O tempo mudou completamente no plantão seguinte. A noite apresentava um céu
estrelado, com a lua crescente no horizonte a contemplar a escuridão. Devo
dizer que minhas expectativas, baseadas nos acontecimentos insólitos da
primeira noite, frustrou-se completamente naquela primeira semana. Nada
aconteceu na segunda noite ou nas seguintes. Nada de invasores góticos ou
ladrões de túmulos. Tampouco houve qualquer manifestação sobrenatural que eu
pudesse ter notado, exceto pela sensação quase permanente de que eu não estava
só
Apesar da inquietação, ou por causa dela, consegui aproveitar bastante
aquelas noites insones. Dei sequência à novela que dormitava já há algum tempo
num arquivo quase esquecido do meu notebook. Se conseguisse manter esse ritmo,
em breve teria meu segundo romance disponibilizado nos sites que hospedavam
literatura para leitura on line. A
perspectiva não era muito estimulante do ponto de vista financeiro.
Provavelmente eu ainda continuaria no trabalho de vigia noturno por muito
tempo. Era o jeito de garantir o pagamento das contas no fim do mês.
Na segunda semana eu já havia praticamente esquecido dos acontecimentos
da primeira noite. Contudo, tinha a impressão que meu espírito estava sendo
deliberadamente desarmado para o que veria a seguir.
Aconteceu numa noite fria. Estávamos no princípio do inverno e havia
dias em que o vento parecia querer congelar até os espectros errantes que
pairavam na minha imaginação. Era o meu segundo plantão com o tempo naquelas
condições, e nada indicava que fosse mudar nos dias que se seguiriam. Naquela
noite, minha atenção foi despertada por uma silhueta projetada na parede de um
túmulo. De onde eu estava podia ver alguém calmamente sentado sobre uma lápide.
Na verdade, tudo o que eu via era um vulto. Não dava para distinguir claramente
quem ou o que eu estava vendo, devido às sombras projetadas pela copa das
árvores, agitadas pelo vento.
Decidi me aproximar e dar uma lição no invasor. Estranhamente, eu já
considerava o cemitério meu território particular e me preparava para afugentar
quem ousava perturbar a paz do meu lugar. Sorrateiro, ladeei silenciosamente o
túmulo onde o vulto estava sentado, de modo que minha aproximação não fosse
notada.
Cheguei bem perto do invasor, mas não conseguia vê-lo sem denunciar
minha presença. Então, respirando fundo, emiti um gemido digno de qualquer alma
penada. O som era capaz de arrepiar os cabelos do mais corajoso dos homens.
Pelo menos foi o que me pareceu. A criatura, digamos assim, nem se mexeu.
Desconcertado com o pouco caso, eu já me preparava para soltar uma gargalhada
insana, quando o misterioso indivíduo se voltou para mim. Era a garota gótica
do meu primeiro dia de trabalho.
Naquele momento, quem quase se assustou fui eu. Devo dizer que isso se
deu mais pelo inesperado da situação do que por qualquer significado
sobrenatural que poderia haver. Na verdade, se ela fosse algum fantasma, não
teria me chocado tanto.
— Oh! É você? — Ela perguntou com um leve sorriso triste. Eu me
aproximei ainda tentando me recompor da surpresa ante a presença dela ali,
sentada sobre uma tumba na escuridão. Apesar da noite fria e úmida, ela usava
um vestido preto, de tecido leve e esvoaçante. Embora lhe caísse muito bem, eu
não podia imaginar algo mais inadequado para uma mulher vestir naquela ocasião.
Entretanto, ela parecia perfeitamente à vontade, sem demonstrar nenhum
desconforto.
— Olá. O que você está fazendo aqui? — Perguntei do modo mais gentil
possível. Olha aí, O meu velho romantismo atacando de novo!
— Estava esperando você. — Ela disse com um olhar felino. Depois riu da
minha expressão abobalhada.
