Friday, May 08, 2020

Requiescat in Pace - Crônicas da Cidade dos Mortos - Capítulo III

 

Não sei quanto tempo fiquei refletindo sobre os últimos acontecimentos. Eu costumava ficar cismando por horas quando algo me incomodava. Geralmente isso acontecia com coisas relacionadas a conflitos ou alguma situação em que não agi de modo acertado. Depois de muito pensar, cheguei à conclusão de que fui habilmente manipulado para duvidar de mim mesmo. Voz Cavernosa havia me vencido num jogo que eu havia iniciado, e a percepção disso não me fez muito feliz.

— Nossa! Que pensamentos sombrios devem passar por essa cabeça. — Era Berenice, que me olhava através da janela entreaberta. Não fosse a alegria imensa por vê-la novamente, teria ficado furioso por aquela aparição no meio da noite. Em algum momento eu teria que falar sobre aquilo com ela, mas não naquele momento.

— Então, sentiu saudades? — Ela perguntou, enquanto entrava pela janela.

— Sinceramente não sei. — Respondi inseguro.

Naquele momento a autoconfiança que ela demonstrava me irritava profundamente, apesar de ter esperado com ansiedade nosso reencontro. Essa contradição poderia ser explicada pelos diálogos internos que ela me provocava, pensei depois. Eu a conheci em uma situação estranha, que permaneceu esquisita no segundo encontro e, tudo indicava, continuaria assim. Isso era o bastante para me deixar em guarda, mas quem disse que eu queria isso? Às favas com a prudência e o caldo de galinha.

— Não? — Ela retrucou em voz baixa.

De repente a petulância desapareceu. Berenice já não parecia a garota gótica, de olhar altivo e insolente que me olhava um minuto antes pela janela. Diante de mim assumiu um tom contido, que transparecia fragilidade. Não foi preciso muito esforço para concluir que ela estava tentando me manipular. Não que eu me importasse muito com isso. Já estava de quatro pela garota, como um adolescente bobalhão e cheio de espinhas na cara.

— Não. Quero dizer... Não sei. Mas você tem que parar de sumir e reaparecer desse jeito.

— Desculpe. De repente fiquei com medo e fugi daqui.

— Medo? É difícil de acreditar que uma garota que anda sozinha num cemitério, no meio da noite, tenha medo de alguma coisa. Aliás, como é que você conseguiu passar pelos portões fechados?

— Voei. — Disse com um meio sorriso que pretendia ser misterioso, eu acho.

Ela baixou os olhos. Parecia consternada, mas era difícil saber se isso era verdadeiro.

— Aquele homem horrível me deixou com medo. — Falou, mudando de assunto.

Ela se referia ao coveiro, mas naquela noite Berenice não parecia tão assustada. Na verdade, eu fiquei mais assustado do que ela. Principalmente nos dias seguintes, quando tive a certeza de que o sujeito nos havia visto.

— Eu vi seus olhos. — Ela disse. — Eu já tinha visto aquele olhar antes, mas ainda não consigo lembrar direito.

— Os olhos de um assassino.

— Mais que isso. — Ela retrucou enigmática.

— Do que você está falando? Ela me lançou um olhar desamparado. Contive a muito custo o desejo de envolvê-la em meus braços.

— Eu não sei. — Respondeu. — Já vi aquele sujeito antes, mas não consigo lembrar. Por favor acredite em mim.

— Está bem. Vamos mudar de assunto?

Ela sorriu e se aninhou em meus braços. Eu não esperava por isso, é claro. Ouvi seu longo suspiro, mas contive o meu. Isso não me pareceu muito apropriado naquele ambiente. Mas, enfim, quem disse que eu era santo? Ao sentir o perfume do seu cabelo, minha boca deslizou pelo seu rosto e procurou a sua. Era difícil acreditar que aquilo estava acontecendo, mas fui em frente.

