Wednesday, December 28, 2016

Sob o Olhar das Estrelas - Capítulo 11



Alheia aos acontecimentos da noite anterior, Dona Aurora dá os últimos retoques no vestido de casamento de Letícia. Apesar de Daniel não ser o genro dos seus sonhos, ela deseja que sua filha esteja linda no dia da cerimônia. Essa alegria ninguém iria lhe tirar, pensava, quando o interfone tocou. Ela não esperava ninguém, mas levantou-se resmungando para atender.
- Boa noite. – Disse Prudêncio, quando ela abriu a porta.
- Boa noite, Prudêncio. Como vai você?
- Eu estou ótimo. Espero não estar incomodando a Senhora, há essa hora.
-Imagina! Entre, você é de casa. Depois, hoje em dia, a gente deve dar graças a Deus quando, quem bate à porta, não é cobrador, assaltante, ou membro de uma dessas igrejas que surgem todo dia.
- É verdade. Bem... Eu vim trazer o presente de casamento dos noivinhos. Eles já chegaram?

- Ainda não, mas espero que não demorem. Letícia tem que fazer a última prova do vestido. Aceita um cafezinho?
- Sem dúvida. O seu café é ótimo!
- Sempre gentil, né Prudêncio? Letícia bem que poderia ter escolhido alguém como você. Evitaria muitos aborrecimentos.
Prudêncio já tinha ouvido aquele tipo de conversa e não mordeu a isca. Para ele, a mãe de Letícia fazia parte de um grupo de pessoas com dificuldades para estabelecer conexões empáticas com qualquer um que não se enquadrasse em seus padrões de comportamento. Nesse aspecto, Daniel deveria ser um ponto fora da linha difícil de engolir.
- Daniel é bom rapaz. – Ele disse, contemporizador.
- Pode até ser, mas ele é muito esquisito.
A expressão dela era a própria esquisitice, mas Prudêncio preferiu eximir-se de qualquer comentário nesse aspecto.
- Ele apenas parece esquisito. Devia conhecê-lo melhor.
- Você parece Letícia falando. – Retrucou dona Aurora, fazendo um muxoxo. – Ela também não me dá ouvidos.
- Não se trata disso, por favor não me entenda mal. Conhecer Daniel exige um pouco de paciência, mas vale a pena. Ele é uma pessoa muito interessante.
- Pois, para mim, continua sendo um maluco. Bem... Isso é problema de Letícia. Ela que se preocupe, já que não me ouve.
Aquele tipo de conversa já era familiar à Prudêncio, para que ele se deixasse envolver. Considerava dona Aurora uma boa pessoa, mas ela parecia insistir em encarnar o protótipo da sogra ressentida. Aquela que nunca ficaria feliz com as escolhas da filha, mas tudo poderia ser apenas indício do medo que sentia da solidão.
- Daniel será o marido será em breve o marido de sua única filha. A senhora não tem mais ninguém, não é verdade?
- Onde você tá querendo chegar?
- Em lugar nenhum, na verdade. É a senhora que deve pensar como pretende se relacionar com o seu genro e sua filha, não é?
A pergunta pairou no ar como uma nuvenzinha incômoda para dona Aurora. Não foi difícil Prudêncio perceber que tinha acertado o alvo.

