Saturday, June 27, 2020

Reqiescat in Pace - Crônicas da Cidade dos Mortos - Capítulo VII


A noção do tempo na dimensão dos mortos é enganadora. Em muitas situações em que eu pensava ter se passado algumas horas, aqui se passaram dias ou meses. Talvez até mais, segundo eu podia notar por alguns indícios. O que parecia fazer o fluxo do tempo variar dependia do observador e do seu envolvimento nos acontecimentos. Einstein iria adorar essa minha digressão, mas faço essa observação pensando num eventual leitor dessa minha narrativa. Embora eu ainda não faça a mínima ideia de como meu relato chegará até os olhos de algum mortal, acredito nisso por algum motivo. Não deixa de ser irônico pensar assim, considerando que já me esforcei muito para negar a possibilidade de existência após a morte.

Depois de adulto, virei um cético.  Agora vejo quão tolo eu fui, por pensar somente em termos materialistas. Sim, eu sei que pareço estar me dispersando, mas não posso perder de vista o fluxo do tempo. Situá-lo corretamente me é indispensável para a correta compreensão dos fatos e a forma como os mesmos serão relatados por mim. Essa introdução é necessária porque neste plano há espíritos de várias épocas e lugares e parece haver um contínuo temporal correspondente a cada um. Para mim, por exemplo, parece que escrevi a história de Estela há vários dias. Essa sensação, no entanto, não está de acordo com a sequência dos acontecimentos e o tempo decorrido em cada um deles, segundo pude estimar pelo romper da aurora. No entanto, do ponto de vista de um mortal, depois que cumpri aquela tarefa e saí da Tumba, até o encontro com Berenice e a sequência de eventos que culminaram na interferência providencial de Voz Cavernosa e Estela, teriam se passado apenas duas horas.

Creio que vou conviver com essa noção confusa do tempo decorrido até que desapegue totalmente do mundo dos mortais. Mas desapegar da vida terrena não seria assim tão fácil, como logo descobri. Não que a vida que deixei para trás me fosse assim tão cara. Na verdade, quando penso nisso, a conclusão é nada ter para lamentar. Mesmo assim, a bagagem que trazia comigo era muito volumosa, feita de valores e concepções que ainda me eram caras. Tinha também sonhos que nunca se cumpririam e coisas que já não faziam sentido no Além, como a expectativa de viver um grande amor. Sim, eu sei que estou sendo um tolo romântico. Creio que sempre serei, não importa quantas vidas ainda possa ter, mas de todas as frustrações que carrego para o mundo dos mortos, essa é a que mais pesa em minha triste alma, por conta do amor que descobri. Foi justamente quando a vida me foi tão vilmente arrancada, que vi que o antigo sonho era possível.

Aqui desconsidero sua natureza sombria, posto que já havia me decidido tornar-me eu próprio um vampiro.  Agora isso já não é necessário, uma vez que somos iguais neste limbo. Tornamo-nos duas almas penadas e, se fosse para assombrar o mundo dos vivos, eu não desejaria outra companhia.

Precisava encontrar Berenice. Somente em sua presença eu saberia se as palavras de Estela eram verdadeiras. Essa era a minha esperança para não me deixar envolver pelo mundo sombrio da não existência.

Se realmente já existisse entre mim e Berenice um amor vindo de vidas anteriores, minhas dificuldades existenciais que deixei para trás poderiam fazer algum sentido. Eu estava só porque existíamos em planos diferentes e nunca nos encontraríamos, enquanto eu fosse vivo e ela um espírito errante.

Por hora, devo me concentrar no relato sobre o triste destino de Pé Redondo.

— Chegamos, finalmente! — Exultou Voz Cavernosa, digo, Belial, diante da Tumba.

Eu não havia percebido como aquela entrada era tão tétrica e assustadora. Também não tinha percebido o aspecto sombrio das gárgulas que a guarneciam. Na verdade, tinha a certeza de que não estavam ali antes, mas isso pouco me importava. Não me importava nem mesmo a expressão de desdém esculpida em suas faces de pedra, as quais pareciam zombar daqueles que passavam por ali, como se já soubessem o destino que aguardava as almas amaldiçoadas.

