Aquela noite foi de
total sintonia entre eles, algo que já não acontecia há algum tempo e,
por isso mesmo, estava carregada de presságios que se concretizariam em
algum momento crucial em suas vidas.
Enquanto apreciava a
visão encantadora da nudez de Letícia, Daniel se perguntava se já não
tinha tudo para ser feliz. Era uma pergunta pertinente, que ele
repetiria para si como um mantra, na noite seguinte e nos dias que se
seguiriam. Apesar da decisão que se impôs, para não perder Letícia, sua
determinação seria duramente testada pelos acontecimentos que estavam
por vir.
Ainda sem saber o que o
destino lhe reservava, Ele começou o dia seguinte enfrentando as
consequências de suas faltas no trabalho.
- Eu sinto muito. -
Disse Prudêncio. - Mas tenho que seguir o regulamento. Não posso aceitar
o motivo de sua viagem a Florianópolis como justificativa das suas
faltas.
- Está tudo bem. Eu não
pediria que me tratasse de modo diferente. – Respondeu Daniel. O que ele
menos queria era arrumar problemas para outra pessoa, além dele
próprio.
- Eu sei que não. Você é
um funcionário exemplar, mas muito é visado por seus colegas de
trabalho. Procure evitar situações de confronto, principalmente agora,
que existe um cargo de chefia vago, com a aposentadoria do Menezes.
- Eu estou sendo cogitado para o cargo?
-Sim. Você e Fábio. Bem... Creio que é melhor você voltar ao trabalho.
Daniel levantou-se
pensando naquilo. Ele não era particularmente muito ambicioso, mas uma
promoção viria bem à calhar naquele momento.
- Desculpe os aborrecimentos que lhe causei e obrigado por tudo.
-Tolice. Isso faz parte do meu trabalho.
- Mesmo assim obrigado.
Daniel saiu da sala de
Prudêncio com o firme propósito de afastar os problemas que pudessem se
interpor na sua vida profissional. Entretanto, haviam dificuldades além
do ambiente de trabalho, como ele logo perceberia.
À noite, na casa de Letícia, ela finalmente sede ao desejo da mãe e inicia os preparativos para um casamento tradicional.
- Espero que este trabalho todo compense. – Disse Dona Aurora enfiando mais um alfinete no vestido de noiva da filha.
- Aí! Você me picou.
- Desculpe. Estou nervosa.
- Não sei por que. Não é você que vai casar.
- Se algum dia você tiver uma filha casando, vai saber por que.
- Por mim, não teria essa bobagem de "casar de branco". Era só juntar as escovas de dente.
- O mal de vocês jovens é
que não respeitam a tradição. – Retrucou dona Aurora, entre um resmungo
e um alfinete. – Acham que sabem tudo e depois não compreendem porque
algo não deu certo.
-Você é muito implicante. Acha que tá sempre certa...
- E não estou sempre?
- Não, mamãe. Você pensa que está sempre certa, o que não é a mesma coisa.
-Tá certo. Não vou discutir com você. Ë melhor terminar logo com isso e ir dormir, que o dia será cheio amanhã.
Letícia deixa escapar um
suspiro de alívio. Bancar o corpo de prova do seu próprio vestido de
noiva não era bem o que desejava, pensou, lembrando a tórrida noite
anterior. Queria repeti-la em todos os detalhes, mas sabia que Daniel
precisava estar só nessa noite. Apesar disso, sentia-se feliz e
confiante.
- Acho que você tá certa. Precisamos descansar. – Disse ela. – Ainda tenho muitas coisas para planejar.
- E providências a tomar. Por falar nisso... o noivo não vem aqui, hoje?
- Estava demorando, né mãe? Ele tem algumas coisas para fazer e não virá.
Dona Aurora fez seu muxoxo de costume.
- Ah, Bom! Eu só perguntei por perguntar. Não precisa ficar toda espetada.
- Sei... Conheço você. – Disse Letícia com um olhar acusador.
Dona Aurora ignorou a
reprimenda sem pestanejar, como era de seu hábito. Elas se conheciam
profundamente e ambas sabiam que aquela conversa nada significava.