À noite, por volta das vinte e três horas, Daniel e Letícia se encontram na praia onde costumavam namorar e contemplar as estrelas. Sentados sobre o capô do carro, eles olham para o horizonte, cada qual imerso em seus próprios pensamentos.
- Você não precisava ter vindo. – Disse Daniel de repente, rompendo o silêncio incômodo que já se insinuava entre eles.
- Seria pior. Eu sentiria como você tivesse morrido em um acidente. Assim, pelo menos, posso me despedir de você.
Ele nada disse. Por mais que se esforçasse, não conseguia encontrar as palavras adequadas para exprimir o estava sentindo. Depois de algum tempo indeciso, ele soltou um longo suspiro. Depois tirou um envelope do bolso e estendeu para ela.
- Tome. Isso é para você.
- O que é?
- Nada demais. É só uma procuração autorizando você a movimentar minha conta bancária, negociar o carro e o apartamento, entre outras coisas.
- Não precisava ter feito isso.
- Para onde vou, não precisarei dessas coisas. Além do mais, você e nosso filho seriam meus herdeiros, de qualquer modo.
Mal ele pronunciou essas palavras, um objeto luminoso cruzou o céu escuro e se aproximou rapidamente deles.
- Estão vindo.
- Sim.
- ... É melhor nos despedirmos agora.
Eles se abraçam com carinho e choram a dor da separação iminente. Letícia se desprende e o olha como se quisesse fixar a imagem dele para sempre em sua mente.
- Ei... Não esqueça de escrever!
- Como iria esquecer?
Eles sorriem um para outro e se beijam ardor, enquanto o disco voador paira silencioso um pouco acima deles.
- É melhor você ir agora. – Disse Letícia, lutando com a aflição que ameaçava tomar conta dela.
Daniel a beija pela última vez e afasta-se dela. De repente é banhado por um facho de luz e desaparece. Letícia observa o disco voador afastar-se rapidamente, até se tornar um ponto luminoso e depois desaparecer na escuridão.
Letícia ficou por um momento fitando o céu escuro e se deu conta de que não havia estrelas nessa noite. Elas se ocultavam atrás das pesadas nuvens escuras que ameaçavam desabar a qualquer momento.
- Tudo acabado. – Ela murmura para si mesma, engolindo as lágrimas. Sabia que aquela dor demoraria muito a passar.
- Agora somos apenas nós dois. – Falou para o bebê, que cresce no seu ventre, enquanto abre a porta do carro.
De costas para o mar, ela não viu de imediato o raio de luz que ressurgia atrás de si, até que seu próprio reflexo apareceu na janela do carro.
- Mas o quê? ...
Ela se virou, sentindo o coração apertar de ansiedade e esperança.
Aquela tensa expectativa não durou muito. Daniel ressurgiu na praia e caminhou apressado em direção dela. Ele nada diz. Apenas a toma nos braços.
- O que houve? – Ela perguntou, mal acreditando que ele estava ali.
- Não posso. Não consegui.
Letícia demorou uma fração de segundo para entender o significado do que ele dizia para ela.
- Não brinque comigo. – Disse, subitamente zangada.
- - Não estou brincando. Dentro da espaçonave percebi que o meu mundo é você... E nosso filho. Como poderia deixá-los? Todo o resto não faria nenhum sentido sem vocês.
Letícia abraça Daniel com todas as forças, enquanto o disco voador se elevou lentamente atrás dele, até que ganhou velocidade e sumiu rapidamente no céu escuro. Ainda abraçados, eles se dirigiram para o carro.
- Acabou.
- De verdade?
- Sim. A minha busca terminou. Agora tenho uma nova missão.
- Nova missão?
- Sim. Cuidar de você e nosso bebê, que ainda vai nascer. Para isso, devo ajudar os homens a compreender e proteger o seu mundo.
Sem conseguir conter as lágrimas, Letícia apenas sorriu. Instintivamente ela sabia que ele finalmente havia completado sua jornada pessoal em busca de si mesmo. Não precisava de mais explicações, para saber que finalmente Daniel estava pronto para viver sua história com ela.
Uma chuva fina começou a cair. Era quase um sereno, mas longe de incomodar, parecia mais o prenúncio de uma nova vida para Daniel. Finalmente sabia da sua história e tinha uma nova compreensão de si mesmo e do mundo em que vivia. Não seria mais um estranho e não seria tampouco guiado por inquietações que não compreendia. Tinha, é certo, uma longa jornada para convencer os seres humanos da Terra o quão maravilhoso era o seu mundo, e o quanto tudo estava interligado numa longa teia de relações, onde o homem era apenas um dos elos numa cadeia de eventos que poderia elevar a humanidade ao patamar dos antigos deuses ou derrubá-la rumo à destruição. Daniel tinha um novo propósito de existência, para o qual dedicaria toda a energia e obstinação de que era capaz, pois era no futuro da Terra que estava a sobrevivência de seus descendentes.
- Daniel?
- Hã?
- Adoro estar aqui abraçada com você, mas essa chuvinha fina já está escorrendo por dentro do meu vestido.
- Puxa! Acho que me distraí. Desculpe! – Ele respondeu, enquanto abria a porta do carro.
 - Você estava com aquele olhar vidrado de novo. Se arrependeu de ter desistido de ir para as estrelas?
- Não. Claro que não. Estava apenas pensando no que virá a partir de agora.
Já dentro do carro, ela o abraçou e o beijou com paixão, de um jeito que ele nunca tinha sentido antes.
- Gostou da amostra? – Ela disse, e sorriu maliciosamente. – Vamos para casa?
- Não me ocorre coisa melhor para pensar.
Ele ligou o motor do carro e, feliz, percebeu o significado que ela tinha dado à palavra “casa”, antes de arrancar.

