Thursday, June 11, 2020

Requiescat in Pace - Crônicas da Cidade dos Mortos - Capítulo VI


Após várias noites de céu estrelado, o tempo mudou drasticamente. O gemido lúgubre do vento, passando entre os túmulos, era acompanhado pelo barulho da chuva que batia nas lápides. Poderia se dizer que era uma noite perfeita para os fantasmas se manifestarem, mas eu não sentia a presença de nenhum deles. Não ouvi nenhum ruído de correntes sendo arrastadas ou gemidos agoniados de algum espírito amaldiçoado.

Todos pareciam estar recolhidos às suas tumbas, sem disposição para me assombrar. Talvez a noite chuvosa não fosse do agrado das almas penadas, afinal. Somente eu estava ali, naquele momento, a contemplar a escuridão. Aquela atmosfera sombria me lembrava os velhos filmes da Hammer, que eu assistia em tempos distantes. Eram noites passadas com os olhos pregados num televisor Zenith, com imagens ainda em preto e branco. Essas lembranças de infância, que permanecem em minha memória de uma forma tão vívida que parecem ter acontecido ontem, embora tenham se passado mais de quatro décadas.

No tempo presente, esta noite parecia estar carregada de maus presságios, aos quais eu tentava ignorar. Via de regra, quando eu fazia isso, geralmente acabava me dando muito mal, principalmente quando os pressentimentos envolviam decisões sobre minha vida, ou algum perigo iminente. Desta vez não foi diferente. Não demorou para que a energia elétrica dos postes de iluminação entrasse em colapso. Todo o cemitério ficou às escuras e, sem ter o que fazer, eu me preparei para passar a noite olhando para a escuridão.

Nessa noite tão agourenta, que até as almas penadas preferiram permanecer no outro lado, eu ouvi um barulho que quase me passou despercebido. Somente quando eu ouvi a segunda vez é que tive a certeza de que não estava imaginando coisas. Algo estava acontecendo em algum lugar do cemitério. Temi que fosse novamente na capela mortuária, mas o ruído vinha de um mausoléu.

Por mais que desgostasse em sair na chuva, eu tinha que cumprir meu dever como vigia. Afinal, fora para isso que eu tinha sido contratado. Então, empunhando uma lanterna e o cassetete, me enfiei na escuridão, amaldiçoando quem estivesse causando aquela perturbação na cidade dos mortos.

Eu já sabia que o ruído não tinha origem sobrenatural, de modo que o invasor era deste mundo. Isso não era bom, eu sabia. Preferia lidar com as almas penadas a correr riscos de um confronto físico. Não sou o mais corajoso dos homens e conheço minhas limitações.

Respirei fundo e juntei meu pequeno estoque de coragem, depois desci a alameda principal e virei à esquerda, num caminho tortuoso, marcado por um cipreste triste. Eu estava na parte antiga, da qual já me referi. Nesse trecho se misturavam túmulos e mausoléus de diferentes épocas. Era o lugar mais desorganizado do cemitério e não tinha um traçado limpo e espaçoso como nos setores mais novos.

Segui alguns passos por aquele caminho e apurei a audição.  localizei a origem do ruído sem muita dificuldade. Era provocado por alguém tentando arrombar a porta de um mausoléu. Não precisei chegar perto para saber quem estava por trás daquela profanação: era Pé Redondo, mais uma vez. Depois da noite em que o surpreendemos, ele sumiu por algum tempo. Infelizmente não sumiu de vez e agora eu via o coveiro frequentemente. Quase todas as vezes em que erguia os olhos, encontrava ele a me fitar. Havia nesse olhar um brilho mal disfarçado de ódio, atirado m minha direção como uma adaga faminta de morte e destruição.

No início, eu acreditei que aquele pervertido não nos tinha visto naquela noite, mas estava enganado. O sujeito nos vira e, tudo indicava, que eu havia sido classificado como um inimigo mortal por aquele abutre. Algumas vezes o encontrei perambulando pelo cemitério durante a noite e cheguei a pensar em chamar a polícia. Entretanto nunca mais o surpreendi em suas práticas abomináveis. Creio que isso se devia mais à falta de oportunidade do que uma desejável mudança de hábitos. Ultimamente, a morte tem contemplado mais idosos e vítimas de doenças contagiosas, os quais, por razões óbvias, não parecem exercer nenhum atrativo para ele. Talvez por essa razão, o coveiro tenha sumido de minhas vistas por algum tempo. Devo confessar que fiquei feliz com isso. Ele era um sujeito sinistro e execrável, daqueles que era melhor evitar encontrar em alguma viela escura, como aconteceu agora. Ele ainda não tinha me visto, pois achei melhor caminhar furtivamente com a lanterna apagada. Sempre achei mais seguro o vigilante se manter oculto de possíveis invasores. Eu daria tudo para que continuasse assim, mas estava na hora de fazer jus ao meu fabuloso salário.