A partir daquela noite, nossas conversas passaram sempre a ter um interlúdio de carinho e beijos furtivos, trocados nas sombras entre os túmulos. Nada me dava mais prazer do que senti-la suspirar ao grudar seu corpo ao meu, com uma sofreguidão que só a solidão prolongada poderia explicar. Apesar disso, durante muito tempo não fomos além dessas carícias. Parecia haver um temor recíproco de que a magia se acabasse e voltássemos a ser pessoas comuns, com todos os seus medos e desejos mesquinhos.

Talvez por essa mesma razão, evitássemos também falar de nossas vidas fora do cemitério. Era como se tudo existisse apenas durante a noite, quando estávamos juntos. Ao amanhecer, a magia se desfazia e deixávamos de existir. Em alguns momentos, eu realmente tive a nítida sensação de que existíamos somente ali, entre as lápides sepulcrais. Era como um sonho recorrente. Todavia, isso não me incomodaria, se assim fosse. Breves momentos com Berenice valiam mais que uma vida inteira de solidão e vazio, pois era assim que eu sentia a minha existência, antes de tê-la conhecido.

Entretanto, esse tempo de quase felicidade não durou muito. Após noites seguidas de encontros furtivos, Berenice sumiu de novo. Eu não consegui atinar com a razão dessas ausências, de modo que me forcei a pensar que tudo havia sido um sonho tolo. Talvez tivesse sido mesmo. Acho que a solidão gostava de me pregar peças.

Nesse ínterim, cumpri diligentemente minhas obrigações como vigia do cemitério, ao mesmo tempo em que continuava meu projeto literário, enquanto aguardava o retorno de Estela para continuar o registro de sua história.

As noites que se passaram foram tranquilas. Pelo menos tão tranquilas como poderiam ser na Cidade dos Mortos, como passei a chamar o cemitério. Contudo, esse período de calmaria estava fadado a terminar abruptamente, como relato a seguir.

Em minha última ronda, escutei alguns ruídos estranhos. Digo estranho, considerando o local onde me encontrava, assim como a hora em que isso aconteceu. Era pouco depois da meia-noite, quando eu os ouvi e me aproximei. Eram crianças brincando entre os túmulos. A princípio pensei em como elas foram parar ali, no meio da noite, mas depois percebi que aquelas crianças já não pertenciam mais ao mundo dos vivos.

Apesar do meu cinismo habitual, não pude evitar o pesar que se abateu sobre mim ante a visão daqueles pequenos espectros, cuja morte aconteceu de forma tão precoce. Aquelas pequenas almas deveriam ter uma história bem curta para contar. Uma história que eu não gostaria de ouvir, mas cheguei mais perto. Foi quando percebi a presença de outra entidade. Era o fantasma de uma jovem mulher, que me observava atentamente. Sua atitude era de proteção às crianças e deduzi que fosse mãe deles.

A mulher chamou os pequeninos para junto de si e me fitou de uma forma que gelou meu coração. Achei mais prudente manter-me a uma distância mais segura e recuei. Naquele momento eu senti de repente a presença de outra entidade fantasmagórica. Era o espectro de um homem adulto e parecia uma ameaça, pela forma como a mulher se retraiu e puxou os filhos para si.

Eu não sou muito sensitivo, até porque minhas experiências com eventos sobrenaturais são de uma época distante, mas percebi uma aura maligna em torno daquele fantasma. Ele não era boa coisa, com certeza. Sem saber o que fazer, apenas acompanhei a cena. Antes que me sentisse um pulha covarde, outros espectros surgiram. Os recém-chegados eram entidades de aspecto simiesco e sombrio. Silenciosamente eles o agarraram firmemente. O fantasma se debateu, mas não conseguiu se soltar. Logo depois ele foi arrastado para a Tumba de Voz Cavernosa, enquanto um halo de luz envolvia a mulher e suas crianças. Eles evanesceram lentamente e sumiram, como se fossem levados para outro plano de existência.

— Algo assim — Disse Voz Cavernosa, depois de surgir de repente atrás de mim.

Ele me assustou, não tanto por ter aparecido de repente, mas por ter percebido aquilo que estava somente em minha mente. Definitivamente, isso não era bom. Felizmente, assim como surgiu, ele desapareceu. Então fiquei só com os meus pensamentos, a matutar sobre os acontecimentos recentes.

