Friday, October 24, 2014

O Caso da Loura Traída - Parte 4



Depois da visita ao banco, Entrei num botequim e pedi um cafezinho. Precisava por os pensamentos em ordem para dar conta das duas investigações, sem que uma entrasse em conflito com a outra. Contudo, não era só isso que requeria minha atenção. Algo me incomodava desde que saí do escritório, e não adiantava tentar enganar a mim mesmo. A figurinha de Kafka vibrando suas antenas não me saía do pensamento. Isso sempre acontecia quando eu fazia algo que não devia ter feito. A barata era meu grilo falante, por assim dizer, e não me deixava esquecer nada, até que tomasse uma atitude.

Eu sei que Kafka não havia aprovado o segundo caso que aceitei, uma vez que o cliente já era o alvo de investigação da própria mulher pelo mesmo motivo. Contudo, havia nessa relação um mistério irresistível e eu já estava decidido a seguir em frente de qualquer modo. Só que, para isso, havia concordado com a participação de Analú nas investigações e isso poderia expô-la a algum perigo. O problema é que ela estava entusiasmada com essa possibilidade e não seria fácil voltar atrás. Além do mais, eu realmente precisava do seu auxílio.
Depois do segundo copo de cafezinho resolvi limitar o trabalho de detetive de Analú às investigações pela internet, principalmente nas redes sociais. Esse era um campo de pesquisa que ela entendia bem e a manteria fora de encrencas perigosas. Felizmente a solução desse impasse veio antes que eu atingisse o meu limite de tolerância à cafeína e sofresse um ataque de taquicardia. Passei n o correio para retirar uma encomenda e voltei para o escritório disposto a revelar para minha assistente os detalhes de sua participação nas investigações.
Como eu já esperava Analú não gostou muito das mudanças que fiz, mas percebi que Kafka, incrustada na parede atrás dela, havia aprovado minha ideia. Em paz com minha consciência, me preparei para apresentar o primeiro relatório à minha cliente. A ideia de revê-la me agrava mais do que eu ousaria admitir, embora mantivesse em mente uma vaga determinação de não misturar as coisas. Todavia, a solidão prolongada tinha a propriedade de me levar a devaneios românticos com qualquer mulher bonita que cruzasse o meu caminho.
Ela chegou no meio da tarde, apesar de eu ter tentado marcar sua vinda para o fim do dia. Por algum motivo que ainda não consigo compreender, eu quis evitar o encontro dela com Analú. Teria sido uma providência justificada, dada à tensão que se instalou entre as duas, assim que a loura chegou e se apresentou na recepção.
A entrada dela no escritório não poderia ter sido mais impactante. Seu olhar glacial fez uma varredura completa em todo o recinto. Felizmente Kafka permaneceu a salvo em sua fresta de costume e nem mesmo suas antenas se mostraram visíveis desta vez. Analú, no entanto, fez questão de mostrar toda a sua exuberância e não economizou em caras e bocas por detrás de nossa cliente. Tive que me esforçar para não cair na gargalhada. Felizmente ela percebeu que estava exagerando e retirou-se antes que eu a expulsasse.
Finalmente a sós com a Loura Traída, eu a convidei para sentar e esperei que se acomodasse
na cadeira em frente à minha escrivaninha. Nesse momento me ocorreu que eu não conseguia me referir a ela pelo seu nome. Em minha mente sua imagem estava definitivamente associada ao adjetivo “Loura”. Talvez isso fosse o instinto de autodefesa funcionando, sei lá. Uma tentativa de manter em nossas relações um caráter impessoal. Ela fazia o tipo “Loura Fatal”, e eu já tinha problemas demais em minha vida.

