Sunday, August 01, 2021

O Despertar de Berenice

 

Primeiro a sensação de flutuar num vazio escuro. Depois um zumbido irritante penetrou seu cérebro, como uma fina e afiada adaga. A dor era quase insuportável e ela teria desmaiado, se já não estivesse morta. Depois, um silêncio profundo e aterrador, mas a escuridão se foi, e ela viu seu próprio corpo deitado num caixão. Estava rodeado de flores. Eram margaridas e crisântemos. Odiava crisântemos. Tinha cheiro de morte, me falou, entre risadas, ao se dar conta da piada involuntária. Teria realmente morrido? Tudo indicava que sim, mas como era ainda capaz de pensar? Não conseguia lembrar de como seu corpo foi parar naquele ataúde. Nem mesmo sabia se devia lamentar a vida que havia deixado para trás. Fora uma vida boa? Ruim? Também não conseguiu lembrar. Sabia apenas que estava morta, pelo menos era o que parecia. Entretanto, de alguma forma, ainda estava consciente de si, já que assistia ao próprio funeral.

De pé, algumas pessoas a contemplavam em silêncio. Pareciam consternadas, mas ela não as reconheceu. Não lhe pareciam conhecidas, embora parte delas lhe transmitisse uma vaga sensação de familiaridade. Outras, porém, lhe eram indiferentes. Umas poucas lhe provocavam uma aversão, algo que beirava a hostilidade, embora não soubesse o motivo disso. 

Aos poucos, as vozes daquelas pessoas começaram a ecoar em sua mente. Elas falavam baixo, como era de bom tom falar num velório, em sinal de aparente respeito ao falecido e aos parentes que pranteavam sua morte. O respeito era só aparente, como Berenice percebeu, ao escutar os comentários sobre si. Muito tempo depois, ela ainda lembraria o que ouviu naquela noite, com uma surpreendente clareza. Isso me permitiu conhecer sua história com detalhes tão vívidos, que tive a sensação de ter presenciado aquela sequência de acontecimentos, o que me permitiu conduzir esta narrativa como uma espécie de deus onisciente. Eu pude imaginar algumas velhotas falando dela, diante do seu caixão. Assim, tomei a liberdade de reproduzir os diálogos como eu mesmo teria lembrado. Naturalmente, houve algumas limitações nesse sentido. O caráter e as motivações de cada personagem envolvido, ficaram por conta das recordações de Berenice.

— Que tristeza! — Disse uma mulher  de cabelos grisalhos. — Ela era tão boazinha…

— Boazinha nada! — Replicou outra matrona em uma voz tão baixa, que soava de forma estranha, como o sussurro do vento passando entre bambus. — Essa menina era uma criatura estranha, isso sim. Também, com o grupinho esquisito que ela andava, boa coisa não ia acontecer.

— Não fale assim, Jezebel. Respeita a defunta, ora essa!

Mas Jezebel fez pouco caso da admoestação da outra mulher. A fofoqueira da rua não se deu por satisfeita e converteu sua antipatia por Berenice numa ladainha de comentários maldosos, que parecia não ter fim.

— Estou te falando, Clotilde. Esse anjinho era uma boa bisca.

“Bruxa!” A palavra flutuou na mente de Berenice. Foi naquele momento que desejou voltar ao seu corpo. Queria levantar do caixão e dar um susto naquelas velhotas, mas tudo o que conseguiu fazer foi flutuar invisível acima das velhotas. Aquilo era frustrante. Só conseguia ouvir a conversa, mas teria gostado de tomar parte dela.

— A polícia disse que encontrou seu corpo naquele beco, atrás da loja de conveniência. — Disse outra mulher, que aproximou-se das duas. — Ela estava caída no chão, como uma boneca de pano.

— Misericórdia! — Exclamou Clotilde, a que possuía um temperamento mais compassivo.

— Dizem que ela tinha um ferimento na garganta e nem uma gota de sangue naquele corpo franzino. — Grasnou Jezebel, com um mal disfarçado prazer. Ela adorava histórias escabrosas, nas quais acrescentava os detalhes que bem entendia, fossem eles reais ou imaginários. — Estão falando que isso é obra daquele vampiro, sabem? Aquele que atacou no campus da universidade, no mês passado.

— Jesus! Você não tem compaixão? A menina está morta! Essas coisas não existem, ora essa!

— Eu também ouvi isso. — Disse Jurema, a recém-chegada. — Um carro preto foi visto por estas bandas, uma noite dessas, eu acho. Era enorme e silencioso e, por onde passava, alguém morria. Era do vampiro, tenho certeza! Vai que foi ele que pegou ela.