Acendi a lanterna apontada para ele. Antes não tivesse feito isso, pois a expressão assassina do seu olhar, cheio de ódio, me deixou paralisado. Ele não parecia surpreso em me ver e não demorei para concluir que tudo fora armado para me levar até ali.

— Agora você vai me pagar. — Rosnou.

Em seguida arremeteu como um touro enfurecido. Em sua mão o brilho de uma faca de açougueiro não deixava nenhuma dúvida de suas intenções assassinas. Felizmente, seu pé deformado escorregou no limo da velha calçada que guarnecia o mausoléu, quando ele desferiu uma estocada certeira na direção do meu peito. Isso me deu o tempo que precisava para me recobrar e tentar uma fuga. Contudo, Pé Redondo não me daria essa chance.

Rapidamente ele se pôs de pé e se jogou contra mim. O impacto nos derrubou e rolamos alguns metros engalfinhados. O pensamento de que eu estava lutando por minha vida, longe de ajudar, parecia enrijecer meus músculos e articulações. Eu estava completamente indefeso, quando vi o brilho da faca sendo erguida. Tentei usar o cassetete, mas meu braço não obedecia. Era o fim para mim. Mas de uma forma surpreendente, não tive medo de morrer. Senti apenas um pesar pelas coisas que ainda não fiz, especialmente pelos livros que ainda não escrevi.

Depois, tudo aconteceu rapidamente, embora eu percebesse de forma assustadoramente lenta. Pé Redondo foi arrancado de cima de mim por uma sombra que surgiu de repente. Eu não podia ver direito — embora meus olhos já estivessem acostumados com a escuridão — mas sabia que era Berenice, ou pelo menos parte dela. Ouvi um rosnado gutural, saído de sua boca monstruosa. Então vi os seus dentes. Os caninos enormes afundaram na garganta do coveiro e sugaram rapidamente sua vida. Depois que acabou, ela o arremessou por sobre os túmulos, como um boneco desarticulado.

Eu deveria estar assustado. Na verdade, acho que estava em choque, mas parte mim exultava e apenas estava feliz por ela ter voltado. Salvar minha vida tinha sido um mero detalhe. Tentei me aproximar dela, mas meu corpo parecia paralisado e temi ter sofrido alguma lesão na coluna.

— Não! — Ela disse com uma voz rouca. — Não tente se movimentar. Ainda é cedo para isso.

Depois dessas estranhas palavras, ela sumiu na escuridão. Creio que desmaiei em seguida. Devo ter ficado desacordado por algum tempo, pois quando abri os olhos a aurora já se anunciava.

Não sei dizer por quanto tempo ela sumiu, desta vez. O ataque de Pé Redondo deixou-me fora de combate por um bom tempo e não consigo lembrar de muitas coisas com exatidão. Todavia, a vida continuou seu curso, assim como meu trabalho de vigilante. Em minha última ronda da noite, Berenice reapareceu. Antes que eu a crivasse de perguntas, ela me advertiu para não voltar para o escritório. Parecia realmente assustada, embora eu não soubesse dizer o que poderia assustar uma vampira.

— Não volte para lá. Ele está procurando você.

— Ele quem? — Perguntei sem entender.

— O homem mau voltou.

Com efeito, de onde estávamos eu podia ver uma sombra enorme, projetada no vidro da janela do escritório.

— Mas ele está morto, não está? Quero dizer, você o matou quando me salvou, não foi?

— A morte não é o que você pensa. — Ela respondeu. — Está longe de ser algo definitivo.

Eu já sabia do seu gosto por respostas vagas, de modo que não insisti. Antes tivesse feito isso. Estaria mais preparado para os acontecimentos que ainda estavam por vir.