O coveiro também percebeu a expressão das gárgulas. Se ele entendeu do mesmo modo que eu, não saberia dizer, mas ante a visão sinistra daquelas estátuas, voltou a se debater e provocou um rugido ameaçador das sombras espectrais que o seguravam.

Quanto a mim, esperava que fosse ficar exultante com o destino do meu algoz, mas aquilo não me causava essa reação. Na verdade, até descobri que sentia um certo pesar pelo que aguardava aquela cria dos infernos. Estela, porém, o olhava com evidente satisfação. Embora eu ficasse chocado com sua expressão tão feliz, podia compreender a razão disso. Ela testemunhou a tentativa de violação do seu próprio corpo. Não me ocorre nada mais aterrador para um espírito que ainda se achava próximo de seus restos mortais, exceto a própria morte, naturalmente.

Quanto à Belial, não me restava nenhuma dúvida o que ele achava daquele momento. Era evidente o seu prazer em levar o coveiro em custódia, digamos assim. A intenção era atirar Pé Redondo às profundezas num rito sumário, segundo entendi. Aquele momento parecia especial para Voz Cavernosa. Ele se cobria de glória diante da entidade a qual parecia servir, seja lá o que fosse. Eu ainda não sabia exatamente do que se tratava. Mas desconfiava que a tradição judaico-cristã, com relação ao pecado e a culpa, tinha algum fundamento, afinal de contas.

Alheio às minhas especulações, Voz Cavernosa marchava à frente do cortejo como um maestro de fanfarra de velhos carnavais. A comparação soava um tanto esdrúxula, mas foi isso que me lembrou.

— Olhando assim, ele não parece tão perigoso. — Eu sussurrei para Estela. — É tão ridículo.

— Não se deixe enganar — Ela advertiu em resposta. — Ele é muito mais apavorante do que você pode imaginar. O Mal que está por trás dele é a própria escuridão que se insurgiu contra a luz na aurora dos tempos. É o Mal absoluto!

Aquelas palavras dramáticas eram próprias de Estela, mas pareciam conter ideias que pressupunham um conhecimento filosófico e teológico que estavam além do que ela seria capaz de expressar, considerando o que eu conhecia de sua vida passada. Não era a primeira vez que ela me surpreendia. Estela muitas vezes exibia um conhecimento de literatura inexplicável para alguém que teve uma vida anterior tão tola e superficial. De repente estava me parecendo que, mesmo entre almas penadas, nem tudo era o que parecia.

— Como você sabe disso? — Perguntei.

— Quem cochicha o rabo espicha. — Disse Belial de repente, depois de girar sua cabeça para trás num ângulo impossível.

— Quem se importa, o rabo entorta. — Retrucou Estela.

— Que rabo? Esse? — Belial disse, exibindo um apêndice que eu poderia jurar que não existia um momento antes. Era o rabo de um demônio, daqueles que se pode ver em alguma pintura sacra. Naquele momento me dei conta que Voz Cavernosa estava se exibindo para mim. Ele parecia querer me impressionar, embora eu não pudesse compreender o motivo. Estela, por sua vez, olhava aquele jogo de cena com aparente indiferença.

— Você é tão repetitivo. — Disse ela com enfado.

Ignorando seu comentário, Belial continuou abanando o rabo à nossa frente.

Depois que entramos na Tumba ele nos conduziu através da porta que dava acesso ao mundo inferior. Era a primeira vez que eu passava por ela, mas esperava que isso não se tornasse um hábito.

Após a porta, um grande elevador de aspecto antigo aparecia no fim de um corredor escuro. Seu ascensorista, de aspecto semelhante aos espectros que conduziam Pé Redondo sob custódia, aguardava em posição de sentido. Tudo ali era curiosamente familiar e parecia saído da imaginação de algum escritor das antigas revistas de terror, que eu lembrava de ter lido em minha adolescência.

Depois que o cortejo se instalou no elevador, o ascensorista acionou uma manivela e o engenho iniciou a descida de um modo surpreendentemente suave e silencioso. O trajeto deve ter durado somente alguns minutos, mas me pareceu uma eternidade ao lado de Belial. Ele se mostrava impaciente para chegar ao destino e provocava o coveiro o tempo todo.

