Depois da visita ao banco, Entrei num
botequim e pedi um cafezinho. Precisava por os pensamentos em ordem para dar
conta das duas investigações, sem que uma entrasse em conflito com a outra.
Contudo, não era só isso que requeria minha atenção. Algo me incomodava desde
que saí do escritório, e não adiantava tentar enganar a mim mesmo. A figurinha
de Kafka vibrando suas antenas não me saía do pensamento. Isso sempre acontecia
quando eu fazia algo que não devia ter feito. A barata era meu grilo falante,
por assim dizer, e não me deixava esquecer nada, até que tomasse uma atitude.
Eu sei que Kafka não havia aprovado o
segundo caso que aceitei, uma vez que o cliente já era o alvo de investigação
da própria mulher pelo mesmo motivo. Contudo, havia nessa relação um mistério
irresistível e eu já estava decidido a seguir em frente de qualquer modo. Só
que, para isso, havia concordado com a participação de Analú nas investigações
e isso poderia expô-la a algum perigo. O problema é que ela estava entusiasmada
com essa possibilidade e não seria fácil voltar atrás. Além do mais, eu
realmente precisava do seu auxílio.
Depois do segundo copo de cafezinho resolvi
limitar o trabalho de detetive de Analú às investigações pela internet, principalmente
nas redes sociais. Esse era um campo de pesquisa que ela entendia bem e a
manteria fora de encrencas perigosas. Felizmente a solução desse impasse veio
antes que eu atingisse o meu limite de tolerância à cafeína e sofresse um
ataque de taquicardia. Passei n o correio para retirar uma encomenda e voltei
para o escritório disposto a revelar para minha assistente os detalhes de sua
participação nas investigações.
Como eu já esperava Analú não gostou muito
das mudanças que fiz, mas percebi que Kafka, incrustada na parede atrás dela,
havia aprovado minha ideia. Em paz com minha consciência, me preparei para
apresentar o primeiro relatório à minha cliente. A ideia de revê-la me agrava
mais do que eu ousaria admitir, embora mantivesse em mente uma vaga determinação
de não misturar as coisas. Todavia, a solidão prolongada tinha a propriedade de
me levar a devaneios românticos com qualquer mulher bonita que cruzasse o meu
caminho.
Ela chegou no meio da tarde, apesar de eu
ter tentado marcar sua vinda para o fim do dia. Por algum motivo que ainda não
consigo compreender, eu quis evitar o encontro dela com Analú. Teria sido uma
providência justificada, dada à tensão que se instalou entre as duas, assim que
a loura chegou e se apresentou na recepção.
A entrada dela no escritório não poderia ter
sido mais impactante. Seu olhar glacial fez uma varredura completa em todo o
recinto. Felizmente Kafka permaneceu a salvo em sua fresta de costume e nem mesmo
suas antenas se mostraram visíveis desta vez. Analú, no entanto, fez questão de
mostrar toda a sua exuberância e não economizou em caras e bocas por detrás de
nossa cliente. Tive que me esforçar para não cair na gargalhada. Felizmente ela
percebeu que estava exagerando e retirou-se antes que eu a expulsasse.
Finalmente a sós com a Loura Traída, eu a
convidei para sentar e esperei que se acomodasse
na cadeira em frente à minha
escrivaninha. Nesse momento me ocorreu que eu não conseguia me referir a ela
pelo seu nome. Em minha mente sua imagem estava definitivamente associada ao
adjetivo “Loura”. Talvez isso fosse o instinto de autodefesa funcionando, sei
lá. Uma tentativa de manter em nossas relações um caráter impessoal. Ela fazia
o tipo “Loura Fatal”, e eu já tinha problemas demais em minha vida.
- Então, o senhor já tem algo para mim? –
Perguntou ela se ajeitando na cadeira.
Infelizmente, desta vez ela não ostentava
aquele decote espetacular. Mesmo assim ainda era uma figura estonteante naquele
vestidinho florido com decote canoa. Após uma pequena pausa dramática, eu abri
a pasta que continha o relatório do meu
primeiro trabalho de investigação. Cuidadosamente ocultei a emoção que aquele
gesto me causava. Não era prá menos. Foram quase dois meses à espera do
primeiro caso, mas ela não precisava saber disso.
- Infelizmente sua suspeita foi confirmada.
– Disse-lhe, ao virar o relatório em sua direção.
Ela ficou em silêncio por um instante,
enquanto percorria rapidamente com os olhos as linhas do meu relato. Enquanto
ela lia, eu percebia uma leve contração no canto da sua boca. Seria de
aborrecimento?
- Fotos? – Ela perguntou de modo imperativo.
- O local estava muito escuro e era
impossível usar flash sem pôr em risco o trabalho de investigação. –
Respondi-lhe, torcendo para que não soubesse da existência de câmeras capazes
de fotografar no escuro.
- Preciso de fotos. – Ela retrucou fria.
- Certamente. Nessa noite não foi possível,
mas tenho isso. – Disse enquanto acionava o arquivo de som do meu PC e lhe
passei os fones de ouvido. Não queria que Analú escutasse aquele momento de
sacanagem explícita e nem constranger minha cliente.
