Apertei sua mão e sentei-me na cadeira com a
expressão mais arguta que eu pude demonstrar, na suposição de que era isso que
alguém esperava encontrar ao entrar no escritório de um detetive. Meu
provável novo cliente, entretanto, limitou-se a fitar com um olhar taciturno algum ponto na parede
atrás de mim. Esperei que Kafka não estivesse em sua costumeira caminhada
matinal pelas paredes da sala.
- Então, a quê devo a honra de sua visita? –
Perguntei de chofre, com a voz de James Cagney em “Fúria Sanguinária”. Aparentemente ele não conhecia o ator, pois
sua expressão não se alterou.
Na verdade, o suposto cliente não parecia
muito à vontade e, por um instante, temi que escapulisse antes que fechássemos
o contrato. Felizmente Analú estava atenta e surgiu de repente com uma bandeja
com dois cafezinhos fumegantes. Sua graça naturalmente felina e o decote,
exibido generosamente ao servir-nos, fez o resto. Boa garota! O sujeito ficou completamente hipnotizado e
qualquer pensamento de sair correndo de minha sala deixou de existir
instantaneamente.
Com um pigarro embaraçado, ao perceber que
eu notara seu olhar guloso para minha assistente, ele finalmente falou.
- Eu desconfio que minha mulher esteja me
traindo. – Disse, sem olhar-me diretamente. Acho que não gostei desse sujeito
desde o momento que o vi. Sua atitude e sua aparência contrariava tudo o que eu
tinha visto na noite anterior. O sujeito elegante e autoconfiante cedera lugar
a um pobre diabo encurvado e angustiado pela perspectiva de ter sido traído
pela mulher. De qualquer modo, eu não gostava de nenhuma das versões.
- O quê o leva a pensar isso? Tenho algum
motivo concreto?
- Não. Nada de concreto. Só indícios, na
verdade. – Respondeu com a voz impaciente. – Ela tem se ausentado com muita
frequência, sem uma explicação convincente. Parece dissimulada em alguns
momentos, como se escondesse algo. Coisas assim.
- Entendo. – Disse eu, apenas para lhe dar a
chance de recuperar o fôlego. – O senhor tem ideia de quando começou a perceber
essas mudanças em sua esposa?
- Há alguns dias. Ela sempre teve um
comportamento metódico e previsível, mas agora não consigo saber se está
dizendo a verdade ou mentindo. Ontem à tarde, por exemplo, disse que ia ao seu
ginecologista e sumiu por mais de duas horas.
- Por que achou isso estranho? – Perguntei
mais para saber o que pensava o sujeito. Afinal, eu sabia onde sua mulher
estava.
- O ginecologista dela é, na verdade, uma
ginecologista. Uma médica da qual ela tem uma longa relação de amizade, e que
tem o consultório a duas quadras de onde moramos.
O homem parecia realmente sofrer com a
possibilidade de ser traído. Eu teria caído feito um patinho naquela conversa,
se não soubesse alguns detalhes a priori.
A conversa se estendeu ainda por mais alguns minutos, ao fim dos quais ele
me estendeu um envelope com fotos de sua esposa e informações adicionais sobre
sua rotina, além de um generoso cheque. Devo dizer que isso me surpreendeu: a
quantia expressa era bem maior do que eu ousaria pedir. O mais irônico é que no
fim da nossa conversa eu já me debatia mentalmente com um provável dilema
ético, já que sua mulher era minha cliente no mesmo tipo de investigação, e tendo
ele como objeto. Mas o olhar feliz de Analú eclipsou qualquer escrúpulo de
natureza ética que eu poderia ter. Eu sabia o que ela estava pensando. O dia do
seu pagamento já havia passado há muito tempo e eu finalmente podia quitar
minha dívida com ela. Melhor que isso, somente o bônus que acompanharia o seu
salário, o que ela ainda não sabia.
Depois que o homem saiu, chamei Analú e lhe
contei da primeira cliente e seu parentesco com o sujeito que acabara de sair.
- Coisa mais estranha! – Ela exclamou,
franzindo o cenho. – Um desconfia do outro, então?
