Prelúdio
Estava feito! Depois de um longo e cansativo processo, que incluiu
diversas entrevistas, teste psicotécnico, exames médicos e certidões negativas
de débitos com a polícia e justiça, recebi a confirmação de que havia sido
admitido no novo emprego. A entrevistadora deu-me a notícia de um jeito que me
fez pensar que eu havia ganho na loteria. Sem saber ainda como deveria me
sentir, correspondi ao seu sorriso. Era mais um subemprego em minha vida, mas
absurdamente necessário.
— Bem-vindo à nossa "família". — Ela disse com aquele jeito
estranho e impessoal, que parecia contradizer o significado da frase de boas-vindas.
Na verdade, ela pouco se importava e eu também não ligava a mínima, de modo que
estava tudo bem. Isso não evitou que eu me imaginasse a apertar o pescoço da
mulher, até que os olhos saltassem. Era só imaginação, é claro. Apenas um
pensamento fugidio para compensar minha baixa autoestima. Ela parecia tão bem
adaptada às regras desse mundo pequeno-burguês, que talvez jamais pudesse imaginar
o que se passava na cabeça de alguém que estava sentado ali, diante dela.
Enfim, a realidade é essa. Cair fora não é uma opção viável, a menos que você
mude de planeta ou desista de existir.
Depois da sua introdução, a mulher deu-me um manual de procedimentos da
empresa e informações gerais sobre o trabalho que eu iria realizar. Havia sido
admitido numa empresa de serviços terceirizados de vigilância e poderia ser
mandado para qualquer local da cidade. Aquilo não me agradou, mas precisava do
emprego e abanei o rabo como um cachorro obediente. Depois respirei fundo e
perguntei onde seria o meu local de trabalho.
— O Senhor vai trabalhar como vigia noturno no Cemitério Municipal, não
é interessante?
— Muito. — Respondi, quase gaguejando. Não que eu tivesse qualquer
problema com cemitérios, mas isso era tão inesperado que conseguiu me
surpreender.
— Algum problema com isso? — Ela perguntou, ao mesmo tempo em que erguia
uma das sobrancelhas por sobre o aro dos óculos.
— Não, de forma alguma. Até penso
que me convém. Lidar com os mortos deve ser mais fácil do que lidar com os
vivos.
— É verdade. – Ela disse com um sorriso frio. — Não são os mortos que
incomodam naquele cemitério. Tem havido queixas de violação de sepulturas, e
essa é a razão pela qual fomos contratados. O senhor deve se manter atento e
chamar a polícia, se houver alguma tentativa de invasão.
Aquela última informação não me agradava, evidentemente. Entre enfrentar
invasores do mundo dos vivos e assombrações, eu ainda preferia a companhia dos
mortos. Todavia, saí do escritório da empresa disposto a evitar que as almas
penadas fossem incomodadas pelos ladrões de túmulos. Não que me importasse
muito, mas tinha um emprego a zelar e empregos andavam escassos ultimamente.
Vigia noturno de um cemitério não era exatamente o que eu esperava, depois de
anos escrevendo meu primeiro romance. Contudo, logo descobri que as editoras
não ligavam a mínima para minha urgência em ser publicado. Aquele trabalho era
muito importante para mim, uma vez que ninguém se importava com minhas
necessidades básicas, a não ser eu mesmo e minha ex-mulher. Além do mais, o
emprego me permitiria continuar escrevendo. O salário até que não era ruim, para
as necessidades de um sujeito solitário, mas vamos combinar que o cargo de
vigia noturno em um cemitério não faria de mim um sucesso de aceitação social.
Apesar de alguns senões que a nova carreira suscitava, eu cheguei
pontualmente para o primeiro dia de trabalho. Fui recebido pelo administrador
do cemitério, um velhinho falante e bem-humorado. Ele parecia um fauno e
saltitava por entre os túmulos com uma agilidade surpreendente, para a idade
que aparentava. Devia ter lá seus noventa anos, eu acho. Um olhar mais demorado
talvez concluísse que ele já tinha pelo menos um século de existência.
— Você acredita em fantasma? —
Ele perguntou, ao perceber meu olhar sobre si. — Eu não estou falando de mim, é
claro. Ainda não, pelo menos.
Essa última frase foi dita de modo sério, mas seus olhos tinham um
indisfarçável brilho jocoso
— Eu ainda não tenho motivos para acreditar, nem negar a existência
deles. — Respondi do modo mais preciso que pude. Aquela pergunta parecia ter um
propósito específico e achei melhor não me arriscar em polêmicas
desnecessárias.