— Então, velhinho? Está pronto para o fim da sua existência?

A resposta de Pé Redondo foi um grunhido que me chamou a atenção. A mudança em seu aspecto era impressionante. Depois que entramos na Tumba, o coveiro sofreu uma mutação que o deixou com um aspecto bestial. Minha imaginação, sempre correndo solta, imediatamente associou seu novo aspecto à natureza dos atos hediondos que ele havia praticado em vida.

De repente, um solavanco quase imperceptível indicou que a viagem tinha chegado ao fim. A porta se abriu para um grande salão quase vazio. No centro dele tinha uma fonte semelhante as encontradas nas praças das cidades antigas.

— Chegamos ao poço. — Disse Estela.

A julgar por sua atitude indiferente, se poderia supor que ela já tinha estado ali. Não seria um absurdo pensar que Estela já tivesse participado de algo assim em outras ocasiões. Esse pensamento logo foi afastado de minha mente, ocupada que estava em se deixar impressionar pelo aspecto sombrio daquele lugar.

Era difícil precisar a altura do salão, em razão da escuridão acima de nossas cabeças. Se eu não soubesse que havíamos descido, diria que o lugar não tinha teto. Aliás, praticamente não havia pontos de referência. Era tudo um imenso e tenebroso vazio, envolto num silêncio profundo. Eu teria voltado para o elevador, se ele não tivesse desaparecido quando olhei para trás. Então, procurei Estela com o olhar, na tentativa me tranquilizar. Antes não tivesse feito isso. Ela parecia em transe e olhava fixamente para o poço, como se estivesse possuída. Naquele momento não me dei conta do paradoxo que poderia significar uma alma penada ser possuída por outra, ou alguma entidade maligna, mas essa era a ideia que me ocorria. Depois vim a saber que não estava totalmente errado sobre isso.

Quando chegamos perto da fonte, Belial fez um sinal para que parássemos. Em seu semblante não havia nenhum sinal da gaiatice de antes. Ele estava emproado e solene como um mestre de cerimônias, quando retirou do casaco o que parecia ser um pergaminho. Havia chegado o grande momento.

Quase num sussurro, ele entoou o que parecia ser uma invocação. Do fundo do poço, ouviu-se um longo gemido. Era semelhante ao cântico de baleias se comunicando nas profundezas do oceano. Alguma coisa estava subindo pelo poço e não era bom. Se eu já não estivesse morto, provavelmente já teria caído duro de pavor. No entanto, o coveiro estava quieto. Não havia nada em sua expressão que indicasse apreensão ou medo pelo que estava por vir.

Quando o ruído da coisa rastejante indicou que ela estava muito próxima de surgir na boca do poço, Belial leu a pena que havia imputado a Pé Redondo. Pela primeira vez eu ouvi o verdadeiro nome daquela alma amaldiçoada.

— Ananias Teixeira, por seus atos de perversão e maldade extrema, você foi convocado à presença daquele que é a essência do mal em todos os planos existenciais, desde o início dos tempos.

— Você está aqui para juntar-se à sua origem, Ananias Teixeira. — Sussurrou Estela, sem nenhuma expressão na face, como se estivesse sonâmbula.

— Não! — Gritou o coveiro, de repente liberto do torpor que o dominava.

— Sim! — Gritaram Belial e Estela. — Volte ao mal que gerou sua alma negra, Ananias Teixeira. Volte!

Ao fim dessa exortação, a coisa elevou-se do poço diante de nós. A forma que percebi parecia uma água-viva turva e malcheirosa. Um odor pútrido se espalhou ao nosso redor e sua aura maligna nos envolveu e nos tocou de uma forma que me fez lembrar de todas as vezes em que cometi alguns deslizes de caráter, os quais julgava enterrados bem fundo na memória. Eram atos de vilania, de mesquinhez e arrogância por mim cometidos em algum momento de minha história. Eram pequenas faltas, na maioria das vezes induzidas por erros de julgamento ou situações de insegurança. Lembranças desses atos falhos eventualmente escapavam do esquecimento, para onde eu as havia banido. Libertas de seu cativeiro, elas vagavam em minha consciência e ainda tinham o poder de me constranger e envergonhar.