— Você lembra de mim? — Eu perguntei intrigado.
— Não... Na verdade, não sei. Você me é vagamente familiar.
Por alguma razão que não vem ao caso, não mencionei a primeira vez que a
vi. Decidi esperar e saber mais sobre ela. Seu aspecto enganadoramente frágil e
quase sobrenatural atiçava minha imaginação. Ela parecia a personagem de minha
novela, uma heroína marcada por um destino sombrio. Na verdade, eu ainda não
sabia que rumos minha história tomaria, mas minha melancólica heroína parecia
estar diante de mim naquele momento.
— Talvez já tenhamos nos encontrado aqui. — Disse-lhe, para ver sua
reação.
— É possível. Venho sempre aqui, mas ignoro a razão disso. Quando me dou
conta já me vejo contemplando essas lápides, como se os mortos que aqui estão
enterrados desejassem minha companhia. — Ela explicou com uma voz
deliciosamente rouca.
—Você tem um hábito... Não muito comum. — Gaguejei, meio sem jeito.
Ela pareceu ter percebido o efeito que causava em mim, apesar daquele piercing no nariz. Levantou-se, ergueu
os braços e se espreguiçou como uma gata. Era uma visão encantadoramente forte,
apesar do aspecto franzino do seu corpo delgado.
— E você? O que faz aqui? Não parece do tipo que gosta de cemitério. —
Ela comentou com uma ironia ferina, aquela que só algumas mulheres conseguem
expressar.
— Eu trabalho aqui. — Respondi de modo casual. Não ia deixar aquela magricela
me encostar na parede. — Que tipo de gente gosta de cemitério?
— Tipos como eu, acho. A solidão e a melancolia presentes na morte me
fazem bem, sei lá. O trágico me atrai e, às vezes, desejo o abraço da morte. Você
deve imaginar que sou louca, não?
— Não.
— Não? — Ela repetiu a negativa como uma pergunta. Havia uma curiosidade
estampada em seu olhar.
— Tem dias que eu me sinto assim. — Respondi, surpreendentemente sincero.
— Sério? Não consigo imaginar você cortejando a morte, ainda que fosse
em termos meramente retóricos.
Vi ali uma oportunidade para impressionar a garota. Mesmo correndo o
risco de fazer papel ridículo, recitei um velho poema que eu havia escrito numa
época distante, quando era jovem e ainda tinha a pretensão de me aproximar de
Poe.
Quando terminei de recitar, me senti um pouco ridículo e lamentei a
ousadia. Provavelmente não a tinha agradado, mas ela teve a gentileza de ouvir-me
em silêncio, pelo menos.
— Gostei. — Disse com simplicidade. — Você não é apenas um vigia
noturno, é?
— Sou um escritor nas horas vagas. — Respondi. Não gostava muito de
falar de minhas pretensões literárias, mas apreciei o interesse e a sua
perspicácia.
— Esse poema que você acabou de declamar foi escrito há muito tempo, não
foi? Hoje não conseguiria escrevê-lo.
— Não sei.
— Não escreveria, não. Você não é mais assim. Já aprendeu a lidar com
seus erros e suas vergonhas. Tornou-se cínico e perdeu a empatia, pois já não
se importa com os erros que cometeu e já não se constrange com o olhar alheio.
Não sente mais a dor e a tristeza que flutuam no ar.
Ela estava me provocando, mas eu estava decidido a não repetir o erro
que cometi, quando recitei o poema. Contudo, o mundo sombrio que habitava em
mim se rejubilou e pulsava para sair. Aquela mulher estranha falou de coisas,
de sentimentos que eu tinha e nunca havia expressado, a não ser em patéticas
tentativas poéticas na minha juventude. Ao falar de coisas que dizia não
encontrar em mim, ela penetrou com facilidade minhas defesas emocionais e isso
me incomodou. Era perturbador e desconfortável ouvir os segredos de minha alma,
ditos por alguém que eu mal conhecia.