Na noite seguinte, outra surpresa! Berenice voltou. Eu a encontrei sentada sobre a tampa de sua lápide preferida. Quando a vi, contive o desejo de correr para ela e caminhei sem fazer ruído. Por alguma razão inconsciente, não quis que percebesse minha presença de imediato. Talvez o real motivo fosse apenas prolongar o momento em que podia contemplá-la sem que ela tentasse induzir minhas reações.

O cuidado foi desnecessário. Berenice parecia tão entretida consigo mesma, que só perceberia minha presença quando eu estivesse à sua frente. Essa era uma possibilidade que eu não desejava antecipar, tão arrebatado eu estava com o que via. Ela usava um vestido florido simples, totalmente fechado com botões na frente. Dizer que o vestido era simples talvez não fosse uma descrição muito precisa, pois, o efeito nela era espetacular. Aparentemente, Berenice estava deixando para trás as roupas escuras que costumava usar. Isso indicava que se afastava dos pensamentos sombrios e depressivos que pareciam nortear seu espírito quando a conheci.

Eu tinha esperança que tivesse algo a ver com essa mudança. Isso era, naturalmente, uma manifestação do meu velho e incurável romantismo.  Eu não hesitaria em vestir-me de cavaleiro andante, para socorrer minha Dulcinéia das garras dos demônios da escuridão.

Sentada sobre o túmulo, ela se inclinou para trás e se espreguiçou languidamente, enquanto a luz difusa do luar lhe emprestava um brilho quase sobrenatural, ao se refletir em seus cabelos adoravelmente revoltos. A visão era tão sedutora, que eu não me contive mais e me aproximei.

Ela sorriu sem parecer surpresa. Creio que já tinha me percebido muito antes que eu tivesse ciência de sua presença. Foi ingenuidade minha pensar o contrário.

— Oi — Ela saudou com simplicidade, enquanto aquela boca adorável se abria ainda mais no sorriso mais cativante, que eu jamais imaginei que poderia provocar numa mulher tão linda.

— Oi — Respondi, quase sem conseguir articular uma palavra inteligível depois disso.

— Estava esperando você. — falou, enquanto me olhava intensamente. Seu olhar brilhava de um jeito estranho, mas não me importei.

— Senti sua falta.

— Espero que sim. Esta noite não será como as outras. — Ela falou de um jeito que me deixou arrepiado. Algo ia acontecer.

— O que tem de especial nesta noite?

Ela deu de ombros e me olhou intensamente.

— Você me quer? — Perguntou de repente, com um sorriso de gato olhando para o canário. Eu não respondi de imediato. De repente me senti desconfortável, ao me perceber vulnerável. Sua boca tão perto deixava-me ver os caninos aguçados sendo acariciados pela língua vermelha. Ela dava as cartas, e algum canto do meu cérebro machista não se agradou daquela situação. Berenice inclinou-se para trás e arqueou o corpo. O movimento esticou o tecido do vestido e pude perceber os seios intumescidos. Ela também me queria, mas insistia em demarcar o território, como se qualquer coisa que pudesse acontecer entre nós acabasse por ser uma concessão dela.

— Você me quer? A Ela perguntou de novo, fitando-me com seus olhos de gata.

Berenice parecia perceber o que se passava em minha mente e se divertia com isso, mas mesmo assim, ou talvez por isso, resolvi pagar para ver.

— Sim. — Disse-lhe, acariciando seus joelhos. — Desde o primeiro dia em que a vi.

Ela ronronou baixinho e abriu as pernas levemente, fazendo o vestido subir alguns centímetros.

— Então venha me tomar.

Ela me agarrou com força e eu senti seu corpo colado ao meu, enquanto sua boca percorria meu pescoço. Foi naquele momento que eu senti seus dentes roçando minha garganta, aguçados como as presas de um predador. Acho que estremeci naquele momento.

— Não! — Ela gritou de repente e se afastou de mim.