— Você ficou em cima do muro. —
Ele disse, com uma expressão zombeteira. — Mas não importa. Haverá o dia em que
você terá seus motivos para acreditar em muitas coisas estranhas. Ele esperava
que eu retrucasse, mas permaneci calado. Aquele assunto não era confortável
para mim. Sempre tinha sido assim, desde criança. Todavia, não tinha a menor
intenção de especular sobre isso com um estranho.
— Bom, isso é tudo que tenho para lhe dizer por hoje. Fique atento aos
invasores, mas não queira bancar o herói. Chame a polícia se precisar, ou
espere alguma ajuda.
— Ajuda?
— Sim. Se eles gostarem de você, talvez o ajudem em sua tarefa.
— Eles quem? — Perguntei, fazendo um esforço para permanecer sério.
— Seus novos amigos, é claro. Eles certamente estarão por perto em algum
momento. Vão adorar conhecer você.
Será que ele estava realmente querendo dizer o que eu entendi? Cheguei a
pensar que o velhinho não batia bem da cabeça, mas a crença na existência além-túmulo
não fazia dele um maluco. Muitas pessoas acreditavam nisso. Eu, pessoalmente,
desejava que os espectros que habitavam minha mente sombria realmente
existissem. Até já acreditei que isso fosse possível. Infelizmente, a realidade
da vida adulta, com o cinismo que a acompanha, destruiu minhas fantasias
juvenis.
Depois de mais algumas recomendações, o velho fauno deixou-me só,
finalmente entregue às minhas obrigações. O anoitecer chegou rápido e os poucos
visitantes logo foram embora. Era o momento de fechar os portões da necrópole e
preparar-me para a primeira noite insone. Não sei se foi pelas palavras dele ao
se despedir, ou pela minha fértil imaginação querendo me pregar uma peça, fui
tomado por uma forte inquietação assim que fiquei sozinho. Era como se, ao
contemplar os corredores formados pelas fileiras de túmulos, eu pudesse ouvir o
clamor das almas penadas daquele lugar.
Eu não era supersticioso, nem nutria qualquer apreensão por entes ou
aparições sobrenaturais. Não que fosse dotado de muita coragem, não se tratava
disso. Apenas não conseguia mais acreditar em vida pós-morte, fantasmas
atormentados ou coisa parecida, tão convicto que eu era do mundo material,
embora o tema ainda me fascinasse. Mas acreditar era outra história. Nem sempre
foi assim, admito. Houve um tempo em que eu pensava ver almas penadas, mas
ninguém acreditava no que dizia um garotinho, então desisti de falar sobre isso.
Acabei superando o desdém dos adultos e esqueci o assunto, até iniciar neste emprego.
Agora, nesta primeira noite, eu não conseguiria explicar a mim mesmo a sensação
estranha de não estar completamente só naquele lugar.
A chuva fina que caiu logo a seguir aumentou ainda mais aquele
sentimento de desolação que insistia em imiscuir-se em minha mente. Essa
sensação contrariava os parâmetros de lógica que eu costumava usar para
analisar tudo que me chamava a atenção. Até esta noite, o mundo que eu percebia
era tudo o que existia, e assim me bastava. Essa forma de pensar simplificava
as coisas para mim e me livrava de conflitos existenciais desnecessários, ou
pelo menos era assim que eu esperava. Todavia, essas convicções estavam para
serem testadas. Ainda não havia nada que me fizesse pensar isso, mas inconscientemente,
eu já temia o que estava por vir.
As primeiras horas se arrastaram lentamente e me proporcionaram a chance
de recuperar-me daquela inquietação. A razão aos poucos se sobrepunha ao
instinto atávico dos meus supersticiosos ancestrais das cavernas. Após a
primeira ronda, fui para o pequeno escritório, que era anexo à capela do
cemitério. Estava disposto a aproveitar a noite insone para continuar um dos
meus inúmeros projetos literários. Era esse justamente uma novela de horror
gótico. Apesar de todo o meu declarado apego ao mundo material, horror era o
meu gênero preferido para escrever.
Algum tempo depois, não sei precisar quanto, ouvi o som de passos furtivos.
Parecia que minha primeira noite seria movimentada. Aborrecido com aquela
interrupção, desliguei a chave geral da luz. Pensava em dar um bom susto no
invasor de túmulos alheios.