— Do que você está falando?
— Você não as sente mais. — Ela retrucou, dando de ombros. — As dores
dos outros, quero dizer. Você não percebe mais os fragmentos das almas
dilacerados pela existência opressiva. Não houve mais o brado exultante, quando
elas se libertam, erguidas pelo abraço do anjo da morte.
— Não, você está errada. — Disse-lhe eu, quase num sussurro. — Eu ainda
ouço o gemido das almas, e já quis juntar-me a elas algumas vezes.
— Verdade? — Disse-me ela com desdém, enquanto rodeava o túmulo para se
aproximar de mim. Seus olhos pareciam ter-se tornado negros. Eu juraria que
eram castanhos momentos antes. Isso era perturbador, pois raramente me engano
com detalhes descritivos.
De repente ela se afastou e sentou-se longe de mim. Não longe o bastante
para que eu não notasse que seus olhos eram realmente castanhos. Talvez eu
estivesse gagá, ou com excesso de imaginação.
— Você ficou assustado. Está com medo de mim?
A garota parecia querer provocar
minha ira, mas era inútil naquele momento. Eu já havia me recomposto, mas não
fiquei propriamente assustado. Apenas senti que havia algo estranho em sua
atitude e fiquei curioso, digamos assim. Por outro lado, ela tinha razão quanto
ao meu cinismo, mas não de todo. Eu ainda a achava tragicamente bela, mas não a
deixaria perceber meus devaneios românticos. Assim, resolvi tomar a iniciativa
naquela conversa sem sentido.
— Afinal de contas, quem é você? O que faz aqui?
Ela riu. Um riso cristalino e triste. Por um momento pensei que
estivesse tentando zombar de mim novamente, mas ela respondeu às perguntas com surpreendente
seriedade.
— Eu sou Berenice. Agora é sua vez. Como se chama?
— Victor.
— Como Victor Hugo. Um bom nome para um escritor.
— Na verdade é uma referência a um personagem. – Respondi. Era minha vez
de provoca-la.
— Qual?
— Victor Frankenstein. Ela não pareceu se surpreender com isso. Na
verdade, parecia ter gostado da referência.
— Um nome apropriado, para quem parece tão sombrio.
— Minha mãe era uma admiradora de Mary Shelley. — Expliquei. — Agora
fale mais um pouco de você.
— Por que? — Ela perguntou, subitamente atenta.
— Por nada. Apenas gostaria de conhece-la melhor.
— Por que? — Ela repetiu a pergunta como se estivesse incomodada com
minha curiosidade.
Aquilo me deixou constrangido, como se estive cometendo algum tipo de
assédio ou conduta inadequada.
— Está bem. — Ela condescendeu, para meu alívio. — Eu já disse que não
sei por que venho aqui. Não lembro nem mesmo como venho parar neste lugar. Acho
que me deixo atrair por essas lápides e pela atmosfera daqui.
— E aqueles seus amigos?
— Aqueles idiotas não são meus amigos. Nunca os tinha visto antes.
Ela encarou meu olhar sem pestanejar. Parecia dizer a verdade, mas algo
não se encaixava no que dizia, a menos que a dança que fizera naquela noite
tivesse sido apenas um acontecimento fortuito. Contudo, em minha lembrança, eu
tinha a certeza de que ela fazia parte daquele bando de malucos.
— Então por que dançava para eles? A pergunta provocou-lhe apenas um
cômico arquear das graciosas sobrancelhas.
— Eu dançava? Ficou maluco?
— Talvez eu tenha ficado realmente maluco. — Disse-lhe, dando de ombros.
Era minha vez de mostrar-me sarcástico. — Mas você seguia o som do atabaque
tocado por um deles com muita entrega. Parecia possuída por alguma força
estranha, eu diria.
— Não lembro disso.
— Não?
— Já disse que não. — Respondeu com uma ponta de irritação. — Mas lembro
que me aproximei daquele grupinho patético. Foi o suficiente para perceber que
não eram góticos de verdade. Quando muito, eram apenas góticos de butique.
