Alheia aos
acontecimentos da noite anterior, Dona Aurora dá os últimos retoques no vestido
de casamento de Letícia. Apesar de Daniel não ser o genro dos seus sonhos, ela
deseja que sua filha esteja linda no dia da cerimônia. Essa alegria ninguém
iria lhe tirar, pensava, quando o interfone tocou. Ela não esperava ninguém,
mas levantou-se resmungando para atender.
- Boa noite. –
Disse Prudêncio, quando ela abriu a porta.
- Boa noite,
Prudêncio. Como vai você?
- Eu estou ótimo.
Espero não estar incomodando a Senhora, há essa hora.
-Imagina! Entre,
você é de casa. Depois, hoje em dia, a gente deve dar graças a Deus quando,
quem bate à porta, não é cobrador, assaltante, ou membro de uma dessas igrejas
que surgem todo dia.
- É verdade. Bem...
Eu vim trazer o presente de casamento dos noivinhos. Eles já chegaram?
- Ainda não, mas
espero que não demorem. Letícia tem que fazer a última prova do vestido. Aceita
um cafezinho?
- Sem dúvida. O seu
café é ótimo!
- Sempre gentil, né
Prudêncio? Letícia bem que poderia ter escolhido alguém como você. Evitaria
muitos aborrecimentos.
Prudêncio já tinha
ouvido aquele tipo de conversa e não mordeu a isca. Para ele, a mãe de Letícia
fazia parte de um grupo de pessoas com dificuldades para estabelecer conexões
empáticas com qualquer um que não se enquadrasse em seus padrões de
comportamento. Nesse aspecto, Daniel deveria ser um ponto fora da linha difícil
de engolir.
- Daniel é bom
rapaz. – Ele disse, contemporizador.
- Pode até ser, mas
ele é muito esquisito.
A expressão dela
era a própria esquisitice, mas Prudêncio preferiu eximir-se de qualquer
comentário nesse aspecto.
- Ele apenas parece
esquisito. Devia conhecê-lo melhor.
- Você parece
Letícia falando. – Retrucou dona Aurora, fazendo um muxoxo. – Ela também não me
dá ouvidos.
- Não se trata
disso, por favor não me entenda mal. Conhecer Daniel exige um pouco de
paciência, mas vale a pena. Ele é uma pessoa muito interessante.
-
Pois, para mim, continua sendo um maluco. Bem... Isso é problema de Letícia.
Ela que se preocupe, já que não me ouve.
Aquele
tipo de conversa já era familiar à Prudêncio, para que ele se deixasse
envolver. Considerava dona Aurora uma boa pessoa, mas ela parecia insistir em
encarnar o protótipo da sogra ressentida. Aquela que nunca ficaria feliz com as
escolhas da filha, mas tudo poderia ser apenas indício do medo que sentia da
solidão.
-
Daniel será o marido será em breve o marido de sua única filha. A senhora não
tem mais ninguém, não é verdade?
-
Onde você tá querendo chegar?
-
Em lugar nenhum, na verdade. É a senhora que deve pensar como pretende se
relacionar com o seu genro e sua filha, não é?
A
pergunta pairou no ar como uma nuvenzinha incômoda para dona Aurora. Não foi difícil
Prudêncio perceber que tinha acertado o alvo.
À
noite, por volta das vinte e três horas, Daniel e Letícia se encontram na praia
onde costumavam namorar e contemplar as estrelas. Sentados sobre o capô do
carro, eles olham para o horizonte, cada qual imerso em seus próprios
pensamentos.
-
Você não precisava ter vindo. – Disse Daniel de repente, rompendo o silêncio
incômodo que já se insinuava entre eles.
-
Seria pior. Eu sentiria como você tivesse morrido em um acidente. Assim, pelo
menos, posso me despedir de você.
Ele
nada disse. Por mais que se esforçasse, não conseguia encontrar as palavras
adequadas para exprimir o estava sentindo. Depois de algum tempo indeciso, ele
soltou um longo suspiro. Depois tirou um envelope do bolso e estendeu para ela.
-
Tome. Isso é para você.
-
O que é?