Assim que a escuridão envolveu o cemitério, o ruído cessou. Tão
silenciosamente quanto eu podia, deslizei para fora do escritório. Felizmente a
porta já estava aberta e meu movimento não produziu nenhum som que pudesse ser
ouvido após alguns metros. Então, oculto atrás de uma lápide, eu a vi. Era uma
garota. Ela estava lá, sentada tranquilamente sobre um túmulo, como se
estivesse num banco de praça, numa manhã de domingo. Apesar da penumbra eu
conseguia perceber alguns detalhes. Ela se vestia de preto e parecia uma figura
trágica e triste. Lá estava eu a fantasiar como de hábito. Era um romântico
incurável, mas tinha um trabalho a fazer.
Antes que eu tomasse qualquer iniciativa, surgiram outras pessoas.
Usavam roupas pretas iguais as dela e alguns tinham os cabelos espetados,
provavelmente modelados com algum tipo de gel fixador. Parecia um grupinho de
góticos. Uma dessas tribos urbanas, que cultivavam hábitos estranhos. Algo como
fazer piquenique em cemitérios, pensei, baseado em minhas profundas e rançosas
ideias pré-concebidas.
Ainda fascinado pela moça, eu demorei a me decidir sobre o que fazer.
Eles eram apenas uns garotos estranhos e não pareciam perigosos, mas como
prudência e caldo de galinha não fazem mal, permaneci oculto enquanto resolvia
que atitude tomar. Essa hesitação veio a calhar, pois nada iria me preparar
melhor para o que viria a seguir.
Um dos garotos tirou um narguilé de uma bolsa. Logo depois um odor
adocicado se espalhou pelo cemitério, enquanto o som de um atabaque encheu o
ar. Eles tinham vindo bem preparados para aquela festinha esdrúxula e tudo
indicava que havia mais ainda por vir.
A garota levantou-se e ficou em pé sobre a lápide. Ao som de um cântico
entoado pelos demais, ela iniciou uma dança tribal. Seu corpo girava e se
contorcia em movimentos cada vez mais frenéticos. Os demais pareciam ter caído
em um transe hipnótico. Devo dizer que me faltava muito pouco para juntar-me ao
grupo naquele frenesi. Felizmente permaneci no controle de minhas faculdades
mentais, de modo que pude acompanhar de um ponto de vista privilegiado os
extraordinários acontecimentos daquela noite.
Apesar de alguns já pareceram tão drogados que não poderiam perceber
plenamente o que acontecia, outros lograram permanecer com alguma lucidez e
puderam testemunhar o que estava por acontecer. Esses, logo se arrependeram por
ter invadido o cemitério naquela noite. E antes que me perguntem: não! Eu não
tive nada a ver com o que aconteceu. Apenas presenciei os fatos que agora
narro. Essas lembranças estão gravadas em minha memória de forma indelével,
como brasas sobre madeira.
O ritmo das batidas no atabaque acelerou-se e, depois, o instrumento
silenciou. A garota que dançava sobre o túmulo ficou imóvel, com uma expressão
vazia no olhar. Os demais olhavam para ela e soltavam gritos e risadinhas
insanas. Foi nesse momento que aconteceu o mais estranho dos acontecimentos que
já presenciei na vida. Ela começou a flutuar na posição horizontal. Seria uma
cena digna de um bom filme de terror, permitam-me dizer. Se bem que, pela
correria perpetrada pelos "valentes" companheiros dela, por entre a
lápides sepulcrais, aquilo estava mais para uma comédia pastelão.
Não fosse pelos gritos de pavor que ela emitiu quando saiu daquele
suposto transe, creio que ainda estaria flutuando sobre a lápide até hoje.
Subitamente a moça caiu e estatelou-se sobre a tampa do túmulo. Apesar do forte
impacto, acredito que não tenha se machucado seriamente, pois levantou-se de
imediato e saiu em disparada, para logo sumir na escuridão.
Quanto a mim, fiquei ainda um bom tempo aturdido, sem compreender
plenamente o significado daquele acontecimento bizarro. Havia realmente mais coisas
entre o céu e a terra, afinal de contas. Logo eu teria outras razões para rever
meus conceitos, cuidadosamente construído dentro de um viés essencialmente
materialista. Contudo, o restante da minha primeira noite como vigia noturno foi
tranquilo e nada mais me ocorre relatar, por hora.
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