A coisa pareceu oscilar entre o coveiro e Estela. Devo dizer, embora envergonhado, que fiquei feliz em perceber que aquilo não se interessou por mim.

Enquanto isso, Belial ficou à frente de Estela.

— Apodere-se daquele que lhe cabe. — Disse com energia.

Ele parecia comandar a criatura das trevas e aquilo me surpreendeu. Cheguei a pensar que encontraríamos o ser a quem Belial servia, mas o que estava diante de nós não tinha alma. Era um amálgama de sordidez, perversão e maldade. Era o mal primordial, nas palavras de Estela.

Depois de um momento ainda cobiçando a alma da mulher, a coisa se voltou para o coveiro e o envolveu, enquanto ele se debatia e gritava em agonia. Para suportar a visão daquele horror, forcei-me a lembrar da natureza vil de Pé Redondo e o que ele tinha feito a mim, Estela e tantas outras vítimas, segundo soube. Mesmo assim, não conseguia pensar que ele realmente merecia uma punição tão terrível.

Através do ectoplasma translúcido da coisa, vi o coveiro se dissolver lentamente, enquanto ainda se debatia. Logo depois, ele foi digerido e desapareceu completamente.

A coisa emitiu um som que parecia ronronar de um gato. Estava satisfeita e se deixou deslizar para o poço.

— Acabou. — Disse Estela com voz neutra.

Ela parecia ter voltado ao normal, mas não esboçava nenhuma emoção pelo que tinha acontecido, enquanto que Belial tirou sua cartola e assumiu uma postura pretensamente consternada.

Requiescat in Pace. — Disse, antes de soltar sua gargalhada insana.

— Pare com isso! — Disse Estela com fúria, aparentemente lembrando a sentença que pesava sobre sua própria cabeça.

— Parece inacreditável. — Retrucou Belial com fala mansa. — Mas eu sempre fico emocionado nesses momentos, apesar de já tê-lo presenciado por tantas vezes. Meu coração quase sai do peito, de tanta alegria.

— Você não tem coração. — Retrucou Estela, mordaz. — Nem lembra mais o que é isso.

Belial olhou para ela com uma expressão indecifrável. Por um momento temi que ele chamasse a coisa de volta e executasse novamente o rito sumário, mas limitou-se a gargalhar novamente.

— Você é uma menina muito má. — Disse ele, enquanto agitava o dedo indicador à frente do nariz de Estela. — Mas sua batata já está assando. Você sabe disso, não sabe?

Ela não respondeu, mas eu a vi estremecer. Não havia mais vestígios do desafio em sua face. Apenas o medo transparecia. Confesso que não compreendi por que ela o provocou, mas admirei seu espírito combativo. Isso era muito mais do que eu conseguiria fazer nas mesmas circunstâncias.

— Venha. — Ela disse para mim. — Não temos mais nada a fazer por aqui.

Estela puxou-me pela mão e me conduziu em direção do elevador, que tinha reaparecido no mesmo lugar de antes, segundo eu lembrava. Depois de entrar, me virei para o poço e vi Belial dançando canhestramente ao seu redor, acompanhado dos espectros sombrios naquela dança macabra. Aquilo mais parecia uma cena no pátio de algum hospício, do que um acontecimento no mundo do Além.

Em razão de Pé Redondo ter sido punido pelo rito sumário e atirado no poço do mundo inferior, o registro a seguir foi elaborado por mim, a posteriori, por solicitação do próprio Belial. As razões dessa solicitação eu desconheço, mas suponho que se deva a alguma exigência burocrática do Mundo Inferior.

Por fim, cumpre-me ressaltar que estes registros foram feitos com toda a impessoalidade que requer um documento desta natureza, malgrado meu próprio envolvimento no caso.

Assim, começo o relato a partir de certo ponto na vida dele, o qual considero o momento em que sua natureza pervertida se manifestou:

 

Era um dia especial em sua vida. Ele estava ansioso. Suas mãos suavam mais do que de costume, e seus dentes sentiam a pressão das mandíbulas firmemente cerradas. Apesar disso, manteve—se firme no seu propósito de encontrar-se com a garota. Eles não se conheciam pessoalmente, mas ela se apaixonara por suas cartas e concordara com o encontro.