Ante minha sugestão de nos refugiarmos na Tumba, o rosto de Berenice enrijeceu numa expressão de puro pavor. Eu até já havia me conformado em conviver com algumas contradições em suas atitudes. Afinal, que vampiro tem medo de almas penadas, ou qualquer coisa parecida, quando vaga entre túmulos no meio da noite? Entretanto, estávamos numa situação de emergência, eu acredito. Ela deveria saber que eu não estava exatamente feliz por ter um coveiro psicopata à minha procura no cemitério, numa noite tão tenebrosa que até os fantasmas estavam quietos. Ela tinha algumas explicações a me dar e, por todos demônios do Mundo Inferior, esta noite Berenice não iria escapar de certos esclarecimentos que me devia.

Ao meu olhar inquisitivo, ela mesma sentiu a necessidade de explicar sua reação de repúdio à minha sugestão de nos abrigarmos na Tumba.

— Aquele lugar é ruim. — Ela cochichou. — O mal está ali, eu sei. Por favor, acredite em mim. Aquela tumba guarda um horror antigo, uma coisa que surgiu quando nada ainda existia.

Eu já tinha ouvido isso de Estela. Normalmente não daria crédito a uma explicação tão estapafúrdia, mas tinha que considerar o contexto absurdo dos acontecimentos recentes. Do ponto de vista das experiências que eu mesmo tinha tido, o que ela disse fazia todo sentido, mas não explicava tudo.

— Como você sabe o que há na tumba? — Perguntei, ocultando o fato de que eu mesmo tinha estado lá. Não queria esconder nada de Berenice, mas achei que seria melhor falar disso depois.

Aparentemente, aquela pergunta já não lhe causava nenhum desconforto. Pela sua expressão reflexiva, creio que ela já se sentia segura o bastante para me confiar alguns dos seus segredos. Todavia, a resposta não veio de imediato, mas eu esperaria o tempo que fosse preciso, a menos que o coveiro se voltasse em minha direção. Esse último pensamento me levou a olhar furtivamente para o escritório. O sujeito ainda estava lá dentro, mas se contentava em atirar objetos pela janela, furioso por não me encontrar. Por meu lado, estava satisfeito em perceber que ele não nos tinha visto, de modo que a ameaça que representava ainda não oferecia perigo à nossa integridade física.

— Uma vez, não lembro quando... — Começou ela. — Acho que foi a primeira vez que vim aqui, quando eu o vi. Parecia ser um sujeito simpático, quando chegou perto de mim. Lembro que era muito falante. Sim, lembro bem disso. Ele falava pelos cotovelos e eu me irritei um pouco. Tentei me afastar, mas não consegui me livrar dele.

— Como era esse sujeito?

— Ele parecia ter entre trinta e cinco ou quarenta anos, mas já tinha alguns fios de cabelo grisalho. Vestia-se de modo antiquado, como se fosse de outra época.

Berenice descrevia Voz Cavernosa, mas aquilo não fazia nenhum sentido, ou fazia? Lembrei que ele aparecia para mim desse jeito também.

— Ele me seguia por toda parte, sempre falando sem parar. Em certo momento, eu me mostrei como realmente sou, mas ele não pareceu se importar com isso. Então nos aproximamos da cripta que você chama de Tumba. Aí, ele começou a tecer considerações sobre o estilo arquitetônico da construção e eu fiquei interessada. Você sabe que eu gosto disso, não sabe?

— Sim. Mas continue, por favor.

— De repente, ele disse que deveríamos ver a cripta por dentro. Eu fiquei com medo e me recusei. Ele pareceu surpreso com a minha recusa. Segurou meus braços e me empurrou para dentro. Foi minha vez de me surpreender. Ele não deveria ser mais forte que eu, não é? Eu caí, mas levantei-me o mais rápido que pude. Quando olhei em volta, percebi que o lugar era bem maior do que parecia do lado de fora. Havia alguma coisa lá, que eu não consegui ver direito por causa da escuridão. Sei apenas que rastejava e se aproximava de mim. Ele cresceu à medida em que chegava mais perto. Foi aí que vi seus olhos. Eram negros e pavorosos. Eu gritei e me debati até que acordei. Eu estava sonhando.

— Então foi apenas um pesadelo?

— Apenas um pesadelo? Até hoje escuto aquela gargalhada sinistra.

— Desculpe. Deve ter sido realmente assustador.

Ela estremeceu e aninhou-se em meus braços. Senti o perfume de seus cabelos e a apertei de encontro a mim. Foi fácil esquecer que a mulher que eu tinha em meus braços não era propriamente humana. Procurar sua boca foi um ato quase instintivo. Quando nos tocávamos, o próprio tempo parecia constrangido em seguir em frente. Infelizmente a realidade não era assim e tínhamos coisas urgentes a resolver.

