Gosto do cheiro da noite. Há nuances sutis, trazidas pelo sereno e pela leve brisa noturna, que eu não poderia perceber durante o dia. Meu sentido de olfato costuma ficar saturado com os odores que os homens produzem em suas atividades insanas. Felizmente eu tenho hábitos noturnos e saio somente quando as estrelas apareceram no firmamento. Nesta noite, ao farejar a brisa noturna, percebi que havia uma assinatura diferente entre os cheiros que vinham até mim. Alguém se aproximava e meus outros sentidos se apuraram. O cheiro do homem impregnou minhas narinas.
Ele estava levemente bêbado e caminhava só, de forma hesitante, mas não por causa do álcool em sua corrente sanguínea. Parecia apenas aturdido por algum infortúnio. Apesar da bebida ingerida pelo caminhante solitário, gostei do cheiro dele! Quase lamentei o que estava preste a fazer, mas sei que é apenas resquícios da consciência de alguém que já não existe mais. Logo voltei a me concentrar e deixei minhas presas se projetarem. Era hora de fazer jus à minha natureza sanguinária, algo que ganhei em uma noite sem luar. Acreditem, eu já fui humana. Hoje, porém, faço dos humanos minhas presas favoritas. Há nisso uma espécie de justiça poética, se me permitem o escorregão melodramático. Tenho minhas razões para pensar assim. As lembranças que trago comigo, do tempo em que ainda era viva, não me deixam olhar os homens de forma indulgente. Após minha transformação, eu via em cada vítima o algoz que destruiu meu corpo e minha alma. Hoje, depois de tanto tempo, ainda sinto nisso uma espécie de redenção por aquela que outrora fui. É com esse sentimento que fito minha próxima presa, enquanto ela se aproxima.Sem nada perceber, o homem caminhou em minha direção. Será um ataque rápido e indolor, eu penso. Às vezes gosto de ser misericordiosa, mas nem sempre. Também há momentos em que a crueldade predomina em mim. Aí gosto de brincar com minha vítima, fazê-la exalar os odores do medo. Quando faço isso? Não sei bem, mas acho que tem a ver com os níveis de testosterona que percebo nos homens. Quando isso acontece fico quase louca. Tento prolongar o meu prazer e os caço por um longo tempo, até que se ajoelhem de pavor e implorem por suas vidas, como eu fiz um dia. Não, na verdade não fiz isso. Eu estava inconsciente, quando me deixaram para morrer naquele buraco. Acho que teria implorado, se tivesse tido a chance, mas até isso me negaram. Por que lembro disso agora? Realmente não sei. Talvez busque sempre justificar a mim mesma o que sou, toda vez que estou preste a matar, como agora.
O incauto se aproximou e já estava perto o suficiente para eu perceber suas feições. Tinha uma cara ingênua, quase bonachona. O cheiro de álcool indicava que havia sido uma noitada e tanto, apesar da primeira impressão que tive. É bom que tenha sido assim, pois não vejo melhor maneira de alguém se despedir deste mundo. O fato daquele pobre diabo nada saber do que estava por acontecer era irrelevante. Em um minuto deixará de existir. Eu ficarei com o seu sangue e as lembranças que carrega em sua memória. Tenho em mim as lembranças de todos os infelizes que cruzaram meu caminho. Tento esquecer, mas não consigo. Essa é a minha natureza e minha maldição.
Ele passou por mim sem perceber minha presença. Caminhava murmurando coisas desconexas, mas consegui entender algumas palavras. Entre elas um nome de mulher: Cecília. O dela vinha acompanhado de um suspiro triste. Então eu percebi que a noite não tinha sido realmente muito boa para ele, afinal de contas, mas isso não me importa.
Ergui-me no ar e passei sobre sua cabeça. Poderia ter atacado nessa posição, mas nada fiz. Estava faminta, mas por alguma razão que desconheço, eu me contive e pousei mais adiante. Então esperei por ele.
