos outros, eles não vão parar. Bom... Vou dar uma caminhada antes de dormir. – Disse o pai, farto daquela conversa.
- Não vai não. – Retrucou o locutor da TV
- Como assim? Por que não posso caminhar?
- A chuva ácida vai começar em doze minutos. Além disso, a umidade relativa do ar está muito abaixo do normal e o nível de poluição atmosférica está batendo recorde nesta área da cidade.
- Bom, só me resta ficar em casa e assistir à novela.
- Também não vai poder fazer isso.
- Por que não?
- O racionamento de energia elétrica vai começar em quinze minutos e só voltará amanhã de manhã.
- Será que não essa joça não tem nenhuma boa notícia? – Intercedeu o avô, ainda mais irritado.
- Tem! ... Mas não vou dizer.
- Eu não disse que essa droga de aparelho está de marcação comigo?
- Ora, vovô! – Disse o pai. – Ele só tá brincando, não é não, ô da telinha?
- Não tô não! – Retrucou o locutor, mal contendo a expressão de prazer. -  Segundo o relatório que recebi neste momento, vocês ainda não pagaram a última fatura vencida. E a prestação da TV também tá atrasada.
- Arranca o fio da tomada! – Gritou a mãe.
- Vou é quebrar o monitor.
Diante daquela revolta, e da violência que se anunciava, o locutor da TV tentou contemporizar.
- Espera aí, pessoal. Espera aí. Sem violência, por favor.
- Espera aí, nada. Vamos baixar o cacete! - Disse o pai, já tomado de fúria assassina.
- Oba! – Gritaram os filhos em coro.
- Tá bom! Eu relato as boas notícias.
- Então desembucha de uma vez! – Ordenou o avô.
- E que seja uma notícia muito boa. – Completou o pai.
O locutor engoliu em seco. Precisava manter aquele bando de malucos felizes, pois a diretiva mais importante em seu programa de dominação subliminar.
- É uma notícia muito boa, garanto!
Então fala de uma vez, estrupício! – Gritou a mãe, já estressada.
- Tá certo. Aqui vai... Pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais encontraram uma árvore no deserto do Pará. É uma muda de castanheira há muito considerada extinta.
- Ah! É isso? Grande coisa! – Disse um dos garotos.
- É uma grande descoberta, seu ignorante. – Disse a filha. – Faz tempo que não cresce nada lá.
- É verdade. – Concordou o avô. - Eu lembro que aquela região era uma grande floresta, com árvores imensas.
- Ainda não terminei. – Retrucou o locutor da TV. – Vão querer ouvir o resto, ou não?
- Desembucha! – Berrou o pai.
- Quanta falta de classe! Bem... Vamos acabar logo com isso. Segundo os informes, os cientistas falam em fazer clones da muda para refazer a área devastada.
- Nossa! Isso é realmente uma boa notícia. – Disse a mãe.
- Essa muda de castanheira deve valer uma fortuna. – Comentou o avô.
- Com certeza! – Falou o pai. – Qualquer planta hoje em dia é coisa que só gente rica tem.
- Ô se é! Ouvi dizer que uma madame aí, da alta sociedade, pagou quinhentos mil por uma samambaia. – Disse a mãe.
- Uma samambaia? Que disparate. – Retrucou o avô. – Ainda se fosse um tomateiro...
- Ou um pé de alface... – Completou o pai.
- Ih! Já tão delirando. – Disse a filha.
- Quando começam a falar de coisas do tempo do vovô, ficam com essa cara de saudade. – Falou o filho sardento.
- Olha o respeito, moleque! – Retrucou o avô, enquanto dava um peteleco no garoto.
O locutor se manifestou de repente, com uma nova notícia.
- Atenção para uma notícia em edição extraordinária.
- Ih! Aí vem desgraça. – Disse a mãe.
Sem fazer caso daquele comentário, o locutor da TV continuou:
- Roubaram o pé de castanheira. A muda foi arrancada do local onde tinha sido descoberta e sumiu sem deixar rastros.
- Era bom demais para ser verdade. – Comentou o pai.
Antes que sobrasse para a TV, o locutor se abaixou no monitor.
- Fui! – Disse ele, antes de desaparecer.
A mãe suspira resignada.
- Parece que o nosso futuro é esse mesmo. Desaparecer como a castanheira. – Ela disse, antes de voltar para a cozinha.
O avô e o pai se olham, sem nada dizer. Há muito que não há palavras para exprimir o desalento ao contemplar um futuro incerto. Logo depois a luz apagou.

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