Encontrei Estela acocorada num canto da sala de depoimentos. Parecia uma criança apavorada, bem distante da imagem da mulher sedutora e petulante que eu conhecia. Sentei-me ao seu lado e esperei que ela se recuperasse um pouco. Pelo menos o suficiente para termos uma conversa inteligível.
— Você não acha que já é hora de me contar o que está acontecendo?
— Sim. — Ela disse. Em seguida fez um gesto de desalento. — É tanta coisa, que não sei nem por onde começar.
— Comece me falando de... Belial. Quem é ele? — Perguntei, quase tropeçando no nome daquela cria do inferno, tão acostumado estava em me referir a ele como Voz Cavernosa.
Ao mencionar seu algoz, percebi que Estela estremecia. Era justo concluir que Belial era a chave para eu compreender o que ocorria ali.
— Belial é o mais antigo dos espíritos que habitam este nível. Pelo que sei, ele vagou sozinho pelo limbo durante séculos. Acho que isso o enlouqueceu.
— Por que todos o temem? Quero dizer, ele é espectro igual aos outros, não é?
— Não. Quando encontrou a Tumba e desceu ao Mundo Inferior, ele deixou de ser um de nós, acho. Ficou tanto tempo lá, que muitos pensaram que nunca mais o veriam. Mas um dia ele voltou. Estava diferente, me disseram os espectros mais antigos.
— Diferente como?
— Seu semblante, que antes era o de uma alma atormentada, tornou-se sinistro e cruel. Ele também estava mais forte e podia fazer coisas que os outros não conseguiam. Então tornou-se o líder. Um dia disse que todas as almas tinham uma jornada a cumprir, após serem julgadas por seus atos em vida. Isso mudou tudo para nós. Agora existimos apavorados com a possibilidade de sermos condenados ao Mundo Inferior, pois sabemos que Belial fará tudo para que isso aconteça.
— Mas isso já não acontecia antes de Belial? As almas não têm que resolver assuntos pendentes, antes de seguir em frente?
— Não é a mesma coisa! — Protestou ela, alterando a voz. — Antes podíamos nos redimir, agora não é possível. Quem errou em vida já está condenado, entendeu? Belial corrompeu os processos para que dificilmente haja redenção. Você faz parte dessa farsa, sabia? Por isso está aqui na tumba. Pesávamos que você poderia significar o retorno à lisura do processo, mas isso não aconteceu.
Creio ser desnecessário dizer que fiquei chocado com aquela última afirmação. Infelizmente, eu ainda teria muitos motivos para entrar em choque.
— Como assim? Sou apenas um escritor obscuro e sem editora. Sou um perdedor que precisa trabalhar de vigia num cemitério para pagar as contas. Que importância eu tenho nessa comédia macabra?
— Você não entende, não é? Está aqui para redigir a peça de acusação para cada um de nós. Você foi escolhido para supostamente garantir um julgamento justo, mas Belial tem muitas artimanhas para forçá-lo a fazer o que ele quer.
Estela não poderia ter sido mais clara. Ao escrever a biografia de cada um dos fantasmas enquanto ele era vivo, eu acabaria por produzir uma peça de acusação para instruir o processo no qual seu destino seria decidido. Minha afinidade com cada um dos biografados certamente iria influir no resultado final. Por isso Belial insistiu tanto em minha opinião pessoal.
— Eu poderia me recusar a tomar parte nisso.
— Isso seria impossível. Você já aceitou escrever sobre nossas vidas e voltar atrás não é uma opção neste mundo.
Eu não sabia quais podiam ser as consequências por desafiar as regras do jogo que me foi imposto. Também estaria mentindo se disse que não estava apavorado, à essa altura dos acontecimentos. Mas bem no fundo da alma, minha dignidade ferida clamava por dar o troco. Só não sabia ainda o que fazer.
— Você também não pode mentir, se é isso que está pensando. — Disse ela com voz desanimada.
Era isso! Inadvertidamente, Estela respondeu à questão que eu mesmo havia me formulado um momento antes.
— Não mentirei. A verdade tem muitas faces.
Ela assentiu com um movimento de cabeça. Estela compreendeu rápido o que eu pretendia e o brilho da esperança voltou à sua face. Seu sorriso também havia voltado e a transformação em sua aparência logo manifestou o seu ânimo renovado. Já não era a menininha apavorada diante de mim, mas a mulher autoconfiante e sedutora que eu conhecia. Aquela mudança me envaideceu, de certa forma. Influir no estado de ânimo de uma mulher não era algo que me acontecesse com frequência. Na maioria das vezes eu permanecia invisível para o sexo oposto. Para ser franco, a maior parte de minha vida foi de solidão, mas não me queixo. Tive alguns bons momentos. Entre eles, se sobressaíam aqueles passados recentemente com Berenice. Eu ansiava por vê-la novamente, e nem mesmo o olhar sedutor de minha bela guia naquele mundo, enfraquecia esse desejo. Antes, porém, eu tinha um dever a cumprir. A história de Estela esperava para ser retomada.