Então eu vi o que Berenice realmente era. Sua verdadeira natureza se revelou para mim e, apesar de toda a estranheza daquele momento, aquilo não me surpreendeu. Acho que em algum canto de minha mente a verdade já havia sido percebida. No entanto, eu ainda a queria, mas ela se afastou de novo.

— Por que? — Perguntei. — Não me importo.

— Você não sabe o que está dizendo. Não vou fazer isso com você.

Havia uma agonia terrível no seu olhar. Era o embate entre sua natureza bestial e sua contraparte humana.

Depois de um momento de impasse, que pareceu uma eternidade, ela deu um salto inacreditável e desapareceu na escuridão da noite. Então fiquei só, atônito, me perguntando se a veria novamente.

Não havia em mim nenhum sentimento de repulsa ou aversão por Berenice. Muito pelo contrário, tudo o que eu sentia era o desejo quase insuportável pelo seu beijo de morte. Em meu íntimo, eu já ansiava pela escuridão muito antes de tê-la conhecido. Eu não estava chocado como deveria, nem sentia medo pelo que estava por vir. Creio que meu lado sombrio e a convivência com entidades sobrenaturais tenham me preparado para isso. O fato é que minha humanidade parecia estar condenada, mas isso não me incomodava. Apesar de ainda pertencer ao mundo dos vivos, eu já me sentia como uma daquelas almas penadas, ou quase isso. Torturava-me, sim, a prolongada ausência de Berenice. Eu ansiava por lhe revelar minha disposição de acompanha-la em sua existência noturna.  Todas as noites eu a esperava, mas apenas o raiar do dia vinha ao meu encontro. Apesar disso, minha esperança se manteve.

Certa noite, enquanto eu escrevia, Estela apareceu sozinha. O grupo de fantasmas que sempre a acompanhava não se manifestou. Na ocasião, eu não havia me dado conta do que isso poderia significar. A compreensão veio depois, à medida em que certos códigos e valores da existência após a morte se tornaram mais claros para mim, pelo menos no que se refere ao cemitério de onde escrevo estas crônicas. Muitos dos espectros que eu havia conhecido refletiam as regras de Voz Cavernosa. Ele, de fato, parecia exercer alguma forma de poder sobre eles.

— Boa noite! – Estela saudou com uma voz rouca.

Ela estava diferente, mas não de forma ostensiva. O jeito infantil havia sumido, ou pelo menos assim me pareceu. Sua aparência, no entanto, continuava do mesmo jeito estonteante.  Em se tratando de beleza, tudo em Estela era redundante, para dizer o mínimo. 

— Boa noite. — Respondi de um modo neutro, tentando ocultar meu desagrado. Estava esperando Berenice e a presença de Estela a manteria afastada.

— Então, vamos começar?

— Começar?

— Sim, vamos continuar minha história hoje, escrevinhador, esqueceu?

Era verdade. Havíamos combinado em registrar seus relatos a partir do ponto onde paramos, mas as noites passadas sob o encanto de Berenice inverteram minhas prioridades e os fantasmas ficaram em segundo plano. Para ser franco, eu acabei esquecendo. Bom, esquecer talvez não fosse a definição mais adequada. Acho que apenas deixei convenientemente de pensar neles.

— Esquecer? Não, não! Como poderia? Esse é o projeto mais fascinante que eu poderia ter. – Disfarcei. Isso era verdade, mas não naquela noite.

— Então, vamos começar? — Ela perguntou, com os olhos brilhando de forma estranha. Era o mesmo jeito como Berenice me olhava em alguns momentos. Ambas tinham aquele olhar que fazia eu sentir que era a caça.

Devo dizer que Estela sabia ser sedutora. Se ela não fosse uma alma penada, seria duro resistir-lhe. Eu a convidei a sentar-se à minha frente e ela o fez num movimento estudado de graça e sensualidade. Depois ela me fitou demoradamente. Parecia estar me estudando. Em minha fértil imaginação, o predador estava à espreita.

— Você me acha bonita?