Ao ouvir sobre o que falavam de sua morte, Berenice ficou mais atenta. Ela começou a lembrar de algo. Talvez aquelas velhas fofoqueiras tivessem razão. Mesmo assim, eram lembranças fugazes, acompanhadas de um mal-estar que ia além de algo relacionado apenas com a sua morte física. Ela sentia que tinha sido violada no mais recôndito de sua alma. Berenice não sabia como racionalizar sobre isso, naquele momento. Muito tempo depois, em nossas conversas, eu deduzi que grande parte de sua humanidade tinha sido arrancada naquela noite. O que restou se diluiu no lado mais sombrio de sua psique humana.

Relembrando o que ouvi dela, algum tempo depois, constatei que certos acontecimentos adquiriram um significado mais profundo para mim. Possivelmente pela reflexão quase obsessiva com que eu me punha a esmiuçar minhas próprias lembranças, à procura de mais detalhes. Berenice era o centro do meu universo. Um buraco negro que me atraía inexoravelmente para as trevas que habitavam nela. Não a culpo por isso, entretanto. Assim era sua natureza e isso não diminuía o que eu sentia. Antes, era possível que sua essência sombria fosse o real motivo do meu fascínio por uma criatura que poderia me trucidar a qualquer momento.

Sua existência como vampira começou naquela noite fatídica. O patético grupinho de góticos do qual ela fazia parte, consumiu toda a cocaína que tinha e queria mais. Sem dinheiro, Miguel, o líder daquele bando de perdedores, resolveu assaltar uma loja de conveniência. A ideia não agradou Berenice, mas por ser nova no grupo, nada disse. Ela não queria ser vista como covarde ou fraca, diante dos demais, e queria desesperadamente a aceitação deles. Se tivesse tido a oportunidade de lembrar depois, provavelmente iria se maldizer pela sua estupidez. Talvez tivesse sido melhor não lembrar daquilo, mas já não conseguia evitar as lembranças provocadas pelas futricas das velhotas, à beira do seu caixão. 

Assim permaneceu por horas, totalmente imóvel. Sem nada poder fazer, além de ouvir aquela conversa mole e matutar sobre o seu estado de morte aparente. A consciência de tudo que se passava ao seu redor, contrariava o senso comum. Aquilo não podia acontecer, podia? Contudo, ela lembrou rapidamente os detalhes que antecederam sua morte. Para uma morta, estava inacreditavelmente lúcida. 

Ela quase podia ver o lugar onde seu infortúnio começou. O estabelecimento estava localizado em uma área decadente da cidade, numa rua suja e mal iluminada. Era o lugar perfeito para o que eles pretendiam fazer, exceto pelo momento, que coincidiu com a chegada de um carro da polícia. Ironicamente, os policiais pararam apenas para comprar cigarros e nada teriam percebido, se Miguel não entrasse em pânico e sacasse sua arma.

O tiroteio foi inevitável e Berenice percebeu tarde demais, que a arma de brinquedo em suas mãos a tornava um alvo para os policiais. Ao se virar para procurar uma rota de fuga, ela sentiu que havia levado um tiro no ombro. Esperou a dor, mas ela não veio. Só havia o pânico, que crescia e lhe apertava o peito como uma morsa enferrujada. Triste, pensou que ia morrer ali, mas ainda não era o momento. Ela não sabia, mas teria sido melhor se tivesse morrido.

Berenice ouviu a ordem para soltar a arma e se render, mas tudo o que conseguiu fazer foi sair correndo pelos fundos da loja, que tinha uma saída para a outra rua. Ao ouvir o barulho de passos apressados atrás de si, ela correu como se o próprio diabo estivesse em seu encalço. Talvez estivesse mesmo.

Uma quadra depois, a viela de aspecto sombrio chamou sua atenção.Num último esforço, correu para a escuridão, na tentativa de confundir e despistar seus perseguidores. Contudo, foi uma esperança vã. Não demorou muito para que eles aparecessem. 

Prostrada pelo cansaço e o desespero, Berenice encostou-se no capô de um carro estacionado e esperou que eles chegassem até ela. De olhos fechados, apenas ouviu o som dos passos se aproximando, enquanto tentava pôr seus pensamentos em ordem. Precisava se preparar para o que viria. Não tinha medo da prisão, mas da brutalidade policial, que poderia se abater sobre seu corpo frágil.