Ao me ver pronto para começar a escrever, Estela voltou a dar sinais de insegurança. Imaginei que isso fosse acontecer. Afinal ela não podia mentir e receava meu julgamento quando começasse a desnudar sua existência terrena para mim. Dei-lhe o melhor sorriso encorajador que eu podia dar e aguardei pacientemente. As palavras vieram hesitantes a princípio. Depois, aos poucos, elas se tornaram uma narrativa fluente e coesa, conforme transcrevo a seguir.
Os primeiros anos da vida de Estela estavam repletos de lembranças que lhe eram gratificantes. Era a filha única de um casal que parecia ter como propósito de existência fazê-la feliz. Não mediam esforços para atender seus caprichos infantis e a cobriam de mimos. Ela era uma linda menina, e eles não deixavam que se esquecesse disso. Seu guarda-roupa era renovado com frequência e sua linda aparência era sempre alvo de cliques fotográficos frequentes.
Essas fotos eram amadoras, segundo entendi, pela descrição que ela me fez. Em sua maioria, se tratavam de flagrantes, capturados enquanto ela fingia ser um modelo fotográfico, sua brincadeira favorita. Inadvertidamente, algumas dessas fotos retratavam uma sensualidade precoce, que não era completamente inocente. O que começou como uma vaidade estimulada pelos pais, tornou-se uma fonte de prazer para ela. Estela gostava de exibir-se para os adultos que frequentavam sua casa. Eles costumavam ser submetidos às sessões de exibição de seu mais recente álbum de fotografia, que eram promovidas pelos seus orgulhosos genitores.
Com o advento das redes sociais, a exposição de Estela aos voyeurs ocultos na internet adquiriu proporções de risco iminente, mas o acaso a manteve a salvo e ela seguiu feliz se exibindo, com a anuência dos pais, sempre orgulhosos do tesouro que tinham em casa.
Isso era apenas uma parte dos afagos que que ela recebia. A menina podia ver sua imagem refletida em inúmeros espelhos espalhados pela casa e, diante de cada um, ela permanecia estática por um bom tempo, entretida em admirar a própria imagem refletida. As vezes ficava tão concentrada nisso, que parecia entrar em transe, hipnotizada pelo brilho do seu próprio olhar. Ela era a encarnação de Narciso e adorava seu reflexo, quase tanto quanto gostava de exibir-se para o deleite de seus pais, parentes e estranhos que a seguiam nas redes sociais, como uma matilha de lobos seguindo o cordeiro.
Um dia o pai de Estela foi acometido de um mal súbito e faleceu. A menina, já quase uma adolescente, pouco tomou conhecimento dessa tragédia, tão entretida estava com sua própria existência em frente aos espelhos. Assim, sua mãe ficou totalmente só com as dores e os problemas financeiros, que se multiplicaram além de sua capacidade de compreender e lidar com a complexidade e os dissabores do mundo fora de casa.
Não tardou para que a falência viesse. Logo depois, para protelar a miséria quase absoluta, a casa foi vendida. Mãe e filha mudaram-se para um uma quitinete num bairro afastado. Nesse lugar, a mãe de Estela conheceu o dono do prédio onde morava. Percebendo o interesse dele, a mulher vislumbrou uma possível solução para os seus problemas. É claro que fato do sujeito ser um homem só, e ainda bem-apanhado, tornou essa possibilidade ainda mais atraente. Afinal, ela também ainda tinha seus encantos. Então, uma nova família se formou.
Para Estela, esse arranjo não significou uma mudança muito profunda em sua vida. Ela continuava entretida no seu pequeno mundo cor de rosa, onde tudo girava à sua volta. A mãe ainda a tratava como uma criança, enquanto que o padrasto logo adquiriu o hábito de mimá-la, como fazia seu pai. Dava-lhe presentes com frequência e satisfazia-lhe todos os seus desejos. Algumas vezes ela o beijava no rosto, agradecida.
Com o passar do tempo, a ligação entre Estela e o padrasto tornou-se cada vez mais forte. Não era raro eles passarem muito tempo juntos, assistindo filmes ou lendo quadrinhos. Algumas vezes Estela sentava—-e em seu colo, para mostrar-lhe algo que estava lendo, embora já fosse um pouco crescida para isso. Todavia, esse contato físico era tão corriqueiro naquela família, que parecia perfeitamente natural.