Não demorou muito para Paulo Botelho saber que Daniel desistiu da oportunidade que teve para voltar às suas origens. Algum tempo depois, ele volta à cidade e encontra o amigo novamente, no mesmo bar onde conversaram tantas vezes.
- Essa é a história mais incrível que já presenciei. – Disse Paulo, enquanto abanava a cabeça. – E nem posso escrever sobre ela. Bem... Como você se sente, depois de ter desistido do grande sonho?
- Bem. Tenho outros sonhos a buscar agora.
- Imagino. Salvar essa humanidade mesquinha e miserável é uma missão e tanto, mesmo para você.
Daniel riu, enquanto enchia os copos de cerveja.
- Não estarei sozinho. Em breve uma multidão perceberá a enrascada e se juntará a mim. E assim, outros virão.
- Como você pode ter tanta certeza? – Perguntou Paulo, cético. – O homem é a espécie mais egocêntrica que poderia existir. Acho que a consciência ambiental só virá o dia que a humanidade tiver sua existência realmente ameaçada.
A expressão de Daniel era inescrutável, mas Paulo percebia um brilho discreto em seus olhos. Seu amigo tinha o mesmo olhar que ele tinha visto em jogadores de pôquer, quando lhes ocorria a possibilidade de uma boa jogada.
 - Viu o noticiário hoje? – Perguntou Daniel, em tom neutro.
Paulo sentiu que era sua vez de pagar para ver, mas decidiu prolongar o jogo. Estava curioso para saber o que Daniel pretendia com aquela conversa, mas não lhe negaria o pequeno prazer em prolongar o suspense.
- Sim. E daí? – Paulo respondeu.
- Nenhuma notícia lhe chamou a atenção?
- Não, nada.
- Não mesmo?
Diante da insistência de Daniel, Paulo se forçou a relembrar as manchetes do telejornal do início da tarde.
- Pensando bem, uma coisa me chamou atenção, sim.
- O quê?
- Uma notícia sobre a diminuição da taxa de fecundidade no mundo. Imagina que tem países em que a população está diminuindo. Você imagina que a China e a Índia pararam subitamente de crescer. Parece que não nasceu ninguém nesses países nos últimos dias.
- Sim, é verdade. Isso não lhe diz nada?
- Isso é bom para o planeta?
- Também, mas não é só isso.
- O que mais poderia ser?
- O processo de extinção da humanidade já começou.
- Puta que pariu! Não é que é mesmo? Sabe, quando você falou em extinção da humanidade, eu imaginei um ataque nuclear, ou coisa assim. Algo que levasse à destruição em massa.
- Isso não seria muito lógico. Destruiria o planeta também. Em breve, nossos bravos cientistas e líderes mundiais perceberão o que está acontecendo.
Daniel volta a encher os copos e propõe um brinde.
 - Ao futuro da humanidade.
- Ou a ausência dele. – Respondeu Paulo, não muito otimista.

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