Friday, June 05, 2020

Zaphir - A Guerra dos Magos - Capítulo VII

De volta ao mundo real

 

Após três erros de saques seguidos, o professor interrompeu o treino com um apito estridente e se aproximou com a cara fechada. Gabriela era sua atleta mais promissora e lhe desagradava vê-la com um olhar tão distante da quadra.

— Posso saber onde você está?

— Como? — Ela perguntou confusa.

— Eu perguntei onde você está. Na quadra é que não é.

Então ela percebeu que sua mente realmente não estava ali. E não conseguia evitar a sensação desconfortável de querer estar em outro lugar.

— Desculpe professor. Acho que não tô me sentindo bem hoje.

 O professor conteve qualquer sinal de desagrado. Via aquilo com frequência nos adolescentes, especialmente nas meninas. Era evidente que Gabriela, sempre tão centrada nos treinos, não estava imune às alterações de humor que eram próprias da idade. Entretanto, tinha a impressão que havia algo mais no semblante cansado dela.

— Hoje você não está num bom dia, não é?

— Acho que não. — Disse ela, apática.

— Você precisa descansar. Continuamos o treino na próxima aula, está bem?

— Tá bem. Vou recolher o material, então.

— Pode deixar. Eu mesmo faço isso.

Ela agradeceu e saiu da quadra em direção à biblioteca. Tinha uma pesquisa para fazer com Michel. Como estava adiantada, podia se distrair com alguma leitura até ele chegar. Gostava dos antigos livros de aventura de Emílio Salgari e já tinha encontrado alguns na biblioteca da escola. Minutos depois já estava com o livro na mão e escolheu um canto sossegado para acomodar-se e iniciar sua leitura. Entretanto, o sossego não durou muito.

— Oi. — Saudou uma voz ao lado dela.

— Oi. — Ela respondeu antes de levantar os olhos, ao reconhecer a voz.

— Gino? Então, agora frequenta a biblioteca?

— Mais ou menos. Tenho que fazer um trabalho sobre Vasco da Gama. Tá lendo o quê? — Perguntou ele, espichando os olhos. — Gavião do Mar! Esse é muito bom.

— Já leu? — Ela perguntou surpresa. Pelo que sabia a respeito de Gino, ele não era muito chegado à leitura.

— Já. Meu pai tem uma coleção completa do Emílio Salgari. Eu não gosto muito de ler, mas às vezes pego um.

— Ah! — Exclamou Gabriela, cuja interjeição significava que tinha compreendido.

— Eu nunca lhe agradeci pela ajuda que recebi no bimestre passado, na prova de matemática.

— Bobagem... Já faz tanto tempo.

— Mesmo assim, foi graças a você que passei. — Disse ele sentando-se. — Gostaria de retribuir de alguma forma.

— Esquece isso. Tá tudo bem.

Ele ia retrucar, mas alguém se aproximou e interrompeu.

— Então é aqui que você se meteu?

— Valéria? O que você está fazendo aqui? — Perguntou Gino contrariado.

Valéria fuzilou Gabriela com o olhar. Ela retribuiu com a calma indiferença que lhe era peculiar. Desde aquela festa de aniversário, elas não tinham mais se falado. Aparentemente Valéria logo se cansava de seus joguinhos, no entendimento de Gabriela. Para ela, o acontecido naquela noite tinha provocado uma sensação intensa, pela inexperiência dela, mas logo percebeu que não tinha um significado especial.

— O que acha? Estava procurando você. Não tínhamos combinado ir ao shopping hoje à tarde?

— Ih! É mesmo. Desculpe. Esqueci completamente e vim para cá fazer um trabalho de história.

— Estou vendo. — Retrucou Valéria com desdém.

Gabriela não costumava alterar-se facilmente com pessoas como Valéria, mas não tinha paciência para lidar com atitudes que considerava tolas e não queria tornar esse dia aborrecido em algo ainda pior.

— O feliz casal não precisa de mim para continuar a discussão. Vou nessa.

— Espere Gabi. Você não tem que ir embora porque já estava aqui. — Disse Gino com irritação. — E você, não imagine coisas.

— Não vou me dar ao trabalho. Da fruta que você gosta, ela lambe até o caroço.

Aquela observação carregada de insinuação conseguiu irritar Gabriela.

— É mesmo? Você já falou para o Gino dos joguinhos que você gosta de fazer? Aposto que ele ia achar muito interessante.

— Do que ela tá falando?

— De nada. — Respondeu Valéria, sem jeito.

Percebendo vozes alteradas, a bibliotecária se aproximou deles com cara de poucos amigos.

— Aqui não é local para discussão. Acalmem-se ou saiam.

— Vamos embora? Perguntou Valéria para Gino.

Ele ia insistir no assunto, mas concordou em ir embora para evitar mais um chilique de Valéria dentro da biblioteca.

— Vamos! Tchau, Gabi.

— Tchau. — Respondeu Gabriela em tom neutro.

Depois que Gino e Valéria saíram, Gabriela sentou-se novamente à mesa de leitura e conferiu a hora no relógio de parede da biblioteca.

— Aquele pirralho já deveria estar aqui. — Falou para si mesma, pensando que aquela situação desagradável talvez não tivesse acontecido, se Michel já estivesse ali com ela. Depois sorriu quando percebeu que, na verdade, divertiu-se com a cena de ciúme de Valéria. Era a primeira vez que provocava algo assim e aquilo a fazia sentir-se bem, embora não compreendesse exatamente o porquê daquilo.