Certo dia, o padrasto a abraçou por trás e tocou-lhe rapidamente os pequenos seios. O toque foi tão rápido que Estela mal percebeu. Todavia, essas carícias furtivas se repetiram em outras ocasiões e ela se acostumou com aquilo. Sabia que logo depois receberia algum presente. Depois de algum tempo, aquele jogo passou a ser prazeroso também para ela. Tanto que passou a desejar que isso ocorresse com mais frequência e passou a provoca-lo longe dos olhos da mãe.
Apesar dessas carícias se tornarem cada vez mais atrevidas, a mãe de Estela nada percebia. Embora tenha se casado por interesse, ela aprendeu realmente a amar o homem que a tinha acolhido, junto com sua filha. Para ela, a vida era perfeita do jeito que estava e isso não a preparou para o que estava por vir.
Numa noite em que a programação de um canal de tevê anunciava a reprise de "O Exorcista", Estela e o padrasto ficaram sozinhos na sala. A mãe dela não partilhava do interesse deles por filmes de terror e foi dormir.
Mal eles ficaram sozinhos, Estela recostou-se no padrasto e acariciou seu rosto. O movimento lhe suspendeu a barra do vestido alguns centímetros, o suficiente para que a mão dele tocasse sua pele. Há muito tempo que eles esperavam aquela oportunidade e sabiam o que ia acontecer.
Os gemidos abafados não impediram a mãe de Estela de ouvir e saber o que eles faziam. Ela foi para a sala e deparou-se com uma cena que lhe causou a maior dor que podia sentir. Em alguns segundos compreendeu tudo. Lembrou-se do que ela e o primeiro marido fizeram para distorcer o caráter da filha. A vaidade que os movera cobrava o seu preço. Sabia o que Estela havia se tornado e que não haveria salvação para ela.
Como uma sonâmbula, a mulher recuou e foi para o banheiro. Fechou a porta atrás de si, antes de acender a luz. Em seguida pegou uma lâmina de barbear e cortou os pulsos. Antes de entrar em choque, ela viu o sangue escorrer no rejunto entre as placas de cerâmica do piso e formar quadrados perfeitamente simétricos. Esse gosto pela simetria e sua menção nesta narrativa se deve a Estela, é claro. Foi ela que encontrou a mãe caída no chão, já morta.
Embora trágica, a morte da mãe dela logo foi esquecida. Para evitar especulação de vizinhos bisbilhoteiros, o padrasto se apressou em providenciar uma nova moradia. A enteada assumiu o lugar da mãe e tudo voltou a normalidade. Pelo menos do ponto de vista deles, naturalmente. Mas como tudo na vida tem suas causas e consequências, aquele idílio estava fadado a ter um fim. O destino, caprichoso que é, preparou uma nova tragédia na vida de Estela.
À medida em que o tempo passou, a diferença de idade entre eles começou a pesar. Estela, ainda jovem e viçosa, percebeu que o homem que ela tinha era velho demais, e já não a atraía. Então começou a prestar mais atenção ao seu redor. E de tanto prestar atenção, logo percebeu as oportunidades que a rodeavam. Todavia, o padrasto também notou que ela estava diferente e passou a segui-la, quando Estela saía de casa sozinha, sob algum pretexto.
O desfecho aconteceu numa tarde qualquer, no mesmo dia em que eu me apresentava no escritório do cemitério para meu primeiro dia de trabalho. Estela foi surpreendida num motel com um jovem amante e levou três tiros certeiros. Eu a conheci, já defunta, na noite em que o coveiro Pé Redondo tentou violá-la.
Para mim é impossível falar daquele coveiro sinistro, sem lembrar de Berenice. Aquela noite em que o surpreendemos preste a dar vazão ao seu instinto bestial, foi a primeira vez que nos falamos e nos conhecemos de verdade.
De repente, Estela parou de falar e olhou para mim. Ela tinha essa habilidade desconcertante de perceber o que me ia na alma.
— Está com saudade dela, não é?
— Dela quem?
Estela riu de meu desconforto.
— A moça de piercing no nariz. Você a ama?
— Não sei. Acho que sim. Ainda estamos nos conhecendo.
— Ela se revelou a você, não?
— Como você sabe?
Estela não respondeu de imediato. Gostava de fazer pausas dramáticas e curtir o efeito de suas palavras no interlocutor.
— Isso não importa, não é? O importante é que ela revelou sua natureza e você continua humano. Agora vá! — Ela disse de modo imperativo. Parecia aborrecida.
— Mas ainda não acabamos.
— Meu relato acabou. Agora você precisa refletir para apresentar suas conclusões. Espero que consiga fazer um bom trabalho. — Ela terminou de falar, com a voz ligeiramente trêmula.
— Vou fazer, sim. — Eu disse para tranquilizá-la.