-
Nada demais. É só uma procuração autorizando você a movimentar minha conta
bancária, negociar o carro e o apartamento, entre outras coisas.
-
Não precisava ter feito isso.
-
Para onde vou, não precisarei dessas coisas. Além do mais, você e nosso filho
seriam meus herdeiros, de qualquer modo.
Mal
ele pronunciou essas palavras, um objeto luminoso cruzou o céu escuro e se
aproximou rapidamente deles.
-
Estão vindo.
-
Sim.
-
... É melhor nos despedirmos agora.
Eles
se abraçam com carinho e choram a dor da separação iminente. Letícia se
desprende e o olha como se quisesse fixar a imagem dele para sempre em sua
mente.
-
Ei... Não esqueça de escrever!
-
Como iria esquecer?
Eles
sorriem um para outro e se beijam ardor, enquanto o disco voador paira
silencioso um pouco acima deles.
-
É melhor você ir agora. – Disse Letícia, lutando com a aflição que ameaçava
tomar conta dela.
Daniel
a beija pela última vez e afasta-se dela. De repente é banhado por um facho de
luz e desaparece. Letícia observa o disco voador afastar-se rapidamente, até se
tornar um ponto luminoso e depois desaparecer na escuridão.
Letícia
ficou por um momento fitando o céu escuro e se deu conta de que não havia
estrelas nessa noite. Elas se ocultavam atrás das pesadas nuvens escuras que
ameaçavam desabar a qualquer momento.
-
Tudo acabado. – Ela murmura para si mesma, engolindo as lágrimas. Sabia que
aquela dor demoraria muito a passar.
-
Agora somos apenas nós dois. – Falou para o bebê, que cresce no seu ventre,
enquanto abre a porta do carro.
De
costas para o mar, ela não viu de imediato o raio de luz que ressurgia atrás de
si, até que seu próprio reflexo apareceu na janela do carro.
-
Mas o quê? ...
Ela
se virou, sentindo o coração apertar de ansiedade e esperança.
Aquela
tensa expectativa não durou muito. Daniel ressurgiu na praia e caminhou
apressado em direção dela. Ele nada diz. Apenas a toma nos braços.
-
O que houve? – Ela perguntou, mal acreditando que ele estava ali.
-
Não posso. Não consegui.
Letícia
demorou uma fração de segundo para entender o significado do que ele dizia para
ela.
-
Não brinque comigo. – Disse, subitamente zangada.
-
- Não estou brincando. Dentro da espaçonave percebi que o meu mundo é você... E
nosso filho. Como poderia deixá-los? Todo o resto não faria nenhum sentido sem
vocês.
Letícia
abraça Daniel com todas as forças, enquanto o disco voador se elevou lentamente
atrás dele, até que ganhou velocidade e sumiu rapidamente no céu escuro. Ainda
abraçados, eles se dirigiram para o carro.
-
Acabou.
-
De verdade?
-
Sim. A minha busca terminou. Agora tenho uma nova missão.
-
Nova missão?
-
Sim. Cuidar de você e nosso bebê, que ainda vai nascer. Para isso, devo ajudar
os homens a compreender e proteger o seu mundo.
Sem
conseguir conter as lágrimas, Letícia apenas sorriu. Instintivamente ela sabia
que ele finalmente havia completado sua jornada pessoal em busca de si mesmo.
Não precisava de mais explicações, para saber que finalmente Daniel estava
pronto para viver sua história com ela.
Uma
chuva fina começou a cair. Era quase um sereno, mas longe de incomodar, parecia
mais o prenúncio de uma nova vida para Daniel. Finalmente sabia da sua história
e tinha uma nova compreensão de si mesmo e do mundo em que vivia. Não seria
mais um estranho e não seria tampouco guiado por inquietações que não
compreendia. Tinha, é certo, uma longa jornada para convencer os seres humanos
da Terra o quão maravilhoso era o seu mundo, e o quanto tudo estava interligado
numa longa teia de relações, onde o homem era apenas um dos elos numa cadeia de
eventos que poderia elevar a humanidade ao patamar dos antigos deuses ou
derrubá-la rumo à destruição. Daniel tinha um novo propósito de existência, para
o qual dedicaria toda a energia e obstinação de que era capaz, pois era no
futuro da Terra que estava a sobrevivência de seus descendentes.