Ele era bom com as palavras, mas sabia que isso não seria suficiente. Teria que se esforçar muito para que a garota não desistisse depois que o conhecesse pessoalmente. Com amargura, olhou o pé direito calçado com uma botina especialmente feita para acomodá-lo. A natureza o moldara numa forma bizarra, de modo que se parecia mais com a pata de um bovino do que um pé humano. Seus dedos eram guarnecidos por unhas grossas e curvas, que mais pareciam as garras de alguma criatura mítica.

Aquele pé defeituoso também havia moldado a alcunha que recebeu dos moradores da pequena cidade onde morava: Pé Redondo! Ele era chamado por esse apelido há tanto tempo, que o nome de batismo só lhe vinha à mente em ocasiões formais, quando precisava identificar-se. Fora isso, “Pé Redondo” era como atendia ao ser chamado.

É certo que o defeito no pé, assim como a alcunha que lhe fora imposta por alguma língua ferina do lugar, acabou condicionando sua forma de ver o mundo ao redor. Sentia-se excluído e solitário, mas aprendera a gostar de estar só. Era quando se sentia em paz. Contudo, a solidão pesava em outros momentos. Quando isso acontecia, tentava aproximar-se das pessoas, mas não demorava para ser alvo das costumeiras chacotas. Então voltava para sua solidão. Em algumas ocasiões, suas reações eram raivosas e ele se tornava violento. Seu porte físico avantajado tornava essas ocasiões de fúria um risco sério de se transformarem em acontecimentos trágicos. Por conta disso, foi preso inúmeras vezes, mas sempre se safava por algum detalhe jurídico, que nem mesmo ele conhecia.

Então, naquele dia, deixou-se ficar sentado à mesa de uma lanchonete, na expectativa do seu primeiro encontro romântico. Para evitar que a garota se assustasse, chegou bem antes e sentou-se para espera-la. Enquanto ela não chegava, bebeu. Enquanto bebia, refez tudo que ia dizer para a garota. Todavia, ela se atrasou, e ele reviu mais do que tinha para rever e bebeu mais do deveria ter bebido.

Quando ela finalmente chegou, ele estava tão bêbado que, tudo o que conseguiu foi ficar olhando para ela com uma expressão idiota na face. Ela logo percebeu que havia algo estranho com ele, mas mesmo assim, sentou-se. Todavia, como costuma acontecer nessas ocasiões, o que tinha para dar errado, deu! Alguém o reconheceu ali sentado e a chacota teve início.

— Olha lá, não é o Pé Redondo? — Disse o gaiato.

— É mesmo. — Respondeu um outro. — Parece que arrumou um encontro. — Será que ela já viu sua patinha?

— Vai, Pé Redondo! Mostra a sua patinha para ela, mostra. — Disse o sujeito. Depois chegou perto de sua mesa com outro homem.

— Quem sabe ela quer ver outra coisa. — Disse o outro, ao mesmo tempo em que fazia um gesto obsceno.

A garota se assustou. Finalmente deu-se conta de que eles eram alvo de chacota e fez menção de levantar-se.

Pé redondo reagiu com ódio e ordenou que ela permanecesse sentada. Em seguida investiu contra os baderneiros com tamanha fúria, que só a polícia o conteve, depois de muita pancada e narizes quebrados. A lanchonete também não ficou intacta, para desespero do proprietário. Quanto à garota, ela foi suficientemente esperta para aproveitar a confusão e sumir dali. Soube-se, depois, que mudou de endereço e nunca mais foi vista na região.

Depois daquela briga, Pé Redondo foi preso e condenado por desordem, danos à propriedade alheia, resistência à prisão e tentativa de homicídio. Não era pouca coisa para o seu currículo, já um tanto comprometido pelas outras ocorrências mencionadas. Por conta disso, ele amargou na prisão por um bom tempo, até que foi liberado para trabalhar no necrotério de um hospital, devido ao seu bom comportamento. Foi aí que outra fase de sua vida se iniciou.