— Depois desse pesadelo, você não se aproximou mais da Tumba?

— Não. Preferi fingir que ela não existia de verdade. Ainda tenho calafrios só de lembrar daquela coisa, mas nunca mais vou esquecer aqueles olhos sinistros.

Naquele momento, Pé Redondo saiu do escritório e olhou em nossa direção. Seu surgimento súbito na porta provocou um estremecimento em Berenice.

— Talvez ele não esteja nos vendo. — Eu disse, mas sem muita convicção.

— Acho que nos viu. Está vindo para cá.

Era verdade. O sujeito de repente veio em nossa direção. Em cada passo que dava, vociferava impropérios e ameaças.

— Venha cá, vigia! Chegou o dia de nosso acerto de contas. Hoje você não me escapar! Vai se arrepender até o último fio de cabelo por ter se metido onde não devia.

Já meio desesperado procurei alguma coisa que pudesse usar para me defender. Olhei algumas pedras no chão e lamentei não ter saído do escritório com o cassetete que sempre levava em minhas rondas. Não que isso fosse de grande ajuda, como não foi da última vez.

— Fuja! — Disse para Berenice. Pelo menos ela teria tempo para se pôr a salvo, pensei de modo tolo. Na verdade, eu era o único que estava indefeso ali.

— Não! — Ela bradou, ao mesmo tempo em que me apertava num abraço que mais parecia uma tentativa de me proteger, do que me impedir afastá-la.

— Você tem que ir. — Insisti na minha tolice cavalheiresca.

— Não! — Ela repetiu.

Todavia, antes que fizéssemos qualquer movimento, algo aconteceu. De maneira surpreendente, fomos salvos por... Belial! Ou Voz Cavernosa, se o leitor preferir.

Ele surgiu de repente. Estava acompanhado de Estela e alguns daqueles espectros de aspecto estranho. Ao seu sinal, eles se posicionaram atrás do coveiro e o ergueram no ar, enquanto Berenice escapulia discretamente. Dessa vez, fiquei feliz com a sua atitude evasiva.

— Menino levado! — Ralhou Estela, como se estivesse falando com uma criança desobediente. — Eu não lhe disse que não poderia andar por aí sozinho?

Estela aproximou-se dele. Pegou-o pelas orelhas e girou sua cabeça de um lado para o outro várias vezes.

— Eu conheço você, não conheço?

O coveiro nada respondeu. Limitou-se a desviar o olhar para o chão.

— Conheço, sim! — Ela exclamou com um grito. — Foi você que tentou fazer aquelas coisas feias comigo, não foi?

— Ora, ora! — Disse Belial, de mãos na cintura. — Então temos uma celebridade aqui. Você mentiu para mim e isso foi uma coisa muito feia de se fazer, para um recém-chegado no pedaço.

Era uma cena esquisita, para dizer o mínimo. O coveiro se debateu como pôde, mas os espectros o sacudiram furiosamente e ele ficou imóvel. Parecia apavorado e não olhava diretamente para Belial.

— Agora vou ter que castigá-lo. O que vou fazer com você?

Pé Redondo tinha uma expressão aturdida. Parecia um ator que entrou no palco sem ter decorado o texto. Acho que ele não entendia plenamente o que estava acontecendo e, para falar a verdade, nem eu. Àquela altura, estava totalmente esquecido de mim e de Berenice. Voltei-me para me assegurar de que ela tinha conseguido se ocultar. Não havia nenhum sinal dela. Aparentemente estava tudo bem.

— Atire-o no poço. – Disse Estela com uma convicção vingativa.

— Atirá-lo no poço? Você é muito má... — Disse Belial, com uma expressão insana. — Mas é uma boa ideia. Ao poço, então!

— Ao poço. — Repetiu Estela.

— Por favor, não! — Implorou o coveiro. — Eu não sei nadar.

De repente um silêncio profundo. Logo depois, Belial e Estela caíram numa gargalhada que parecia não ter mais fim.

— Vocês ouviram? — Disse Belial, entre rompantes de riso. — Ele não sabe nadar. Eu não me divertia assim, desde que os americanos perderam a guerra do Vietnã.

Eu ainda não tinha entendido a piada, mas logo depois já me perguntava de onde tinha vindo minha estupidez.