- É o que parece, mas as aparências enganam.
– Disse eu, ainda sem saber como levar a cabo as duas missões. Não seria fácil
lidar com o conflito de interesses que certamente adviria.
- Como você vai resolver isso? – Perguntou
Analú, com uma expressão no olhar de gato querendo comer o canário. A razão
daquela pergunta logo se mostrou clara para mim nos minutos seguintes.
- Não tenho a menor ideia. Na verdade eu não
devia ter aceitado o segundo cliente, mas não posso me dar ao luxo de recusar
trabalho.
Ela rodeou minha cadeira e iniciou uma
massagem em minha nuca. Isso era sempre o prelúdio de um pedido. O modo como
Analú derrubava objeções que ainda não tinha escutado para aquilo que ela
pediria, e que eu ainda não sabia o que era.
- A gente podia se dividir. – Ela disse
baixinho, perto do meu ouvido. Isso já era apelação descarada.
- Como assim? – Perguntei. Fingir que não
havia entendido era um velho truque que ela tacitamente aceitava. Assim a
massagem duraria mais alguns minutos.
- Você poderia continuar investigando o
sujeito e eu a mulher dele. Faríamos relatórios separados e independentes, sem
que um tomasse conhecimento do que o outro havia conseguido apurar, não é
legal?
Era uma solução capenga para o dilema ético,
mas eu sabia que ela há muito desejava fazer mais do que atender telefone e
servir cafezinho. Então, depois de uns segundos de suspense eu concordei. Ela
deu um gritinho entusiasmado e pulo no meu colo.
- Jura?
- Juro. Agora levante antes que alguém entre
de repente e me acuse de corrupção de menores.
Ela riu e levantou-se ajeitando a saia.
- Acho que corrupção de “maiores” seria mais
exato. – Disse ela com uma expressão maliciosa.
- Neste caso, minha doce menina, as
aparências é que contam. Agora pegue o seu salário. – Disse-lhe, enquanto
estendia o envelope com o dinheiro que havia separado antes de sair de casa.
Esse era um bom pretexto para mudar de
assunto, antes que a situação se tornasse mais embaraçosa. Eu andava tendo
sonhos estranhos com Analú ultimamente e era melhor não abusar da sorte. Coisa
da idade, eu suponho, mas a perspectiva de me tornar um velhinho pervertido não
me agradava.
Enquanto esses pensamentos me assaltavam a
mente, Analú contava o dinheiro e abria um sorriso ao perceber que era bem mais
do que esperava.
- Tudo isso?
- Juros de mora pelo atraso. – Eu disse. – E
mais alguma coisa pela possibilidade muito provável de atrasos futuros.
- Legal. É muito bom trabalhar com você.
-
Fico feliz que você esteja satisfeita. Agora pegue este outro envelope, vá para
a sua mesinha e leia atentamente as informações que o nosso novo cliente trouxe
sobre sua mulher.
- Sim senhor. – Disse ela batendo
continência.
Acompanhei seu andar insinuante por um
dissimulado segundo e deixei escapar um suspiro. Logo que Analú saiu e fechou a
porta, eu dei de cara com Kafka me fitando. Ela não parecia muito satisfeita
comigo.
- Você viu que foi ela quem pulou no meu
colo, não viu? – Disse-lhe, embaraçado com aquele olhar repressor.
A Barata vibrou suas antenas de forma
irônica e sumiu numa fresta. Sem fazer caso de seus rompantes de ciúme, peguei
meu relatório sobre o primeiro dia de investigação que apresentaria à minha cliente.
Por um momento fiquei a imaginar a sua reação ao ler aquelas anotações.
Infelizmente, tudo o que eu tinha para corroborar minhas informações era a
gravação dos arrulhos dos pombinhos no estacionamento.
Alguns minutos depois eu me despedi de Analú
e rumei para o banco. Seria a primeira vez em muitos meses que entraria na
agência sem suar frio com o olhar do gerente. Desta vez eu iria querer um
tratamento vip. Talvez até tomasse um cafezinho.
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