O homem finalmente me viu. Estupidamente, ele veio em minha direção. Isso sempre acontecia. Ainda sou atraente, apesar dos anos que carrego em minha existência mundana. Confiante, eu o esperei chegar mais perto. Sou uma predadora de emboscada e não gosto de correr atrás de minhas presas. Isso sempre representa um gasto desnecessário de tempo e energia.
— Olá. — Ele cumprimentou. — Está perdida?
— Acho que sim. — Eu respondi, enquanto o observava atentamente. — Saí do hotel para comprar cigarros e não consigo voltar.
Eu botei um cigarro na boca e ele se apressou em acender. Tinha um olhar bondoso, mas isso não iria livrá-lo. Bondade é algo do qual conheço apenas o conceito, mas nunca acreditei realmente nisso.
— Esta parte da cidade é muito perigosa para uma mulher desacompanhada. — Ele disse com uma voz surpreendentemente clara.
— Eu sei. — Respondi. — Já estava com medo, mas felizmente o senhor apareceu.
Pelo odor que exalava, eu percebi que o efeito do álcool havia baixado a níveis toleráveis para sua coordenação motora. Isso era bom. Meu organismo não reagia bem a substâncias estranhas no sangue de minhas vítimas, exceto quando proveniente de um bom vinho. Tenho uma predileção especial por Cabernet Sauvignon de determinadas safras. Aprecio um bom Merlot também, mas isso era raro encontrar onde habitualmente caço. No caso presente, o homem diante de mim havia se encharcado de whisky barato. Felizmente seu metabolismo já havia reduzido o teor de álcool no seu sangue.
Ele sorriu. Era um sorriso triste, mas não me importei. Há muito que não me importo com ninguém. Ele tem os dentes um pouco tortos, mas é bonito. Em outra época, talvez me interessasse por esse humano de uma forma... Hum... Não gastronômica, digamos assim.
— Eu me chamo Lucas. — Disse.
— Lilith. — Respondi à pergunta feita com o olhar.
Depois que nos apresentamos, continuamos a conversar como se fôssemos velhos amigos. Ele gostou do meu nome e o repetia, como se o estivesse saboreando na ponta da língua.
— Lilith... Não é um nome comum, é?
— Acho que não. — Respondi. — Sei apenas que era o nome da primeira mulher de Adão.
— Puxa! Eu nem sabia que Adão tinha sido casado com outra mulher antes de Eva.
— Minha mãe o escolheu porque é um nome forte. Pertenceu a uma mulher com espírito independente, que muitos acreditam ter sido um... Demônio.
A Dever ser uma boa história. — Ele disse, olhando-me nos olhos como se quisesse saber meus segredos. — Em que hotel você está? Perto daqui só tem o Luxor, eu acho.
— É esse mesmo! Estava tentando lembrar o nome, obrigada.
— Que ótimo! O hotel fica na direção para onde vou. Posso acompanhá-la até a porta, se quiser.
Eu devolvi o seu sorriso, enquanto tentava esboçar uma expressão agradecida. A parte do hotel era verdadeira. Eu realmente estava hospedada no Luxor, mas não gosto que a presa seja tão prestativa comigo. Isso sempre complica as coisas.
— Que bom! O senhor é muito gentil, obrigada.
Confiante, ele me deu o braço e seguimos pela rua escura. Eu tentava caminhar com desenvoltura, mas o piso irregular dificultava meu equilíbrio no salto alto.
— Receio que seu calçado não seja muito adequado para andar aqui. — Ele disse, depois que me apoiei nele, ao perder o equilíbrio pela terceira vez.
— Eu não esperava andar muito. — Respondi. Seria difícil explicar que eu pretendia voltar ao hotel por via aérea. Gostava de cavalgar as correntes de ar ascendentes, depois de saciar minha sede.
— Bem... Pode se apoiar em mim o quanto quiser. — Disse-me ele, com um sorriso de menino feliz. Ao que parecia, minha companhia lhe fazia bem. Contudo, isso não mudaria o seu destino. O lugar por onde andávamos era realmente deserto e não faltaria oportunidade para dar o bote e estraçalhar sua jugular. Eu tinha tempo e resolvi me divertir um pouco. Isso foi um erro. Alguém já havia me dito, há muito tempo, para nunca brincar com a comida.
