Saturday, October 18, 2014

O Caso da Loura Traída - Parte 3



Apertei sua mão e sentei-me na cadeira com a expressão mais arguta que eu pude demonstrar, na suposição de que era isso que alguém esperava encontrar ao entrar no escritório de um detetive. Meu provável novo cliente, entretanto, limitou-se a fitar com um olhar taciturno algum ponto na parede atrás de mim. Esperei que Kafka não estivesse em sua costumeira caminhada matinal pelas paredes da sala.
- Então, a quê devo a honra de sua visita? – Perguntei de chofre, com a voz de James Cagney em “Fúria Sanguinária”. Aparentemente ele não conhecia o ator, pois sua expressão não se alterou.

Na verdade, o suposto cliente não parecia muito à vontade e, por um instante, temi que escapulisse antes que fechássemos o contrato. Felizmente Analú estava atenta e surgiu de repente com uma bandeja com dois cafezinhos fumegantes. Sua graça naturalmente felina e o decote, exibido generosamente ao servir-nos, fez o resto. Boa garota!  O sujeito ficou completamente hipnotizado e qualquer pensamento de sair correndo de minha sala deixou de existir instantaneamente.
Com um pigarro embaraçado, ao perceber que eu notara seu olhar guloso para minha assistente, ele finalmente falou.
- Eu desconfio que minha mulher esteja me traindo. – Disse, sem olhar-me diretamente. Acho que não gostei desse sujeito desde o momento que o vi. Sua atitude e sua aparência contrariava tudo o que eu tinha visto na noite anterior. O sujeito elegante e autoconfiante cedera lugar a um pobre diabo encurvado e angustiado pela perspectiva de ter sido traído pela mulher. De qualquer modo, eu não gostava de nenhuma das versões.
- O quê o leva a pensar isso? Tenho algum motivo concreto?
- Não. Nada de concreto. Só indícios, na verdade. – Respondeu com a voz impaciente. – Ela tem se ausentado com muita frequência, sem uma explicação convincente. Parece dissimulada em alguns momentos, como se escondesse algo. Coisas assim.
- Entendo. – Disse eu, apenas para lhe dar a chance de recuperar o fôlego. – O senhor tem ideia de quando começou a perceber essas mudanças em sua esposa?
- Há alguns dias. Ela sempre teve um comportamento metódico e previsível, mas agora não consigo saber se está dizendo a verdade ou mentindo. Ontem à tarde, por exemplo, disse que ia ao seu ginecologista e sumiu por mais de duas horas.
- Por que achou isso estranho? – Perguntei mais para saber o que pensava o sujeito. Afinal, eu sabia onde sua mulher estava.
- O ginecologista dela é, na verdade, uma ginecologista. Uma médica da qual ela tem uma longa relação de amizade, e que tem o consultório a duas quadras de onde moramos.
O homem parecia realmente sofrer com a possibilidade de ser traído. Eu teria caído feito um patinho naquela conversa, se não soubesse alguns detalhes a priori. A conversa se estendeu ainda por mais alguns minutos, ao fim dos quais ele me estendeu um envelope com fotos de sua esposa e informações adicionais sobre sua rotina, além de um generoso cheque. Devo dizer que isso me surpreendeu: a quantia expressa era bem maior do que eu ousaria pedir. O mais irônico é que no fim da nossa conversa eu já me debatia mentalmente com um provável dilema ético, já que sua mulher era minha cliente no mesmo tipo de investigação, e tendo ele como objeto. Mas o olhar feliz de Analú eclipsou qualquer escrúpulo de natureza ética que eu poderia ter. Eu sabia o que ela estava pensando. O dia do seu pagamento já havia passado há muito tempo e eu finalmente podia quitar minha dívida com ela. Melhor que isso, somente o bônus que acompanharia o seu salário, o que ela ainda não sabia.
Depois que o homem saiu, chamei Analú e lhe contei da primeira cliente e seu parentesco com o sujeito que acabara de sair.