Estava curiosa com o que eles pretendiam fazer ali. Depois disso lembro apenas
que cai de algum lugar, me assustei e fugi.
Ela realmente não lembrava de nada, ou então eu já estava deliberadamente
ocultando a verdade. De qualquer modo deveria haver alguma explicação para
lembranças tão diferentes sobre o mesmo acontecimento, mas duvido que existam
explicações plausíveis para tudo o que presenciei naquela noite. Temendo que
ela se aborrecesse e fosse embora, mudei de assunto com a sutileza que me era
peculiar.
— Você não tem medo de vir aqui à noite?
Ela considerou minha pergunta por um momento, antes de cair na
gargalhada. Contagiado, eu ri também. Tinha realmente feito uma pergunta
idiota, mas ela pareceu entender que a pergunta, em si, não tinha nenhuma
importância. Era apenas uma tentativa meio atrapalhada de continuarmos a
conversa, sem o assunto que a perturbava.
— Você quer saber se tenho medo dos mortos daqui, ou dos vivos? Tanto
faz, não é? Geralmente eu tenho medo do que não conheço. Por isso, da morte já
não tenho medo. É uma velha conhecida em minha vida.
Ela riu do paradoxo que inadvertidamente construíra.
— Tenho medo dos vivos. — Continuou. — Os vivos podem ser cruéis quando
não se importam, não é? Na maioria das vezes é assim mesmo, os vivos são
movidos por motivos mesquinhos. Enquanto que a morte, essa sim, só quer nos
abraçar e acalentar, para que esqueçamos a dor.
— A dor?
— Sim, como no seu poema. Acho que hoje eu também não queria existir,
mas a morte nem sempre resolve isso.
Demorei um pouco a perceber que ela estava se referindo à existência pós-morte.
Se de fato houvesse algo após a morte, morrer não daria o descanso pretendido.
A existência apenas mudaria de plano, com a sufocante perspectiva da
eternidade. Felizmente, eu não tinha essa crença. Também não via a morte de um
ponto de vista tão sedutor. Na maioria das vezes eu gostava da vida, embora realmente
quisesse me esquecer em alguns momentos, como disse no poema.
— Não é a morte que dá sentido à vida? — Provoquei. — O que seria da
vida sem sua antítese?
Ela me fitou com aquela expressão estranha no olhar.
— A morte parece fasciná-lo mais do que admite.
— Talvez, mas apenas no sentido filosófico, eu acho.
Novamente senti aquele olhar trespassar minha alma. Ela parecia refletir
sobre o que eu disse.
— Você realmente já desejou a morte? Já pensou seriamente nessa
possibilidade, ou apenas queria me impressionar?
Por um momento temi ter ido longe demais em minha tola presunção.
— Na verdade, eu desejei apenas não existir. Às vezes viver é um fardo
pesado demais para mim.
— Você não gostaria de ter nascido. Isso não é exatamente como querer o
abraço da morte. — Ela retrucou com seriedade. Para a maioria dos mortais, o
desejo de morrer não é uma disposição permanente. Limitam-se aos conceitos
aparentes, como aqueles garotos bobos, fantasiados de góticos.
Seu jeito de falar era estranho. Ela parecia agir como se a vida já não
lhe fosse uma condição presente.
— O que você é? Algum tipo de alma penada? — Perguntei com um certo
desapontamento.
— Não. — Ela respondeu com um sorriso malicioso. Os dentes
imaculadamente brancos se sobressaíam nos lábios rubros. — Mas há ocasiões em
que não me sinto exatamente viva.