Enquanto caminhávamos, meu galante cavalheiro começou a falar de si, de uma forma não muito apropriada, considerando que havíamos nos conhecido minutos antes. Havia algo de fraternal na forma como se conduzia. Ele não estava interessado em mim do modo como os homens costumam se interessar. Parecia um irmão mais velho conduzindo a irmã para casa depois do primeiro baile. Fiquei imaginando o que ele diria, se soubesse que tenho muitas vezes a sua idade. Essa pieguice toda já havia se tornado embaraçosa e poderia ter sido danosa para minha reputação, se eu tivesse uma.
— Hoje é uma noite ruim para mim. — Ele falou, depois de um tempo em que caminhamos em silêncio.
— É mesmo? O que aconteceu com você? — Eu perguntei, mal contendo o enfado dentro de mim, pois já imaginava o que viria. Os homens eram tão previsíveis quanto tolos.
— Nesta noite levei um fora. Ela me deu um pé na bunda, sem nem dizer porquê. Puxa! Eu não sabia que isso doía tanto.
Com tantos homens solitários perdidos na noite, eu tinha que encontrar um pateta que foi passado para trás. Definitivamente, isso quase me fazia perder o apetite, mas se ele tivesse começado a chorar, eu o teria matado assim mesmo!
— Você nunca levou um pé na bunda antes?
— Não que eu lembre.
— Antes tarde do que nunca. — Eu disse, já aborrecida. — Você pode não perceber agora, mas essa experiência vai lhe fazer bem.
— Acha isso bom?
— Sim. Pense nas possibilidades que se abrem e nas mulheres que você ainda vai conhecer.
— É uma forma de ver as coisas. — Ele respondeu, dando de ombros. — Mas eu ainda preferia que não tivesse acontecido.
— Afinal, o que ela tem de tão especial?
— Tudo. — Ele falou com um suspiro.
Eu deveria ter ficado calada e, talvez, a conversa tivesse acabado ali. Deveria, mas cometi o segundo erro da noite.
— Pode ser mais específico?
— Tudo nela me encanta! Seu sorriso meigo, seu olhar carinhoso para mim, sua boca linda. Ela é simplesmente perfeita! Eu acho que sonhei com ela a vida toda, mas infelizmente a perdi.
— Ela deve ser um fenômeno. — Retruquei com um mal disfarçado desdém. Sou mulher e, ainda que não estivesse exatamente viva, sei que a perfeição idealizada por ele simplesmente não existe.
Eu não tinha lembranças afetivas do tempo que era mortal. Não creio que tenha sido amada desse modo algum dia. O primeiro homem que me tomou, o fez à força e eu o matei alguns dias depois disso. Dali por diante, passei a tomar a iniciativa. Quase invejei a mulher amada por esse pateta, mas fiquei enjoada. Apesar de faminta, cogitei livrar-me dele, quando fomos abordados pelos assaltantes. De repente a noite ficou muito animada.
— Parece que você tem razão. Aqui é um lugar perigoso. — Sussurrei.
— Fique atrás de mim. — Respondeu meu galante cavalheiro.
Eu não me movi, é claro. Eram apenas três sujeitos e nem me fariam suar, embora fossem mal-encarados e estivessem armados de facas. O trio era formado por um gordo de estatura mediana, um nanico magricela com um jeito efeminado e um homem alto e corpulento, que tinha uma expressão cruel estampada na face. O tipo de expressão que eu conhecia bem. Indicava que o sujeito estava cheio de más intenções, meu preferido no cardápio.
A noite tinha tudo para que continuasse aborrecida, mas eis que de repente eu estava diante de Moe, Larry e Curly. Os três patetas nos cercaram empunhando suas facas. Pelo menos não tinham armas de fogo. Isso teria complicado as coisas e eu não queria que meu vestido fosse estragado por buracos de bala.
— Ora! O que temos aqui? Um casal de pombinhos numa noite escura. — Disse o gordo, que parecia o líder.