- Então, o senhor já tem algo para mim? – Perguntou ela se ajeitando na cadeira.
Infelizmente, desta vez ela não ostentava aquele decote espetacular. Mesmo assim ainda era uma figura estonteante naquele vestidinho florido com decote canoa. Após uma pequena pausa dramática, eu abri a pasta que continha o relatório  do meu primeiro trabalho de investigação. Cuidadosamente ocultei a emoção que aquele gesto me causava. Não era prá menos. Foram quase dois meses à espera do primeiro caso, mas ela não precisava saber disso.
- Infelizmente sua suspeita foi confirmada. – Disse-lhe, ao virar o relatório em sua direção.
Ela ficou em silêncio por um instante, enquanto percorria rapidamente com os olhos as linhas do meu relato. Enquanto ela lia, eu percebia uma leve contração no canto da sua boca. Seria de aborrecimento?
- Fotos? – Ela perguntou de modo imperativo.
- O local estava muito escuro e era impossível usar flash sem pôr em risco o trabalho de investigação. – Respondi-lhe, torcendo para que não soubesse da existência de câmeras capazes de fotografar no escuro.
- Preciso de fotos. – Ela retrucou fria.
- Certamente. Nessa noite não foi possível, mas tenho isso. – Disse enquanto acionava o arquivo de som do meu PC e lhe passei os fones de ouvido. Não queria que Analú escutasse aquele momento de sacanagem explícita e nem constranger minha cliente.
- Eu sabia! – Ela disse depois de escutar. – Sua voz, no entanto era totalmente neutra, como se estivesse falando de um estranho. – Eles vão se encontrar novamente, o senhor percebeu?
- Sim. Eles vã encontrar-se amanhã à tarde na universidade, supostamente para tratar da orientação dele ao TCC da jovem. Será uma boa oportunidade para tirar as fotos.
Ela me olhou com uma expressão pensativa. Percebi que alguma ideia estava lhe ocorrendo e aguardei.
- Quero ir com o senhor amanhã.
Danou-se. O que menos precisava era uma mulher ciumenta e histérica do meu lado numa situação daquelas.
- Infelizmente isso não será possível. – Disse-lhe do modo mais profissional possível. – A senhora está emocionalmente envolvida com o objeto da investigação.
- Emocionalmente uma ova. – Ela retrucou de modo vulgar. – Ele que fique de vez com a vagabunda. Não me importo.
Diante de meu olhar interrogativo, ela continuou no mesmo tom.
- Quero apenas ter a oportunidade de retribuir a afronta no momento em que ela ocorrer. – Disse misteriosa.
Achei melhor não perguntar o queria dizer com isso e neguei mais uma vez a possibilidade de ela me acompanhar na investigação, ainda mais a bordo do meu fusquinha. Aquela loura não combinava com o valoroso carrinho, verdade seja dita. Infelizmente, eu nunca consegui dar a última palavra com mulher nenhuma. Com movimentos lentos e calculados, ela foi empilhando notas de cem reais em cima da mesa.
Eu já tinha decido ceder, mas resolvi vender caro minha dignidade machista e assisti impassível ela esvaziar a carteira e puxar o talão de cheques. A canalhice às vezes compensa e quem sou eu para ser virtuoso? Combinamos de nos encontrar no início da tarde do dia seguinte, num estacionamento próximo da universidade, quando ela mudaria do seu carro para o meu. Depois daquele pagamento extra, pouco me importava o que ela faria, caso flagrasse o marido em adultério, mas por via das dúvidas eu gravaria tudo com meu relógio espião. Felizmente consegui pegá-lo no setor de encomendas dos Correios antes que fosse devolvido ao remetente. Eu já havia recebido o aviso uma semana antes, mas não tinha dinheiro para pagar o reembolso até ontem.
Depois de finalizar o pagamento, ela se despediu alegando compromissos com o cabeleireiro. Tinha um jantar beneficente à noite no Ritz e não queria correr o risco de se atrasar. Vale dizer que o Ritz era o clube mais exclusivo da cidade.
Mal a Loura saiu da sala, Analú entrou com cara de poucos amigos. Ela tinha ouvido a conversa. Kafka chegou a pôr as antenas de fora da fresta, mas prevendo que o clima não seria muito amigável, tratou de recolher-se.
- Então ela pode, mas eu não. É assim? – Interpelou Analú, com as mãos na cintura, na clássica posição de açucareiro que as mulheres gostam de adotar em ocasiões de confronto.
- O que eu poderia fazer? Ela pagou muito bem pela brincadeira. – Respondi-lhe, enquanto contava o dinheiro ostensivamente na sua frente.
- Nossa! Tudo isso?
O espanto de Analú não era sem razão. A loura pagou de uma vez tudo o que consegui faturar em mais de um ano em todos os negócios que tentei.

- Tome. – Falei, estendendo-lhe algumas notas.
- O que é isso?
- Suborno.
- Então não quero. – Respondeu fazendo menção de devolver as notas.
- Tá bem. – Eu disse, estendendo a mão. – Eu não me importo em ser subornado.
Ela, mais que depressa, puxou sua mão cheia de notas de volta.
- Pensando bem, eu fico.
A rapidez de raciocínio de algumas mulheres não é uma maravilha? Depois desse colóquio edificante eu me despedi de Analú e saí do escritório. Já era hora de comprar alguns equipamentos suplementares e uma máquina fotográfica, capaz de fazer boas fotos com pouca luz, era o primeiro item da lista. Eu  tinha um encontro não anunciado com a Loura naquela noite. Era o momento de fazer jus ao pagamento feito pelo segundo cliente. Felizmente ela fez a gentileza de dizer onde estaria e isso me pouparia o trabalho de fazer campana na frente de sua casa.
Pois então, à noite eu estava lá, pronto para mais uma jornada. Quem pensa que o trabalho de
detetive é só glamour, não sabe de nada. Fazer campana, por exemplo, é um pé no saco. Sem contar que eu cheguei atrasado, por conta da insistência do fusca em não funcionar. Ele só mudou de atitude quando o ameacei trocá-lo por um Chevette. Felizmente o funcionário do clube que cuidava do estacionamento mostrou-se solícito. Ante a visão de uma nota de cem reais ele me facilitou as coisas. Eu me acostumei rápido com o dinheiro no bolso e estava me tornando um perdulário contumaz.
Com o fusca estacionado num local estratégico, procurei uma janela onde pudesse vislumbrar o interior do clube. Na lateral do prédio encontrei uma, localizada providencialmente numa área de sombra do lado de fora. Eu poderia observar o salão sem ser visto e, satisfeito com a sorte, apertei o passo em direção dela.
Ao me aproximar, percebi que o local escolhido por mim já estava ocupado por alguém que observava atentamente o interior do salão. Era Analú, que esticava o pescoço para ficar na altura da janela.
- O que você está fazendo aqui? – Perguntei do jeito mais autoritário que pude fazer.