Em um momento fugaz e inapropriado, eu me dispersei e desejei me perder
naquela boca. Aquela conversa teria ido longe, creio. Havia mais espaço para
novas reflexões sobre vida e morte, mas isso não me interessava. Discussões
filosóficas costumavam ser cansativas para mim e, via de regra, tudo se
esgotava rapidamente na superficialidade das coisas. Grande parte da minha vida
colecionei motivos para me tornar um cínico, como ela logo percebeu. Contudo,
nada podia fazer para me livrar da sensação de que conversas como aquela logo
se esvaziavam em patéticas tentativas dos interlocutores em se sobreporem uns
aos outros, como se a verdade das coisas pudesse emergir das palavras
proferidas por aqueles que detinham mais habilidade verbal. Assim, aquele
assunto também parecia esgotado entre nós. Nesse ponto, temi que ela se
cansasse de minha companhia e fosse embora. Felizmente isso não aconteceu.
— Venha. — Ela disse, depois de um torturante silêncio.
— Para onde?
— Vamos passear. Você é novo por aqui, não é? Vou lhe mostrar os meus
recantos preferidos. Dito isso, pegou minha mão e puxou-me suavemente para
junto de si. O seu toque frio pegou-me desprevenido e acho que estremeci.
— Está com frio? — Ela perguntou. Tive a impressão que havia uma leve
pitada de ironia naquela pergunta. Ela sabia de seus encantos.
— Um pouco. — Respondi de modo pretensamente neutro. Onde vamos?
— Vamos para a parte mais antiga. Lá tem túmulos em arquitetura
neoclássica.
Eu pensei estar imaginando coisas, mas aquilo parecia um passeio
romântico, por mais insólito que fosse. A caminhada, em si, não levou mais que
alguns minutos. A parte mais antiga ficava no início da colina onde o cemitério
havia sido originalmente construído. Isso tinha acontecido em meados do século
XVIII, segundo eu soube ao pesquisar sua história, quando descobri onde ia
trabalhar. A data era coerente com o surgimento do movimento neoclássico. A
garota sabia do que estava falando.
Paramos diante de uma cripta imponente, com um pórtico guarnecido com
quatro colunas jônicas, que lembravam os antigos templos dedicados à deusa Atena.
De onde estávamos eu não consegui ler a identificação, mas tudo indicava que
aquele túmulo deveria pertencer a alguma família ilustre da cidade.
— Este é o meu preferido. — Ela disse. — Parece um bom lugar para deixar
os restos mortais, não acha?
Eu não era partidário de tamanha ostentação, mas me abstive de dar uma
opinião realmente sincera sobre essa questão. Contudo, não poderia negar que
aquele túmulo era uma bela obra. Seguia um estilo arquitetônico bem definido e
tinha um acabamento refinado.
— É lindo. — Respondi simplesmente.
Ela sorriu. Parecia feliz em partilhar seus "tesouros" comigo.
Aquilo me comoveu e eu quase me senti encorajado a dar vazão aos meus devaneios
românticos. Todavia, alguma coisa ainda me travava. Talvez a juventude dela. Berenice
aparentava ter a metade da minha idade e poderia ser minha filha. Tudo poderia
se tornar tão embaraçoso e ridículo, que eu agradeci mentalmente quando um
barulho nos interrompeu.
— O que foi isso? — Perguntei, exageradamente alerta.
— Parece ter vindo da Capela. Ela tinha ficado compreensivelmente tensa,
ou assim me pareceu. De modo que eu sugeri que me esperasse ali, enquanto eu
iria verificar o que acontecia. Eu sabia que a funerária havia trazido um corpo
naquela noite. O defunto aguardava a chegada de parentes distantes e fora
preparado para o enterro na manhã seguinte. Não deveria haver ninguém na
capela.
— Não! Vou com você. Eu frequento esse cemitério há mais tempo, e há
coisas que você ainda não compreende. — Disse ela com um fio de voz.
Aquela afirmação me surpreendeu e, devo dizer, não me deixou nem um
pouco mais tranquilo. O que ela poderia saber do que parecia ser uma ação de
ladrões ou invasores de túmulos? Se é que era isso mesmo que estava
acontecendo. Algo em suas palavras, ou no tom de voz, provocava meus instintos
mais primitivos de autopreservação.