— Deixem a gente em paz! — Gritou meu destemido cavalheiro, colocando-se entre mim e os três patetas.
Quase senti pena dele, quando o homem corpulento se adiantou e o acertou com um soco direto no queixo. Foi apenas um golpe, mas ele caiu desacordado. Isso foi o melhor que poderia ter lhe acontecido. Assim não viu sua dama ocasional virar um monstro de dentes e garras afiadas. Há momentos em que adoro ser o que sou. Esse era um deles, mas ainda fiquei quieta e fingi estar com medo. Sempre Gostei de um anticlímax.
— Eu quero a mulher. — Disse o homem corpulento, que tinha cara de Larry e estava cheio de testosterona. Eu já falei que adoro isso? Outra coisa que gosto de fazer é dar nomes aos sujeitos que vou matar. Sei que esse é um péssimo hábito, pois torna a coisa toda muito pessoal, mas não consigo evitar. Falando nisso, ainda não tinha pensado num nome para o meu Dom Quixote adormecido. Acho que pode ser esse mesmo. Combina com ele
— Eu também a quero. — Falou o magricela, em determinado momento. Em minha mente eu o nomeei como Curly, embora não fosse nada parecido com um dos três patetas. Parecia mais o Stan Laurel, mas esse fazia parte de uma dupla e não um trio.
— Para quê? Você nem gosta de mulher. — Retrucou o corpulento Larry com sarcasmo.
— Só quero o vestido dela.
Decidi matar o magricela primeiro. Ele não iria pôr as mãos sujas no meu Versace.
— Primeiro os negócios. — Retrucou o Gordo Moe com impaciência. — Depois vocês podem se divertir.
Dito isso, ele revistou meu infortunado e desacordado acompanhante, até encontrar sua carteira.
— Não tem muito aqui. — Diz Moe, depois que contou o dinheiro. — Peguem a bolsa dela!
O magricela se adiantou e tentou puxar minha bolsa. Não era uma Prada, mas eu gostava dela e a puxei para mim com uma violência exagerada. Curly veio junto com a bolsa.
— O que é isso? — Exclama ele, surpreso com o safanão que levou. — Sua vaca!
Quanta gentileza! Foi a última coisa que disse, antes que eu arrancasse seu coração e o exibisse para os outros, pulsando em minha mão. Curly ainda conseguiu vê-lo, antes de entrar em choque e cair fulminado.
— Mas que merda é essa? Pergunta Moe, com os olhos arregalados.
Moe e Larry avançaram para mim ao mesmo tempo, ambos exibindo suas facas. Quanta Valentia! Alcancei Moe primeiro. Foi fácil me esquivar de sua estocada. Para mim, os humanos se movem como se estivessem em câmara lenta. Eu adoro isso! Dá tempo de decidir o jeito mais eficiente de matar, ou simplesmente brincar com a presa. Não foi difícil levantar o gordo sobre minha cabeça. Ele finalmente caiu em si e percebeu sua situação precária. Se debateu e guinchou feito um porco, até que eu esmigalhei seu crânio de encontro a um poste. O corpulento Larry demonstrou ser um sujeito esperto, afinal. Ao ver o que eu fiz com Moe, ele recuou e tentou se virar para sair correndo. Infelizmente para ele, também já era tarde demais.
— Então você me quer? — Perguntei, enquanto avançava. — Você me quer?
— Que espécie de monstro você é?
— Um monstro muito pior que você. — Respondi.
Apavorado, ele se virou finalmente e tentou correr. Este costuma ser o momento em que a testosterona acabava. Então, o grande macho deixou suas pretensões dominantes de lado e passou a exalar o medo por todos os poros. Isso realmente era uma delícia.
— Deixe-me em paz! — Ele ainda gritou, quando alcancei seu pescoço e o forcei a se virar.
— Olhe para mim. — Eu digo com a minha linda voz rouca e gutural.
— Meu Deus! — Ele gritou apavorado, diante do meu aspecto, hum... Vampiresco!