Para seu espanto, os policiais passaram por ela e seguiram em frente, apressados.  Ao vê-los se afastando, teve a impressão de que eles olharam para ela sem enxergá-la, como se sua presença tivesse sido ocultada por algum sortilégio. Foi quando ouviu uma voz rouca:

— Entre aqui, antes que eles voltem, mocinha.

— O quê?

Em ato contínuo, a porta do enorme carro se abriu.

— Entre, entre. Você não quer que eles a vejam, não é? — Repetiu a voz.

Em outra situação, Berenice não teria aceitado o oferecimento, mas a possibilidade de se livrar da perseguição a fez agir contra o bom senso. Ela entrou no carro e selou seu destino.

— Chegue mais perto, menina. — Disse o homem de aspecto sombrio.

Quando Berenice se deu conta do perigo que corria, tentou recuar, mas já era tarde demais. O vampiro a puxou para si e cravou as presas em sua garganta. Então, ela sentiu sua vida se esvair rapidamente. Sua humanidade se foi, enquanto ela lamentava por coisas que nunca teria a chance de fazer.

Após consumar seu ato perverso, o vampiro preparou-se para quebrar o pescoço dela. Impedir o surgimento de outro vampiro, em seu território, era a regra. Só não contava com o retorno dos policiais. Não tinha como saber se eles tinham saído do transe que ele os induziu, momentos antes.

Os policiais vieram em sua direção. Mesmo na penumbra, ele viu que destravaram suas armas. Armas não o deteriam e sabia que podia vencê-los, mas havia outros policiais por perto e o risco de ser ferido gravemente era muito alto. A contragosto, o monstro jogou Berenice para fora do carro e arrancou com violência. Ele a encontraria depois, para terminar o que começou, mesmo que a transformação já tivesse ocorrido.

Enquanto a mente de Berenice vagava em busca dessas lembranças, as pessoas presentes ao seu velório começaram a ir embora. Até mesmo as velhotas, em determinado momento, ficaram em silêncio e se afastaram do seu caixão. Logo, restou apenas o coveiro, que se aproximou e olhou demoradamente para ela.  Depois, apagou as luzes e saiu do salão. Uma suave penumbra preencheu o vazio silencioso daquele lugar,  ao penetrar através da claridade advindas do poste de iluminação situado próximo à janela. Ela ficou só, como deve ser na morte. A solidão lhe era familiar, no entanto. Embora não lembrasse claramente como tinha sido sua existência física, sabia que sempre esteve só a maior parte do tempo.

Perdida em devaneios existenciais tão inúteis quanto frívolos, dada a circunstância pós-morte, Berenice quase não percebeu a porta do salão se abrir. O coveiro havia voltado. De modo furtivo, ele rodeou o caixão, sempre com os olhos fixos em seu cadáver. Ela não gostou de sua atitude e tentou afastá-lo, mas sua existência incorpórea tornava qualquer tentativa fadada a um fracasso exasperador.

O coveiro, que vim a saber depois, atendia pela alcunha de Pé Redondo, em razão de possuir um defeito congênito no seu pé esquerdo, que se assemelhava à pata de um bovino. Isso lhe acarretava um andar pesado e bamboleante, para compensar a diferença de tamanho entre suas pernas. O pobre diabo era um sujeito solitário, por consequência. Isso explica, pelo menos em parte, o que se seguiu.

Após olhar ao redor, ele  voltou sua atenção para o cadáver de Berenice. A palidez de sua tez tinha uma beleza quase sobrenatural, realçada pelos cabelos negros e caprichosamente arrumados sobre os ombros. Aos olhos daquele homem, ela parecia um anjo e certamente o redimiria do pecado que estava prestes a cometer. Sem mais hesitar, Pé Redondo ergueu seu vestido.

“O que esse pervertido está fazendo?” Ela tentou gritar, mas nenhum som surgiu do seu esforço inútil. Impontente, Berenice se viu ultrajada e nada pôde fazer. A visão do coveiro sobre ela durou apenas alguns minutos, mas lhe pareceram uma eternidade. Não havia dor física, mas aquilo não lhe doía menos. De repente a escuridão e a sensação de ter sido tragada. Ela havia voltado ao corpo e ergueu suas mãos para o pescoço do agressor.

Ao sentir as mãos de uma morta apertando seu pescoço, Pé Redondo deu um grito de pavor, pulou do caixão e saiu correndo sem olhar para trás, enquanto ela se recompunha. Depois de ajeitar seu vestido amassado, Berenice deitou-se novamente, cruzou os braços sobre o peito e ficou imóvel.



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