Antes que eu respondesse, olhei para a porta. Não havia sinal de Berenice, mas eu esperava ver seu vulto fugaz adentrar a qualquer momento. Era uma esperança vã, é claro. Eu sabia que meus visitantes espectrais a manteriam afastada de mim, sem considerar o que aconteceu antes. Isso, aliás, era um fato curioso; por mais que tentasse, não conseguia imaginá-la com medo do sobrenatural, pois era uma contradição com sua própria natureza. De outro modo, sua atitude era quase sempre de uma pessoa destemida. Isso era muito mais do que eu próprio conseguia ser, na maioria das situações. Eu não tinha nem mesmo certeza se ela os via, mas suas visitas noturnas nunca coincidiam com as aparições fantasmagóricas, o que me levava a pensar se tudo não seria apenas fruto de minha mente, já insana. Foi só um pensamento fugidio, é claro, que logo desapareceu quando meu olhar encontrou o de Estela. Por mais que tentasse, não conseguia evitar o impacto que ela me causava.

— Você sabe que é linda. — Respondi, depois desse breve momento matutando.

De repente, seu jeito coquete carecia de sutileza e já não me agradava, mas ocultei minha reação do melhor modo possível. Não desejava, de maneira nenhuma, indispor-me com uma alma penada amigável. Ela era, digamos assim, uma boa base de sustentação em minhas relações com o além, principalmente considerando o caráter belicoso de Voz Cavernosa.

— Não foi isso que perguntei. — Retrucou Estela, com um beicinho. — Hoje você está impaciente comigo, não é? Foi algo que fiz?

Seus olhos brilhavam e ela parecia preste a chorar. Aquilo me surpreendeu, naturalmente. Nunca imaginei que um fantasma pudesse chorar. É claro que esse sentimento de consternação durou apenas um momento. Eu já sabia que Estela podia ser o que quisesse, de acordo com sua conveniência.

— Você não me fez nada, minha querida. — Respondi-lhe do modo mais suave possível. — Ando meio amargo por outras razões, que nada tem a ver com você. Na verdade, sem você tudo seria mais difícil para mim.

— Verdade?

Não era totalmente verdade, mas eu também podia jogar aquele jogo de manipulação. Creio ter conseguido, pois seus olhos brilhavam novamente, mas agora expressavam uma alegre satisfação infantil. O jeito de criança estava de volta. Estela parecia ter a necessidade de agradar e ser admirada o tempo todo. Isso poderia se tornar cansativo em algum momento, mas era um preço baixo a pagar diante do que ela poderia significar para a obra que eu tinha em mente.

— Sim. Essa é toda a verdade que importa. Quase todo o resto de minha existência é amargo e sombrio demais para perdermos tempo. Prefiro concentrar minha atenção em você.

— Que bom! Tenho muito para lhe contar. Minha vida até ... Meu passamento, foi muito interessante.

Naquele momento, a lâmpada que iluminava o recinto tremulou. Isso poderia ter sido causado por uma súbita queda de tensão, mas eu já sabia que a companhia elétrica não tinha nada a ver com o caso. Com efeito, a verdadeira causa logo se manifestou.

— Ora, ora! O que temos aqui? — Falou Voz Cavernosa, do seu costumeiro jeito desagradável. – Eu lhe disse para limitar esses encontros à sala de depoimentos, não disse?

O semblante de Estela mudou rapidamente. Da suave e alegre expressão de uma criança feliz, ela passou para o olhar de um animal acuado, apavorado diante da súbita aparição do seu predador.

— Eu ia fazer isso, mas não deu tempo. – Explicou Estela, na defensiva.

Voz cavernosa avançou rapidamente e envolveu seu pescoço num abraço que nada tinha de afetuoso. Eu o odiei por isso, principalmente por que não me sentia forte o suficiente para interceder, mas tentei.

— Acho que a culpa foi minha. — Balbuciei de modo patético.

— Ficou chocado, escrevinhador? — Ele perguntou em tom sarcástico.

— Só acho essa violência desnecessária. – Consegui balbuciar.

Ele riu de minha atitude ridícula.

— Você não é diferente de mim, apesar dessa pose de cavaleiro andante. Confesse que gostaria de estar no meu lugar agora. – Provocou. — Por que não experimenta? Ela gosta disso, acredite.