- Eu sabia! – Ela disse depois de escutar. –
Sua voz, no entanto era totalmente neutra, como se estivesse falando de um
estranho. – Eles vão se encontrar novamente, o senhor percebeu?
- Sim. Eles vã encontrar-se amanhã à tarde
na universidade, supostamente para tratar da orientação dele ao TCC da jovem.
Será uma boa oportunidade para tirar as fotos.
Ela me olhou com uma expressão pensativa.
Percebi que alguma ideia estava lhe ocorrendo e aguardei.
- Quero ir com o senhor amanhã.
Danou-se. O que menos precisava era uma
mulher ciumenta e histérica do meu lado numa situação daquelas.
- Infelizmente isso não será possível. –
Disse-lhe do modo mais profissional possível. – A senhora está emocionalmente
envolvida com o objeto da investigação.
- Emocionalmente uma ova. – Ela retrucou de
modo vulgar. – Ele que fique de vez com a vagabunda. Não me importo.
Diante de meu olhar interrogativo, ela
continuou no mesmo tom.
- Quero apenas ter a oportunidade de
retribuir a afronta no momento em que ela ocorrer. – Disse misteriosa.
Achei melhor não perguntar o queria dizer
com isso e neguei mais uma vez a possibilidade de ela me acompanhar na
investigação, ainda mais a bordo do meu fusquinha. Aquela loura não combinava
com o valoroso carrinho, verdade seja dita. Infelizmente, eu nunca consegui dar
a última palavra com mulher nenhuma. Com movimentos lentos e calculados, ela
foi empilhando notas de cem reais em cima da mesa.
Eu já tinha decido ceder, mas resolvi vender
caro minha dignidade machista e assisti impassível ela esvaziar a carteira e
puxar o talão de cheques. A canalhice às vezes compensa e quem sou eu para ser
virtuoso? Combinamos de nos encontrar no início da tarde do dia seguinte, num
estacionamento próximo da universidade, quando ela mudaria do seu carro para o
meu. Depois daquele pagamento extra, pouco me importava o que ela faria, caso
flagrasse o marido em adultério, mas por via das dúvidas eu gravaria tudo com
meu relógio espião. Felizmente consegui pegá-lo no setor de encomendas dos
Correios antes que fosse devolvido ao remetente. Eu já havia recebido o aviso
uma semana antes, mas não tinha dinheiro para pagar o reembolso até ontem.
Depois de finalizar o pagamento, ela se
despediu alegando compromissos com o cabeleireiro. Tinha um jantar beneficente
à noite no Ritz e não queria correr o risco de se atrasar. Vale dizer que o
Ritz era o clube mais exclusivo da cidade.
Mal a Loura saiu da sala, Analú entrou com
cara de poucos amigos. Ela tinha ouvido a conversa. Kafka chegou a pôr as
antenas de fora da fresta, mas prevendo que o clima não seria muito amigável,
tratou de recolher-se.
- Então ela pode, mas eu não. É assim? –
Interpelou Analú, com as mãos na cintura, na clássica posição de açucareiro que
as mulheres gostam de adotar em ocasiões de confronto.
- O que eu poderia fazer? Ela pagou muito
bem pela brincadeira. – Respondi-lhe, enquanto contava o dinheiro
ostensivamente na sua frente.
- Nossa! Tudo isso?
O espanto de Analú não era sem razão. A
loura pagou de uma vez tudo o que consegui faturar em mais de um ano em todos
os negócios que tentei.
- Tome. – Falei, estendendo-lhe algumas
notas.
- O que é isso?
- Suborno.
- Então não quero. – Respondeu fazendo
menção de devolver as notas.
- Tá bem. – Eu disse, estendendo a mão. – Eu
não me importo em ser subornado.
Ela, mais que depressa, puxou sua mão cheia
de notas de volta.
- Pensando bem, eu fico.
A rapidez de raciocínio de algumas mulheres
não é uma maravilha? Depois desse colóquio edificante eu me despedi de Analú e
saí do escritório. Já era hora de comprar alguns equipamentos suplementares e
uma máquina fotográfica, capaz de fazer boas fotos com pouca luz, era o
primeiro item da lista. Eu tinha um
encontro não anunciado com a Loura naquela noite. Era o momento de fazer jus ao
pagamento feito pelo segundo cliente. Felizmente ela fez a gentileza de dizer
onde estaria e isso me pouparia o trabalho de fazer campana na frente de sua
casa.
Pois então, à noite eu estava lá, pronto
para mais uma jornada. Quem pensa que o trabalho de
detetive é só glamour, não
sabe de nada. Fazer campana, por exemplo, é um pé no saco. Sem contar que eu
cheguei atrasado, por conta da insistência do fusca em não funcionar. Ele só
mudou de atitude quando o ameacei trocá-lo por um Chevette. Felizmente o
funcionário do clube que cuidava do estacionamento mostrou-se solícito. Ante a
visão de uma nota de cem reais ele me facilitou as coisas. Eu me acostumei
rápido com o dinheiro no bolso e estava me tornando um perdulário contumaz.