- Coisa mais estranha! – Ela exclamou, franzindo o cenho. – Um desconfia do outro, então?
- É o que parece, mas as aparências enganam. – Disse eu, ainda sem saber como levar a cabo as duas missões. Não seria fácil lidar com o conflito de interesses que certamente adviria.
- Como você vai resolver isso? – Perguntou Analú, com uma expressão no olhar de gato querendo comer o canário. A razão daquela pergunta logo se mostrou clara para mim nos minutos seguintes.
- Não tenho a menor ideia. Na verdade eu não devia ter aceitado o segundo cliente, mas não posso me dar ao luxo de recusar trabalho.
Ela rodeou minha cadeira e iniciou uma massagem em minha nuca. Isso era sempre o prelúdio de um pedido. O modo como Analú derrubava objeções que ainda não tinha escutado para aquilo que ela pediria, e que eu ainda não sabia o que era.
- A gente podia se dividir. – Ela disse baixinho, perto do meu ouvido. Isso já era apelação descarada.
- Como assim? – Perguntei. Fingir que não havia entendido era um velho truque que ela tacitamente aceitava. Assim a massagem duraria mais alguns minutos.
- Você poderia continuar investigando o sujeito e eu a mulher dele. Faríamos relatórios separados e independentes, sem que um tomasse conhecimento do que o outro havia conseguido apurar, não é legal?
Era uma solução capenga para o dilema ético, mas eu sabia que ela há muito desejava fazer mais do que atender telefone e servir cafezinho. Então, depois de uns segundos de suspense eu concordei. Ela deu um gritinho entusiasmado e pulo no meu colo.
- Jura?
- Juro. Agora levante antes que alguém entre de repente e me acuse de corrupção de menores.
Ela riu e levantou-se ajeitando a saia.
- Acho que corrupção de “maiores” seria mais exato. – Disse ela com uma expressão maliciosa.
- Neste caso, minha doce menina, as aparências é que contam. Agora pegue o seu salário. – Disse-lhe, enquanto estendia o envelope com o dinheiro que havia separado antes de sair de casa.
Esse era um bom pretexto para mudar de assunto, antes que a situação se tornasse mais embaraçosa. Eu andava tendo sonhos estranhos com Analú ultimamente e era melhor não abusar da sorte. Coisa da idade, eu suponho, mas a perspectiva de me tornar um velhinho pervertido não me agradava.
 Enquanto esses pensamentos me assaltavam a mente, Analú contava o dinheiro e abria um sorriso ao perceber que era bem mais do que esperava.
- Tudo isso?
- Juros de mora pelo atraso. – Eu disse. – E mais alguma coisa pela possibilidade muito provável de atrasos futuros.
- Legal. É muito bom trabalhar com você.
 - Fico feliz que você esteja satisfeita. Agora pegue este outro envelope, vá para a sua mesinha e leia atentamente as informações que o nosso novo cliente trouxe sobre sua mulher.
- Sim senhor. – Disse ela batendo continência.
Acompanhei seu andar insinuante por um dissimulado segundo e deixei escapar um suspiro. Logo que Analú saiu e fechou a porta, eu dei de cara com Kafka me fitando. Ela não parecia muito satisfeita comigo.
- Você viu que foi ela quem pulou no meu colo, não viu? – Disse-lhe, embaraçado com aquele olhar repressor.
A Barata vibrou suas antenas de forma irônica e sumiu numa fresta. Sem fazer caso de seus rompantes de ciúme, peguei meu relatório sobre o primeiro dia de investigação que apresentaria à minha cliente. Por um momento fiquei a imaginar a sua reação ao ler aquelas anotações. Infelizmente, tudo o que eu tinha para corroborar minhas informações era a gravação dos arrulhos dos pombinhos no estacionamento.
Alguns minutos depois eu me despedi de Analú e rumei para o banco. Seria a primeira vez em muitos meses que entraria na agência sem suar frio com o olhar do gerente. Desta vez eu iria querer um tratamento vip. Talvez até tomasse um cafezinho.


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