— Está bem. — Concordei. — Mas vamos apenas confirmar o que está
acontecendo e chamar a polícia.
Ela concordou com um aceno de cabeça, sem muita convicção. Berenice
parecia saber o que estava acontecendo. Eu teria feito mais perguntas, mas a
situação não era muito propícia para isso e requeria ação imediata. Então, nos
dirigimos à capela do cemitério sem mais delongas. Eu estava preste a conhecer
pessoalmente um dos aspectos mais torpes da natureza humana.
Com efeito, o que acontecia não era uma ação de ladrões de túmulo. A
velha intuição já me dizia isso, mas o que vimos pela porta entreaberta conseguiu
me surpreender. Lá estava o coveiro, conhecido pela alcunha de Pé Redondo, numa
prática tão infame, quanto insólita.
Debruçado sobre o caixão, o homem estava tão absorto no que fazia, que
não percebeu nossa presença. Com movimentos frenéticos, quase febris, ele
tentava despir o cadáver de uma jovem mulher. Eu fiz menção de tentar impedi-lo,
mas Berenice me conteve e fez sinal de que tinha algo em mente.
Ela fechou os olhos e soltou um gemido. Era um lamento quase inaudível,
mas que de repente pareceu preencher toda a capela. O coveiro estacou e
finalmente percebeu que não estava só. Ele olhou ao derredor, mas não conseguiu
nos ver. O sujeito asqueroso andou ao redor do caixão, enquanto olhava para
todos os lados. Parecia considerar os riscos de continuar o que estava fazendo.
Então, quase sem pensar, soltei o mais tenebroso grito que podia emitir.
Na verdade, eu não sabia que podia fazer aquilo, mas o importante é que havia
dado certo. O coveiro disparou pela porta da capela como se estivesse sendo perseguido
por todos os demônios do inferno.
Quanto a nós, levamos ainda algum tempo para nos recompormos do susto.
Acho que eu teria até mesmo achado algum tipo de humor negro naquela situação,
não fosse a visão do cadáver que quase havia sido violado. Ela já estava
seminua, mas o pior havia sido evitado, creio eu. No entanto, ficou-me a
sensação de pesar pelo ultraje daquela tentativa hedionda.
Depois que saímos da capela, algumas questões me ocorreram. Berenice
pareceu realmente saber coisas que eu ignorava. A interpelei assim que nos
acalmamos. Todavia, ela não parecia muito confortável em me dar explicações
sobre o ocorrido. Então achei melhor não insistir, acreditando que haveria uma
ocasião, no futuro, em que ela pudesse sentir-se mais à vontade para falar
daquilo. Quase sem perceber, eu já esperava revê-la. Isso não era muito
apropriado, em razão de minha função de vigia do cemitério e ela uma invasora.
Afinal, não deveria estar ali.
Quando saímos da capela, o brilho pálido da alvorada já aparecia por
trás das grandes árvores e indicava que a noite se ia. Ao ver o dia
amanhecendo, Berenice pareceu inquieta e logo se despediu, prometendo voltar em
outra noite.
— Promete? — Perguntei, cedendo ao temor de não voltar a vê-la.
Ela sorriu. Não era exatamente um sorriso meigo, mas aquele tipo de
sorriso que uma leoa daria para sua presa. Minha imaginação estava dando saltos
como uma lebre insana.
— Sim. Ainda temos muito para dizer um ao outro, eu acho. A conversa
ainda não se esgotou.
Aquilo teria sido uma promessa? Eu gostaria que Berenice tivesse sido
mais clara, mas ela estava com pressa de ir embora. Eu não a retive, mas não
pude evitar a sensação de que deveria tê-la convencido a ficar comigo. Talvez
tivesse tentado isso, mas de repente a noite em claro começou a pesar e eu
soltei um longo bocejo e voltei para o escritório.
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