-
Daniel?
-
Hã?
-
Adoro estar aqui abraçada com você, mas essa chuvinha fina já está escorrendo
por dentro do meu vestido.
-
Puxa! Acho que me distraí. Desculpe! – Ele respondeu, enquanto abria a porta do
carro.
- Você estava com aquele olhar vidrado de
novo. Se arrependeu de ter desistido de ir para as estrelas?
-
Não. Claro que não. Estava apenas pensando no que virá a partir de agora.
Já
dentro do carro, ela o abraçou e o beijou com paixão, de um jeito que ele nunca
tinha sentido antes.
-
Gostou da amostra? – Ela disse, e sorriu maliciosamente. – Vamos para casa?
-
Não me ocorre coisa melhor para pensar.
Ele
ligou o motor do carro e, feliz, percebeu o significado que ela tinha dado à palavra
“casa”, antes de arrancar.
Não
demorou muito para Paulo Botelho saber que Daniel desistiu da oportunidade que
teve para voltar às suas origens. Algum tempo depois, ele volta à cidade e encontra
o amigo novamente, no mesmo bar onde conversaram tantas vezes.
-
Essa é a história mais incrível que já presenciei. – Disse Paulo, enquanto
abanava a cabeça. – E nem posso escrever sobre ela. Bem... Como você se sente,
depois de ter desistido do grande sonho?
-
Bem. Tenho outros sonhos a buscar agora.
-
Imagino. Salvar essa humanidade mesquinha e miserável é uma missão e tanto,
mesmo para você.
Daniel
riu, enquanto enchia os copos de cerveja.
-
Não estarei sozinho. Em breve uma multidão perceberá a enrascada e se juntará a
mim. E assim, outros virão.
-
Como você pode ter tanta certeza? – Perguntou Paulo, cético. – O homem é a
espécie mais egocêntrica que poderia existir. Acho que a consciência ambiental
só virá o dia que a humanidade tiver sua existência realmente ameaçada.
A
expressão de Daniel era inescrutável, mas Paulo percebia um brilho discreto em
seus olhos. Seu amigo tinha o mesmo olhar que ele tinha visto em jogadores de pôquer,
quando lhes ocorria a possibilidade de uma boa jogada.
- Viu o noticiário hoje? – Perguntou Daniel,
em tom neutro.
Paulo
sentiu que era sua vez de pagar para ver, mas decidiu prolongar o jogo. Estava
curioso para saber o que Daniel pretendia com aquela conversa, mas não lhe negaria
o pequeno prazer em prolongar o suspense.
-
Sim. E daí? – Paulo respondeu.
-
Nenhuma notícia lhe chamou a atenção?
-
Não, nada.
-
Não mesmo?
Diante
da insistência de Daniel, Paulo se forçou a relembrar as manchetes do
telejornal do início da tarde.
-
Pensando bem, uma coisa me chamou atenção, sim.
-
O quê?
-
Uma notícia sobre a diminuição da taxa de fecundidade no mundo. Imagina que tem
países em que a população está diminuindo. Você imagina que a China e a Índia
pararam subitamente de crescer. Parece que não nasceu ninguém nesses países nos
últimos dias.
-
Sim, é verdade. Isso não lhe diz nada?
-
Isso é bom para o planeta?
-
Também, mas não é só isso.
-
O que mais poderia ser?
-
O processo de extinção da humanidade já começou.
-
Puta que pariu! Não é que é mesmo? Sabe, quando você falou em extinção da
humanidade, eu imaginei um ataque nuclear, ou coisa assim. Algo que levasse à
destruição em massa.
-
Isso não seria muito lógico. Destruiria o planeta também. Em breve, nossos
bravos cientistas e líderes mundiais perceberão o que está acontecendo.
Daniel
volta a encher os copos e propõe um brinde.
- Ao futuro da humanidade.
-
Ou a ausência dele. – Respondeu Paulo, não muito otimista.
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