— Como se isso pudesse fazer alguma diferença. — Falou Estela com desdém e dirigindo um olhar duro para Pé Redondo. — Você já está morto, bobão.

O coveiro olhou atônito para ela. Não parecia acreditar no que ouvira.

— Não pode ser. Não pode ser! — Repetia ele, incrédulo.

— Pode sim! — Exclamou Belial com crueldade. — Desencarnou e já estava nosso setor de triagem, quando escapou.

Pé Redondo ensaiou se debater novamente, mas os espectros não permitiram.

— Sim. Você morreu num confronto com a vampira, depois de matar o vigia. — Disse Estela. Em seguida ela olhou para mim com uma expressão embaraçada. — Ops!

Levei alguns segundos para entender que ela estava falando de mim.

— Mas eu não morri — Gaguejei.

Ela ficou em silêncio por um instante, mas acabou respondendo.

— Você morreu, sim. Berenice não o alcançou a tempo de salvá-lo.

Belial riu daquele seu sujeito cruel. Era difícil acreditar que um dia ele tinha sido humano, como disse Estela.

— Você está morto, mané. Acostume-se com isso.

A compreensão plena do significado daquelas palavras demorou a fazer sentido em minha mente, mas caíram como uma bomba. Era minha vez de ficar aturdido. Acho que eu teria sofrido um ataque cardíaco, se meu coração ainda estivesse batendo. Mil perguntas surgiram, mas eu não estava em condições de articulá-las com alguma coerência aceitável.

Coube à Estela responder-me às questões mais urgentes que se insinuavam em minha mente, mas que não fui capaz de formular.

— Sim, esse miserável matou você. Foi no seu último plantão que isso aconteceu. Ele ficou de tocaia entre os túmulos e o esfaqueou.

— Este sacana é dos meus. — Falou Belial, com seu costumeiro senso de oportunidade. — Foi um trabalho de primeira.

— Na verdade, foi um jeito bem cruel de se morrer. — Intercedeu Estela. — Mortes violentas dificultam nossa percepção e demoramos a compreender o que aconteceu, não é? Comigo foi assim também.

Eu ainda não era capaz de pensar numa resposta para essa questão. Contudo, acho que Estela não esperava mesmo que eu respondesse.

— Eu estou morto? Não consigo compreender. Há alguns minutos atrás eu estava falando com Berenice. Com isso é possível?

Estela pousou a mão em meu ombro e me dei conta que eu estava falando com uma morta. Estar vivo ou morto parecia não fazer muita diferença. Parecia mais uma questão de ponto de vista, já que eu parecia continuar existindo.

— Isso também aconteceu com Berenice?

— Com Berenice foi diferente. Logo depois que você morreu, ela deixou de existir no plano mortal, mas fez isso por vontade própria.

Eu sabia que isso era uma questão de tempo. Há muito Berenice cortejava a morte. Se eu não soubesse tudo que já sei, creio que estaria desesperado. Eu precisava refletir, mas Belial voltou à carga e não deu chance para isso.

— Tá, tá! Chega desse mimimi. Temos um trabalho a fazer, não temos?

Sem esperar resposta, ele ordenou o retorno para a Tumba.

— Você também, escrevinhador. Está na hora de conhecer o poço. Vai gostar dele.

Eu ia perguntar que diabo era o poço, mas desconfiei que era melhor adiar esse conhecimento, pois muito provavelmente não gostaria de saber do que se tratava. Quanto ao coveiro, ele parecia ter se resignado diante do fato incontestável de sua morte. Pé Redondo ainda não sabia que isso não significava o fim do seu tormento. Sua jornada estava apenas no início e seria tão horrenda quanto seus atos em vida, se dependesse de mim. Todavia, eu já desconfiava que Voz Cavernosa não obedeceria aos procedimentos normais no caso dele. Lembrar do codinome que atribuí à Belial no início, me proporcionou um pequeno prazer que aquele fantasma cretino não poderia me arrebatar. Isso era muito mais do que tinha o coveiro, embora ainda não soubesse o que significava ser "atirado no poço". Quero dizer, ainda não sabia se isso era no sentido literal, ou apenas retórico.