Certa noite, o necrotério recebeu o corpo de uma jovem que se suicidou por envenenamento. Pé redondo estava de plantão e, durante aquela noite, passou muitas vezes pelo cadáver da jovem, em razão de seus afazeres. Em cada uma dessas passagens, uma ideia germinou em sua cabeça, até que ele parou diante da defunta. Olhou para ela e viu que era bonita. Se estivesse viva, ele nunca teria tido coragem de aproximar-se dela. Também era certo que a jovem o repeliria sem dó nem piedade. Porém, naquele estado, ela estava à sua mercê e nada podia fazer. Apesar disso, ele saiu muitas vezes de perto da bela defunta, ainda indeciso sobre pôr em prática o que pretendia. Esse vai e volta se prolongou por mais algum tempo, até que os anos de rejeição e solidão conseguiram minar os escrúpulos que ainda tinha.

Depois de certificar-se que era o único ser humano vivo naquele prédio, ele começou a despi-la. Em cada peça de roupa que conseguia tirar da jovem, sua respiração se acelerava numa ansiedade crescente. Ela era ainda mais bonita do que ele esperava, e o melhor de tudo era que não iria rejeitá-lo. Finalmente teria alguém para si, mesmo que fosse por apenas uma noite. Ainda tremendo de tensa ansiedade, ele despiu-se freneticamente e acomodou-se como pôde sobre ela. A rigidez cadavérica não o incomodou, como chegou a temer. Antes pareceu excitá-lo ainda mais.

Aquele ato pervertido e insano durou quase a noite toda, mas antes do amanhecer, o cadáver estava impecavelmente recomposto. Durante algum tempo, ele aquietou seu espírito e não repetiu o ato que praticara. Pé Redondo jamais se questionou sobre aquilo, mas julgava que não faria de novo. Ele estava enganado. Depois da primeira vez, os freios morais, que talvez ainda tivesse, se dissolveram.

Nos anos que se seguiram, ele voltou a praticar a necrofilia em todas as ocasiões em que a oportunidade se apresentou. Em cada uma delas, sentia-se renovado e socialmente capaz. Aquelas mulheres mortas se submetiam à sua vontade, sem jamais questioná-lo. Aos poucos ele sentia possuir alguma espécie de poder sobre elas, como se ainda estivessem vivas, mas incapazes de resistir à sua vontade.

Com o passar do tempo, surgiram rumores sobre ele, que foram abafados pela direção do hospital. Todavia, o caráter recorrente daquelas manifestações provocou uma investigação interna, que culminou em sua demissão. Naturalmente, por interesse do próprio hospital, o processo foi conduzido de modo muito discreto. Isso livrou Pé Redondo de voltar para a cadeia. Algum tempo depois, ele se tornou coveiro do Cemitério Municipal. A oportunidade surgiu em razão da ausência de outros interessados, mas isso pouco lhe importava.

Depois de um período em que se manteve quieto, ele voltou às suas práticas abomináveis, até que foi surpreendido por nós. Algum tempo depois, ele me atacou. Com esse último ato, Pé Redondo assumiu de vez um comportamento psicótico, sem se importar com as consequências.

Acredito que teria voltado à ativa em suas práticas de necrofilia, não fosse ele próprio vítima da fúria de uma vampira na mesma noite em que pôs fim à minha vida. Ainda lembro como Berenice o arremessou violentamente para o alto, depois que sugou seu sangue diante dos meus olhos. Era o triste fim de Pé Redondo, cuja vida não valeu à pena ser vivida.

Ao relembrar esses momentos, me dou conta que eu nem mesmo fiquei chocado ao ver Berenice agir como um vampiro em toda a sua natureza bestial. Talvez isso se deva ao fato de eu já ter desencarnado, àquela altura dos acontecimentos. Mesmo assim, acredito que minha natureza já havia mudado antes de ser morto pelo coveiro. Minha humanidade já estava ficando para traz quando esse trágico acontecimento ocorreu.

Quanto ao infeliz coveiro, como costuma acontecer com os que morrem por atos de violência ou acidente, seu recém-desencarnado espírito demorou a perceber que já estava morto. Nessa condição, vagou pelo limbo, até ser recolhido por Belial. Ele não poderia saber, mas sua dívida no inferno já estava bem elevada, por conta das mulheres mortas que molestara.


 

 


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