Mas a verdade que esse propósito não seria fácil de ser cumprido. A Estela que emergia do seu relato era um pequeno monstro egoísta. Em nenhum momento manifestou qualquer arrependimento pelo que fez. A imagem mental que havia formado a partir de sua narrativa era bem diferente do espírito gentil que falava comigo naquele momento. Talvez estivesse nessa contradição a chance de salvação para ela, se não estivesse fingindo.
Após despedir-me de Estela voltei para o hall. Confuso, não consegui achar a saída, mas Belial estava lá, apontando a porta com um sorriso irônico.
— Tome cuidado, escriba. Você não quer ficar preso aqui para sempre, quer?
Aquela perspectiva não era nem um pouco animadora. Tive que fazer um esforço para não sair correndo dali, com a gargalhada dele a ecoar em meus ouvidos, junto com um lembrete:
— Não esqueça de seu próprio juízo sobre o que ouviu.
Meu próprio juízo era o principal problema de Estela. Se dependesse de minha opinião naquele momento, ela estaria condenada. Belial certamente sabia disso.
Saí da tumba tão rápido quanto pude, mas a noite também não se mostrou muito agradável. Chovia muito e o vento lúgubre assobiava entre as cornijas dos túmulos. Ocasionalmente um relâmpago cruzava o céu escuro, seguido de um estalo e o ribombar que ecoava ao longe. Era uma noite propícia para aparições fantasmagóricas, mas eu já estava farto de almas penadas e só tinha um pensamento: Berenice!
Apressei o passo em direção ao escritório. Talvez ela estive lá, em razão da chuva. Mas a chuva aumentou antes que eu chegasse e tive que me abrigar, por minha vez, na entrada de uma tumba. Era o mausoléu que Berenice havia me mostrado outra noite. A rapidez com que eu estava me acostumando com as noites no cemitério era de fato surpreendente. Se não fosse eu a vivenciar essa situação, bem poderia achar que estava dentro história que eu estava escrevendo, uma maluquice sem precedentes. No entanto, estava eu ali, entretido em apreciar os detalhes da arquitetura do lugar que havia sido a derradeira morada de alguém. Surpreendentemente, eu estava quase à vontade naquela noite chuvosa e sombria. Digo quase à vontade, porque ouvi um barulho e fiquei assustado. O ruído vinha de dentro da tumba. Havia alguém lá e isso me perturbou mais do que eu esperava. O medo voltou a me assombrar e isso era algo que pensei ter superado, depois de tanta experiência inusitada. Creio que nunca vou me libertar totalmente do medo, mas isso não é de todo mal, não é? Dizem ser esse sentimento um mecanismo evolucionário das espécies mais bem-sucedidas, entre as quais se sobressaía a humana, é claro. Talvez isso explique o grande número de covardes no mundo.
Felizmente minha curiosidade foi maior que o medo e me fez entrar no mausoléu, ao notar que a pesada porta de carvalho estava apenas encostada. A luz do lampião que eu carregava mostrou uma escada para o subsolo. A Cripta fazia o Mausoléu parecer maior do que se poderia se supor do lado de fora. Essa constatação me fez pensar em voltar. Não cheguei a bater em retirada, mas confesso que a coragem nunca foi uma de minhas qualidades mais aguçadas. Naquele momento desejei que Berenice estivesse ali comigo. Ela tinha um caráter impávido e seria um bom contrapeso para minha falta de valentia. Sem ela, eu tinha que me virar sozinho com o que possuía de coragem. Não era muito, mas havia um mistério a ser esclarecido e eu não deixaria que o medo me fizesse recuar.
Cautelosamente coloquei o pé direito no primeiro degrau e levantei o lampião acima de minha cabeça para ver o fim da escada, mas me deparei com uma parede logo abaixo e a continuação da descida em uma curva de noventa graus. Eu teria que continuar descendo, se quisesse realmente descobrir a origem daquele gemido. Mal pensei nisso, o lamento ecoou na cripta. Aquele som congelou meu coração e meus joelhos tremeram descontroladamente por um bom tempo. Que alma penada teria um fardo tão grande, a ponto de gemer daquele jeito?
Respirei fundo e continuei a descer. Felizmente a escada era de alvenaria. Caso contrário, certamente rangeria com a tremedeira em meus joelhos. Logo que virei para continuar a descer, me deparei com uma cena inacreditável. Diante de mim, uma figura espectral pairava sobre um ataúde, a me olhar de modo ameaçador. A imagem que me veio à mente foi de um cão vigiando o osso.
— O que você quer aqui? Veio roubar meu ouro, como os outros? — Ele perguntou de modo belicoso.
Gostaria de ter recuado quando podia. Infelizmente já era tarde para isso.
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