Apenas fazia parte de um ritual costumeiro de implicância entre elas,
que tinha sempre Daniel como alvo principal.
- Sabe de uma coisa? Vou dormir. Boa noite! – Retrucou dona Aurora, depois de um momento, e soltou um longo bocejo.
- Boa noite, mamãe. – Respondeu Letícia em tom neutro.
Ela sabia que aquele
bocejo era longo demais para ser real. Era apenas o velho hábito de sua
mãe: sair pela tangente, depois de lançar o veneno no ar. Aquilo não era
nada que já não conhecesse e pudesse lidar, mas sentia-se cansada
dessas manobras e não via a hora de impor alguma distância entre as
duas. Esperava que isso fizesse bem para ambas, mas duvidava que sua mãe
concordasse com isso. No fundo percebia que Dona Aurora apenas reagia
ao medo da solidão. A implicância com Daniel poderia ser com qualquer
outro que entrasse em sua vida.
A imagem de Daniel em
sua mente a fez sorrir. Estavam juntos novamente, e isso era tudo que
lhe importava. Não deixaria que nada se interpusesse entre eles, pois
vira no seu olhar a convicção que precisava sentir. Era o momento de ser
feliz. Quase sem perceber, acaricio seu ventre e uma onda de emoção e
ternura inundou seu coração.
Cuidadosamente ela
despiu o vestido de noiva e encaminhou-se para chuveiro. A lembrança de
Daniel reavivara o desejo. Conformou-se em soltar um suspiro de leve
frustração. Compreendia sua ausência, mas o queria muito naquele
momento. Ela sabia que seria difícil conciliar o sono, se não desse um
jeito em todo aquele ardor.
Já no banheiro,
livrou-se do sutiã e fitou sua imagem no espelho. Os seios estavam
lindos e empinados como sempre. Ela tinha um inconfessado orgulho deles e
sorria internamente de satisfação ao perceber os olhares que provocava
com seus decotes discretos, mas que lhe valorizavam o colo.
Mas apesar de feliz com o
reflexo, ela sentiu os seios mas pesados e os tocou. Estavam mais
sensíveis e enrijeceram no primeiro toque. As lembranças da noite
anterior eram ainda muito fortes, ela pensou.
- Ah! ... Dani... Olha o que você está perdendo! – Sussurrou, com a respiração ofegante.
Os mamilos dos seios
apontavam para sua imagem e reagiram rapidamente ao toque de sua mão
molhada. Ela gemeu baixinho, esperando que a mãe não ouvisse. Aquilo
poderia ser constrangedor aos ouvidos repressores de dona Aurora, mas
não levou muito tempo para que essa possibilidade já não importasse. Ela
já estava totalmente envolvida em sua fantasia. Lentamente, despiu a
calcinha e acomodou-se como pôde no acento do bacio. Em seguida
percorreu seu corpo com a ponta dos dedos e deixou-se envolver pela
sensação de sentir-se nua. Adorava isso, não sem uma pontinha de culpa,
que logo era afastada com um "Que se dane".
Era um momento só dela e
ninguém tinha nada a ver com isso, nem mesmo aquele padre com cara de
fuinha, para quem sua mãe obrigou que ela se confessasse. Aquilo ainda
estava bem nítido na sua memória.
A confissão fazia parte
do ritual da primeira comunhão. Quando chegou sua vez de ir ao
confessionário, ela ficou apavorada por não lembrar de nenhum pecado
para confessar. Então inventou alguns, para se livrar logo daquilo. O
resultado foi a obrigação de se ajoelhar e rezar por um longo tempo,
antes do padre liberá-la.
Ela nunca mais voltou ao
confessionário depois daquela experiência. O afastamento da Igreja
demorou um pouco mais, mas aconteceu gradativamente, à medida em que
amadurecia e suas próprias convicções se consolidavam. Sua mãe bem que
tentou reverter aquele processo, mas sem sucesso. Daquele episódio só
restou aquele incômodo fragmento de culpa pelo prazer solitário que,
eventualmente, se proporcionava. Entretanto, o padre com cara de fuinha
ainda frequentou sua casa por alguns anos. Sua mãe adorava a companhia
dele nos almoços de domingo.