- Shhh! – Fez ela com o indicador nos lábios, enquanto apontava com a outra mão a Loura sentada bem em frente à janela.
Metida num microvestido espetacular, a Loura sorria de alguma coisa engraçada que um sujeito de queixo quadrado lhe cochichava no ouvido. Não sei por que, odiei aquele cara. Esse sentimento não fazia nenhum sentido, é claro. O provável chifrudo não era eu, afinal de contas.
- Eles tão levantando. – Cochichou Analú.
- Acho que vão sair. Vamos para o estacionamento.
- Mas...
- Não queria ser detetive? Agora venha! – Disse-lhe puxando-a. Ela me seguiu feliz.
Voltei para o carro com Analú. Ele estava numa posição que permitia ver a saída do prédio e a maior parte do estacionamento. Contudo, o casal ainda demoraria a aparecer na porta do clube e aproveitei para interpelar minha rebelde assistente.
- Eu a ouvi dizer aonde ia hoje à noite e achei que poderia segui-la sem ser vista. – Respondeu gaguejando, diante de meu olhar pretensamente furioso.
- E não pensou que isso poderia ser muito perigoso?
- Ora!... – Exclamou ela, enquanto dava de ombros num gesto que queria dizer que aquilo não a preocupava. – Aqui é um local público e não um beco escuro, não é?
Sua lógica era irrefutável, mas eu não poderia recuar sem abrir um precedente perigoso. Afinal, minha assistente ainda era “dimenor” e não poderia fazer um trabalho de campo, sob o risco de me arrumar um caminhão de encrenca.
- Você tinha uma pesquisa importante a fazer na internet, por que não se concentrou nela?
- Mas eu fiz a pesquisa... – Disse ela fazendo beicinho. Se começasse a chorar ia ser uma tremenda covardia.
- Fez?
- Fiz! E até descobri uma coisa importante sobre essa loura e o marido dela.
- É mesmo. O quê?
- Eles são membros do malice.com.
- Malice. Com? O que é isso?
Ela riu daquele jeito dos adolescentes antenados e conectados ao mundo virtual.
- Em que planeta você vive? Malice é uma rede social de praticantes de swing. Troca de casais, você entendeu?
Ainda não sei se fiquei chocado por Analú saber aquilo ou pelos desdobramentos da investigação. Parecia claro que ninguém era inocente naquele caso. Restava saber por que o casal tinha contratado o mesmo detetive para investigar um ao outro. Tudo indicava que isso era muito mais que coincidência.
- Como você conseguiu entrar nessa rede? Não tem que ter cadastro?
Ela riu de novo. Desta vez com um olhar sacana.
- Eu fiz um cadastro fake de nós dois.
-Nós dois? Ficou maluca?
- O cadastro só pode ser feito por casais, mas não se preocupe.
- Como não? Eu posso ser preso por corrupção de menores. Já esqueceu a sua idade?
Novamente aquele abusado dar de ombros. Analú consegue ser muito irritante quando quer.
- Só por mais dois dias.
- Como assim, dois dias?
- Eu faço aniversário daqui a dois dias, esqueceu? Vou deixar de ser “dimenor”, como você diz a todo instante. Além do mais, eu coloquei fotos de outras pessoas do facebook e o site exibe
apenas os nicknames que eu escolhi.
A cada revelação eu ficava mais chocado com as coisas que ela podia fazer. Analú já não me parecia a menina inocente que entrou no meu escritório no dia da entrevista. Por outro lado, confesso que essa mudança de olhar representava certo alívio na minha consciência, em relação aos pensamentos sacanas que me ocorriam de vez em quando. Eu era normal, afinal de contas.

- Ela tá vindo para cá. – Falou Analú agitada, sem perceber meus dilemas morais.
Com efeito, o casal vinha em nossa direção. Estavam totalmente à vontade e paravam a cada instante para se beijar. Não eram beijos de um casal inocente, entretanto. Havia uma forte tensão sexual fluindo entre eles e, talvez, não conseguissem se controlar por muito tempo. Achei que era um bom momento para fazer jus ao pagamento que havia recebido do marido dela. Então estendi o braço para o banco traseiro e peguei a câmera fotográfica nova. Era hora da diversão.

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