— Eu não...

Ele gargalhou como louco. Para meu pesar, havia algo de verdadeiro em sua afirmação, mesmo que eu não pudesse admitir. Lamentei que Voz Cavernosa pudesse enxergar tão fundo dentro de mim. Sem fazer caso do meu protesto, ele se voltou para Estela.

— Por favor, pare. – Ela implorou.

— Não deu tempo porque você não resistiu à tentação de flertar com ele, não é mesmo? — Continuou Voz Cavernosa, sem nem mesmo me olhar.

— Eu ... — Começou Estela, mas o braço em torno do seu pescoço pareceu sufocá-la ainda mais.

Por um momento, achei que essa era a intenção de Voz Cavernosa, mas subitamente, ele a largou. Não fazia mesmo muito sentido em tentar sufocar um fantasma, não é?

— Espero vocês na Tumba. Leve-o para lá. – Ordenou ele.

Dito isso, Voz Cavernosa desapareceu, como era do seu feitio. Esse era o único momento que eu realmente apreciava.

— É melhor irmos de uma vez. — Disse Estela, sem me olhar diretamente. Ela parecia constrangida e isso me comoveu. Sua humilhação também era minha, mas nada disse. Não precisava, pois creio que ela percebeu isso.

Como eu não possuía certas habilidades fantasmagóricas, fomos andando até a Tumba. Novamente fiquei confuso com a profusão de portas, cujas plaquetas eu não conseguia ler à primeira vista, exceto quando me era permitido, segundo percebi.

Apesar disso, quando cheguei mais perto, não tive dificuldade em entender a placa da porta da qual eu me aproximei, levado por minha guia sobrenatural. Dizia simplesmente: "Gerência".

Na sala da gerência encontramos Voz Cavernosa, ou melhor, Belial. Ele estava sentado atrás da escrivaninha, com os pés sobre ela e as mãos atrás da nuca, numa postura para lá de relaxada.

— Ora, ora! Nosso escrivão chegou, finalmente.

Escrivão não era bem o termo, mas quem sou eu para discordar? Melhor não discutir com ele.

— Já fiz o que pediu. — Disse Estela com voz chorosa. — Posso ir agora?

— Você sabe que não. — Retrucou Belial de forma ríspida. — Aguarde lá fora para leva-lo à sala de depoimentos.

Senti um calafrio com aquelas palavras. Não compreendia bem a situação e isso não contribuía em nada para que eu ficasse mais tranquilo.

— Levar-me à sala de depoimentos? — Perguntei como um tolo. É claro que eu já sabia o que aquilo significava, mas parecia ter algo mais nas intenções dele.

— Sim. – Disse ele com voz macia. — É a vez de Estela terminar sua história. Nada demais.

Aquelas palavras não me convenceram, naturalmente. Algo estava em curso e eu fora incluído compulsoriamente. Contudo, nada fiz para protestar e fingi que estava tudo bem e retribui o sorriso "amarelo" do meu fantasmagórico anfitrião. Na verdade, demoníaco seria um termo mais adequado para defini-lo, mas ainda não estava bem certo do papel de Belial na trama que se avizinhava.

— Agora você deve completar a história de Estela. Escreva tudo que ela lhe contar e inclua sua opinião também. Isso é importante.

— Minha opinião?

— Sim. Será interessante um olhar independente sobre a vida de cada um, não acha?

— Creio que sim. – Balbuciei.

Ele deu uma risadinha sinistra. Parecia estar se divertindo às minhas custas.

— Capriche mais. Os primeiros relatos não foram lá essas coisas, mas serviram. Agora vá. – Disse-me.

Dito isso, ele se despediu com um tapa nas minhas costas, num gesto que era pretensamente amigável. Senti como se minha alma quase fosse arrancada, mas nada disse. Instintivamente concluí que deveria tentar encontrar um jeito de ocultar minhas reações dele. Tudo o que eu queria, naquele momento, era escapar dali e voltar aos braços de Berenice. Todavia, algo me dizia que eu ficaria um longo tempo sem vê-la.

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