Isso sempre acontecia quando me transformava e deixava minha aparência humana. Imagino que tudo podia ser apavorante para minhas vítimas, mas o que eu podia fazer? Ser bonita e glamurosa o tempo todo cansa.
— Não! Por favor... — Ele guinchou, já quase sem voz.
Eu aproximei sua garganta de mim e vi sua jugular pulsando. Isso era o bastante e já não me contive mais. O jantar estava servido, finalmente!
Eu afundei meus dentes em seu pescoço e senti o sangue jorrar em minha boca. Ele se debateu, mas estava bem preso em minhas garras e não havia como escapar. Então sorvi até a última gota de sua essência vital. Junto com ela veio sua alma e suas memórias. Só então eu percebi que o sujeito tinha uma extensa folha corrida de abusos, agressões e assassinatos. Sem muito esforço, cheguei à conclusão de que prestei um grande favor ao mundo, ao acabar com ele. Não que isso me importasse muito, mas as vezes gosto de pensar que sou uma espécie de justiceira, ao preferir a ralé da espécie humana como principal opção do cardápio. Contudo, na maioria das vezes não tenho tempo para ser tão seletiva e altruísta. Quando a fome vem noite adentro, o instinto fala mais alto e eu caço. Simples assim.
Logo que tudo acabou e eu olhei para o cenário. Meu destemido defensor ainda permanecia desacordado. Perto dele jazia o efeminado Curly, com uma expressão de incredulidade abobalhada estampada na face. Moe ficou próximo do poste, onde esmigalhei seu crânio. Somente Larry esboçou uma tentativa de fuga, por isso ficou distante dos seus companheiros. Resultado da patacoada: três mortos, um desacordado e eu ensanguentada. O sangue não era meu, claro.
O Versace ficou arruinado no confronto com o corpulento Larry. Ele se debatia demais e rasgou o meu lindo vestido. Isso, definitivamente, é o tipo de coisa que costuma deixar qualquer garota de mau humor. Como se não bastasse, precisei limpar o local e me livrar das evidências, mas já sabia que minha atual identidade mortal ficaria arruinada. Isso significou também que o Luxor já não seria mais um local seguro para me abrigar durante o dia. Relutantemente, teria que dizer adeus ao closet imenso que tinha na minha suíte, tão protegido da luz do dia e praticamente à prova de som.
Infelizmente eu precisei começar a limpeza pelo meu Dom Quixote. Não poderia deixá-lo vivo, pois o risco era alto demais. Durante séculos, nenhum mortal soube de minha existência. Isso estava por trás do meu relativo sucesso em sobreviver e gostaria que continuasse assim.
Eu me aproximei de Lucas e minha sombra se projetou sobre seu rosto de forma sinistra, como num filme de Murnau. Nosferatu é um dos meus favoritos e gostava de imitar o conde Orlok, quando me transformava no monstro. Contudo, eu hesitei no último instante ao ouvir um murmúrio.
— Lilith? Você está bem? — Ele perguntou, ainda de olhos fechados.
Eu me afastei tentando evitar que ele me visse como vampira. Esse cuidado não tinha relação com minha necessidade de manter minha natureza oculta. Era o receio de ver a verdade refletida em seus olhos. Por que ele se importava comigo? Isso tornava tudo complicado para mim. Ainda confusa com minha própria reação, eu recolhi minhas presas enquanto pensava numa outra forma de preservar o anonimato de minha existência, sem precisar trucidá-lo. Sua respiração compassada indicava que voltou a mergulhar na inconsciência. Deve ter sido uma pancada e tanto. Sorte dele.