Com o fusca estacionado num local
estratégico, procurei uma janela onde pudesse vislumbrar o interior do clube.
Na lateral do prédio encontrei uma, localizada providencialmente numa área de
sombra do lado de fora. Eu poderia observar o salão sem ser visto e, satisfeito
com a sorte, apertei o passo em direção dela.
Ao me aproximar, percebi que o local
escolhido por mim já estava ocupado por alguém que observava atentamente o
interior do salão. Era Analú, que esticava o pescoço para ficar na altura da
janela.
- O que você está fazendo aqui? – Perguntei
do jeito mais autoritário que pude fazer.
- Shhh! – Fez ela com o indicador nos lábios,
enquanto apontava com a outra mão a Loura sentada bem em frente à janela.
Metida num microvestido espetacular, a Loura
sorria de alguma coisa engraçada que um sujeito de queixo quadrado lhe
cochichava no ouvido. Não sei por que, odiei aquele cara. Esse sentimento não
fazia nenhum sentido, é claro. O provável chifrudo não era eu, afinal de
contas.
- Eles tão levantando. – Cochichou Analú.
- Acho que vão sair. Vamos para o
estacionamento.
- Mas...
- Não queria ser detetive? Agora venha! –
Disse-lhe puxando-a. Ela me seguiu feliz.
Voltei para o carro com Analú. Ele estava
numa posição que permitia ver a saída do prédio e a maior parte do
estacionamento. Contudo, o casal ainda demoraria a aparecer na porta do clube e
aproveitei para interpelar minha rebelde assistente.
- Eu a ouvi dizer aonde ia hoje à noite e
achei que poderia segui-la sem ser vista. – Respondeu gaguejando, diante de meu
olhar pretensamente furioso.
- E não pensou que isso poderia ser muito
perigoso?
- Ora!... – Exclamou ela, enquanto dava de
ombros num gesto que queria dizer que aquilo não a preocupava. – Aqui é um
local público e não um beco escuro, não é?
Sua lógica era irrefutável, mas eu não
poderia recuar sem abrir um precedente perigoso. Afinal, minha assistente ainda
era “dimenor” e não poderia fazer um trabalho de campo, sob o risco de me
arrumar um caminhão de encrenca.
- Você tinha uma pesquisa importante a fazer
na internet, por que não se concentrou nela?
- Mas eu fiz a pesquisa... – Disse ela
fazendo beicinho. Se começasse a chorar ia ser uma tremenda covardia.
- Fez?
- Fiz! E até descobri uma coisa importante
sobre essa loura e o marido dela.
- É mesmo. O quê?
- Eles são membros do malice.com.
- Malice. Com? O que é isso?
Ela riu daquele jeito dos adolescentes
antenados e conectados ao mundo virtual.
- Em que planeta você vive? Malice é uma
rede social de praticantes de swing. Troca de casais, você entendeu?
Ainda não sei se fiquei chocado por Analú
saber aquilo ou pelos desdobramentos da investigação. Parecia claro que ninguém
era inocente naquele caso. Restava saber por que o casal tinha contratado o
mesmo detetive para investigar um ao outro. Tudo indicava que isso era muito
mais que coincidência.
- Como você conseguiu entrar nessa rede? Não
tem que ter cadastro?
Ela riu de novo. Desta vez com um olhar
sacana.
- Eu fiz um cadastro fake de nós dois.
-Nós dois? Ficou maluca?
- O cadastro só pode ser feito por casais,
mas não se preocupe.
- Como não? Eu posso ser preso por corrupção
de menores. Já esqueceu a sua idade?
Novamente aquele abusado dar de ombros.
Analú consegue ser muito irritante quando quer.
- Só por mais dois dias.
- Como assim, dois dias?
- Eu faço aniversário daqui a dois dias,
esqueceu? Vou deixar de ser “dimenor”, como você diz a todo instante. Além do
mais, eu coloquei fotos de outras pessoas do facebook e o site exibe
apenas os
nicknames que eu escolhi.
A cada revelação eu ficava mais chocado com
as coisas que ela podia fazer. Analú já não me parecia a menina inocente que
entrou no meu escritório no dia da entrevista. Por outro lado, confesso que
essa mudança de olhar representava certo alívio na minha consciência, em
relação aos pensamentos sacanas que me ocorriam de vez em quando. Eu era
normal, afinal de contas.
- Ela tá vindo para cá. – Falou Analú
agitada, sem perceber meus dilemas morais.
Com efeito, o casal vinha em nossa direção.
Estavam totalmente à vontade e paravam a cada instante para se beijar. Não eram
beijos de um casal inocente, entretanto. Havia uma forte tensão sexual fluindo
entre eles e, talvez, não conseguissem se controlar por muito tempo. Achei que
era um bom momento para fazer jus ao pagamento que havia recebido do marido
dela. Então estendi o braço para o banco traseiro e peguei a câmera fotográfica
nova. Era hora da diversão.
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