Essas lembranças
incômodas não a afastaram do doce deleite de si mesma. Em cada toque
descobria algo mais da Letícia que ninguém conhecia, e que ela própria
às vezes estranhava. Como alguém, de aparência tão meiga e inocente,
podia de repente se esvair num gozo longo e intermitente, feito as ondas
do mar? Essa era uma pergunta cuja resposta ela não tinha necessidade
de responder, pois há muito transcendera os princípios da moral
canhestra que sua mãe tentara lhe incutir. Ali, naquele momento, era ela
mesma, sem máscaras e sem pudores desnecessários e degradantes. A
Letícia que emergia daquele mergulho profundo e arrebatador era
completa, plena de si mesma.
Enquanto isso, numa
praia distante e deserta, Daniel fitava o mar. Ele não tinha se dado
conta dos caminhos que percorrera até chegar ali, nem o motivo de ter se
encaminhado justamente para aquele local. Seus pensamentos estavam
longe e ele mal percebia a lua refletida na água.
Como poderia se despedir
de um sonho? Ele havia vivido tanto tempo em função daquilo, que já não
sabia o que fazer. Na verdade, nem mesmo saberia explicar aquela
obsessão em olhar para as estrelas, à espera de um chamado que jamais
viria.
Então era só aquilo? Ele se perguntava mentalmente. Como se despede de um sonho. Eu vivi tanto tempo por isso, e agora não sei o que fazer. Nem mesmo sei do que se trata.
Seus pensamentos
recuaram no tempo. Ele se lembrou das chamas ao seu redor, consumindo a
carcaça metálica. Uma voz o guiou para longe do fogo, até que a
escuridão o envolveu por completo. Acordou horas depois num hospital,
sem lembrar de nada. Nem mesmo compreendia o que as pessoas falavam ao
seu redor. A língua era estranha, mas percebia que falavam dele.
- Foi um acidente terrível. Coitadinho.
- O que aconteceu?
- Ninguém sabe. Acham que foi um acidente de avião, mas não há registro de nenhum sobrevoo naquela área.
- Ele foi o único sobrevivente?
- Acho que sim. Não encontraram mais ninguém. Mas quer saber? Tem algum mistério aí.
- Talvez o acidente tenha sido de um voo clandestino, sei lá. Talvez algum político envolvido em maracutaias fugindo do país.
- Vá saber...
A compreensão daquele
diálogo não foi possível e ele logo o esqueceu. Anos se passaram num
orfanato, sem que o mistério de sua origem fosse solucionado. Com o
passar do tempo, isso também foi esquecido, até que ele se tornou adulto
suficiente para cuidar de si mesmo. Por muitos anos vagou à esmo pelo
país, sem que nada aquietasse seu espírito, até que conheceu Letícia, ao
matricular-se na mesma escola em que ela estudava. Seus olhares se
encontraram por diversas vezes, sem que ele encontrasse coragem de lhe
falar. Então ela tomou a iniciativa e falou com ele no intervalo de
aula. A partir daquele dia eles não se largaram mais, para desgosto de
dona Aurora. A mãe de Letícia logo percebeu que o interesse da filha por
aquele garoto estranho não era transitório. A percepção disso não
contribuiu muito para que ela o olhasse com alguma simpatia.
Alguns anos se passaram,
até que ele lhe perguntou por que ela havia tomado a iniciativa de lhe
falar. Letícia lhe respondeu que não teve paciência para esperar que ele
tivesse coragem para isso. Aquela resposta não tinha sido muito
lisonjeira, mas ele deu graças a Deus por isso.
Suas reminiscências
quase o impediram de ver algo estranho se movimentando no céu estrelado.
Mais atento, ele fixou o olhar na constelação do Cruzeiro do Sul e
percebeu que uma estrela parecia movimentar-se e mudar de tamanho.
Ele esfregou os olhos
sem acreditar, até que a estrela tomou a forma de um disco-voador e
pairasse silenciosamente diante dele. Seu coração bateu forte e uma
estranha emoção tomou conta de si.
- Eles vieram, afinal!
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