Eu ainda era um monstro, mas parte de mim não queria fazer aquilo, de qualquer modo. Depois de tanto tempo semeando a morte, eu acho que estava amolecendo, sei lá. Coisa da idade, suponho. O fato é que eu não tinha nem mesmo o pretexto da necessidade de alimentar-me, e não gosto de matar sem justificativa. Ao drenar a vida do corpulento Larry, eu fiquei saciada por muitas noites e não precisarei matar nesse tempo. Era estranho pensar assim. Conflitos de consciência nunca existiram para mim. Desde que minha própria vida havia sido drenada, eu aceitei outro tipo de existência, sem nenhuma hesitação. Afinal, não queria sair do mundo dos vivos sem acertar algumas contas, que estavam pendentes entre mim e o homem que se tornou o meu opressor. Ele foi o responsável por minha morte e, também, pela transformação no que sou hoje. Mas tudo se foi nada mais há lamentar. Lembrar disso naquele instante não me ajudava e fiz um esforço para manter o foco. Precisava pensar nos detalhes daquela situação, para não cometer mais erros.
Felizmente eu havia me registrado no hotel com outro nome. Uma identidade civil, digamos assim. No entanto, eu me apresentei a Lucas com meu verdadeiro nome. Era o nome de uma mulher que morrera há mais de 200 anos. Talvez esse tenha sido o maior erro que eu havia cometido nesta noite. Nem mesmo sei por que fiz isso, mas estava feito. De qualquer modo, esse detalhe ocultou minha existência e salvou a sua vida. Mesmo que ele me procurasse no hotel, não me acharia. Aos olhos dele eu seria mais uma vítima da violência urbana.
Faltava apenas armar a cena para representar uma briga entre os Três Patetas. Alguns detalhes eram difíceis de disfarçar aos olhos de algum policial, ou um legista mais criterioso. Felizmente esse tipo de servidor público não é muito comum, tão embrutecidos eles estão pela violência no cotidiano de suas vidas. É mais fácil encontrar policiais numa padaria devorando rosquinhas, do que fazendo diligências em locais de risco. Não há nada de novo nisso, acreditem em mim. Eu conheci policiais de muitas épocas e lugares.
Com uma última olhada na cena que armei, eu me despedi mentalmente de Lucas e imaginei se ele um dia se daria conta do quão perto da morte esteve. Se fosse esperto o suficiente, não iria me procurar, nem saber do meu destino. Se tivesse sorte, ele jamais me veria de novo.
Infelizmente, eu não tardaria em descobrir que ele não era tão esperto e nem tinha tanta sorte. Estava escrito que nos encontraríamos de novo, mas eu não apostaria um tostão na sua sobrevivência.
Depois desses acontecimentos, o Luxor já não servia para me abrigar da luz do dia. Certamente seria o primeiro lugar que Lucas pensaria em me procurar. Provavelmente perguntaria por Lilith, mas não havia nenhuma hóspede com esse nome no hotel. Isso me daria alguma vantagem. Pelo menos o tempo suficiente para sumir em busca de outro lugar, onde pudesse me abrigar do dia. A ideia de desaparecer sem deixar rastros me ocorria ocasionalmente. Era um dos fatores de sobrevivência que eu mais prezava e me proporcionava a oportunidade de refletir sobre minha existência através do tempo.
As lembranças que carrego fazem de mim uma criatura singular, eu credito. Algumas vezes ainda me sinto humana e minha condição feminina é permeada por coisas e sensações próprias do universo feminino. Assim, meu olhar sobre o que me rodeia ainda reflete a forma como uma mulher enxerga o mundo. É bem verdade que trago na bagagem de minha existência algo mais que a mulher comum pode trazer. Eu vi o mundo se transformar ao longo de mais de dois séculos. Algumas coisas mudaram muito. Outras nem tanto, como a solidão existencial que me acompanha. Sei que existem outros iguais a mim, mas nunca tive vontade de ir a procura deles. Talvez isso se deva pelas revelações que me foram trazidas logo após minha transformação. Pode ser também minha origem humana ainda presente em mim. Isso explicaria em parte as contradições que sentia em relação ao homem que conheci. Por mais que desejasse ceder à minha natureza sanguinária, não consegui vê-lo como uma caça. Bom, meus pensamentos a respeito disso eram confusos e inconclusivos. Essas inquietações eram boas razões para eu desejar respirar outros ares, pelo menos por algum tempo. De repente Achei que Amsterdã seria um bom lugar para se rever, naquela época do ano.
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