Então, com Voz Cavernosa à frente, nos encaminhamos de volta à Tumba. Enquanto eu andava ao lado de Estela, fiquei imaginando nosso tétrico cortejo aos olhos de algum espectador. Ele veria o que parecia ser um condenado sendo conduzido ao cadafalso. Eu quase podia ouvir o Bolero de Ravel tocando ao fundo, enquanto marchávamos entre os túmulos, como defuntos renitentes e amaldiçoados. Essa era uma cena que eu gostaria de ter escrito, mas agora já não importava.

A condição de alma penada não me entusiasmava muito. Meu trágico passamento me deixou com vários projetos inacabados. Não que continuar vivo fosse garantir que eu os terminaria, mas gostaria de ter tido essa possibilidade.

Estela percebeu meu estado de espírito e interrompeu a sequência de pensamentos sombrios que eu já encadeava.

— Tem uma nuvenzinha negra sobre sua cabeça.

— O que você queria? Estou morto. Morto! E, ainda por cima, fui o último a saber. Tem coisa mais deprimente que isso?

Decididamente, estando vivo ou morto, minha alma era essencialmente depressiva. Naquele momento, resolvi que eu seria um fantasma triste.

— Como se pode falar para um espírito que ele morreu? – Disse ela, ao mesmo tempo em que continha o riso. – É difícil. Mortos recentes são ainda muito apegados à vida anterior. Então é mais fácil esperar que o espírito perceba isso sozinho. No seu próprio tempo.

— Voz Cavernosa sabia disso?

— Voz Cavernosa?

— Eu quis dizer Belial. Voz Cavernosa era como eu o chamava, antes de saber seu nome.

Dessa vez, ela não conteve a gargalhada. Felizmente, o coveiro voltou a se debater e Belial estava ocupado demais para prestar atenção.

— Gostei! — Ela disse, ainda rindo. — Voz Cavernosa é bem mais legal.

Estela fez um esforço para manter-se séria. Enquanto ela tentava se controlar, eu refiz minha pergunta.

— Por que ele agiu diferente com relação ao coveiro e a mim?

— Ele tem pressa em levar o coveiro para baixo. Parece que aquela alma é tão negra, tão abjeta, que o Mundo Inferior já o julgou e o quer de qualquer maneira e imediatamente. Acho que foi um rito sumário.

— E quando a mim?

— Não sei. — Disse ela, dando de ombros. — Acho que foi por implicância mesmo.

O que ela disse não parecia muito promissor. Eu mal havia desencarnado e já havia arrumado encrenca com o Mandachuva do lugar. Desencarnado! Que triste fado carrego. Finalmente a oportunidade de viver um grande amor, e o que me acontece? Estou morto! Mortinho da Silva! É claro que esse pensamento era um contrassenso, já que eu estava apaixonado por uma morta-viva

— Que significado tem o amor nascido entre esses túmulos? Como pode ter acontecido, se eu estava morto? — Perguntei para Estela.

— Que eu saiba, você ainda era vivo quando tudo começou entre vocês, não era?

— Sim. — Lembrei. — Só não consigo compreender por que ela abriu mão da imortalidade. Eu já estava disposto a me tornar um vampiro por ela.

— Eu estava tentando imaginar um jeito de lhe dizer isso. Berenice se expôs ao sol e morreu, depois que percebeu que você estava morto. Foi o jeito que encontrou para continuarem juntos, eu acho.

De repente percebi que Estela havia se calado. Ela estava emocionada.

— Sabe? Eu esperava que você fosse minha alma gêmea, mas a sua Berenice chegou primeiro. O caso de vocês já vem de outras vidas passadas.

As revelações dela eram cada vez mais surpreendentes. Aquilo me explicava o arrebatamento que eu sentia quando estava com Berenice. Em sua companhia tudo adquiria um sentido especial e conseguia me transformar em alguém muito melhor do que eu jamais seria sozinho, ou com outra mulher.

Também fiquei consternado por Estela. Ela passou toda uma vida sem conseguir enxergar além do próprio umbigo. Então viu em mim a possibilidade de sentir algo por alguém além de si mesma.

— Ei Vocês aí! — Gritou Voz Cavernosa. — Parem de cochichar e apressem o passo. Estão pensando que temos a eternidade toda?

Ele riu da própria piada.

Parece que aquela cria do inferno tinha algum senso de humor, afinal de contas. A eternidade era tudo o que tínhamos, mas de qualquer modo apressei o passo. Depois das palavras de Estela, eu não via a hora de me livrar daquilo e reencontrar Berenice, mesmo que fosse apenas um encontro de almas penadas.


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