Uma hora depois, concentrada na leitura, Gabriela custou a perceber que Michel ainda não aparecera. Aquilo era muito estranho, porque ele nunca faltava quando combinavam alguma coisa. Ela esperou mais 15 minutos e decidiu procurá-lo. Percorreu todas as dependências da escola infrutiferamente. Não havia sinal dele em lugar nenhum e ela começou a ficar preocupada.

Ao passar pela quadra de esportes viu dois garotos da turma de Jorjão. Eles vinham da direção da torre da caixa d’água e pareciam bastante animados com alguma coisa que fizeram. Gabriela ocultou-se. Depois seguiu o caminho deles no sentido inverso. Apostar que eles tinham alguma coisa a ver com o sumiço de Michel não era nenhum absurdo.

Ao se aproximar da torre da caixa d’água, percebeu que a porta de acesso à escadaria estava bloqueada pelo lado de fora, mas sem o cadeado original na tranca. O que impedia a sua abertura era um arame grosso, torcido para unir as pontas. Com esforço, ela desfez a tranca improvisada e abriu a porta e encontrou Michel.

Amarrado e amordaçado com as próprias roupas no cano da bomba d’água, Michel tentava desesperadamente soltar-se. Mais que o medo, havia um enorme constrangimento no seu olhar pela patética situação em que se encontrava, quando avistou Gabriela.

— Espere, eu ajudo você.

— Eu não pude... Fazer... Nada. Eram muitos. — Disse, com lágrimas nos olhos.

— Está tudo bem agora. Fique calmo.

Ciente do seu constrangimento com a nudez forçada, Gabriela evitou olhá-lo diretamente, enquanto o ajudava a vestir suas roupas. Sentia um ódio feroz pela estupidez daquela injúria, mas nada disse. Não queria aumentar ainda mais o sofrimento dele.

— O que aconteceu? — Ela perguntou depois de alguns minutos.

— Eles me pegaram quando eu ia para a biblioteca encontrar com você. Arrastaram-me para cá e me amarraram naquele cano. — Disse ele, apontando o cano d’água com o olhar. — Enquanto faziam isso, riam e me batiam.

— Não se preocupe. Eles vão ter o que merecem, assim que chegarmos ao gabinete do diretor da escola.

— Não.

— Não?

Ele respirou fundo. Não sabia como explicar ainda, mas sentiu um enorme desejo em revidar a afronta sofrida.

— Punição da escola é pouco. — Disse por fim. — Eu vou pegar aqueles desgraçados.

— Ficou doido? Eles são muitos para você enfrentar.

— Quem falou em enfrentar?

— O que você quer fazer?

— Ainda não sei bem. Mas vou encontrar um jeito de me vingar daqueles imbecis. — Ele disse com o rosto crispado.

Sua expressão era impressionante, principalmente para quem conhecia aquele garoto afável. Gabriela nunca o tinha visto assim e teve receio que Michel estivesse perdendo uma parte importante de si naquele momento.

— Você está bem?

— Tô.

— Então vamos embora. Já não há razão para continuarmos aqui.

Ela pegou em sua mão ainda trêmula e o conduziu para fora, mas antes que saíssem ele a segurou.

— Gabi?

Ela se voltou e fitou seus olhos tristes.

— Não se preocupe. Isso fica só entre nós. Agora vou te levar para casa. É muito tarde para a gente fazer aquele trabalho de aula.

Eles saíram do colégio e, abraçados, seguiram para o ponto de ônibus. Gabriela nunca o sentiu tão frágil e ficou novamente com raiva dos moleques que cometeram aquela barbaridade.

No dia seguinte, ela procurou Michel em sua casa para irem juntos para o colégio. Normalmente era ele é que fazia isso, mas ela decidiu mimá-lo um pouco só daquela vez.

— Michel não vai à aula hoje, querida. — Disse à mãe dele ao abrir a porta para ela.

— Não?

— Não, meu bem. Michel amanheceu com febre e decidimos leva-lo ao médico, por precaução. Hoje você terá que ir sem o seu parceiro de aventuras.

— Tá. — Concordou ela, não muito feliz com isso. — Mais tarde eu passo aqui para ver como ele está.

— Venha sim. Ele vai gostar de ver você.

— Tá bom. Obrigada.

— Até mais tarde, querida.

Aquele dia seria bem chato sem Michel, pensou Gabriela sem muita vontade de admitir que sentia a falta dele.

— Hoje tem treino de vôlei de novo. — Lembrou para si mesma — Pelo menos o dia não será tão chato.

Mas foi. Na parte da manhã, duas aulas seguidas de matemática tão cansativas que a deixaram com a impressão de ter sido abduzida, tal era a inaptidão do professor para lecionar.

Felizmente as aulas chatas chegaram ao fim e ela logo estaria livre até a hora do treino de vôlei. Teria tempo para pesquisar e redigir o trabalho escolar que faria com Michel. Então, depois do almoço, foi para a biblioteca da escola.

Enquanto isso. Michel voltou do consultório médico e trancou-se no quarto. Fora alguns hematomas e uma luxação no pulso direito, ele estava bem. Entretanto, recusou-se a responder qualquer pergunta sobre o que havia acontecido.

Deitado de costas na cama ele olhava fixamente o teto, enquanto sua mente vagava pelo mundo de Az’Hur. Se fosse realmente um elfo, teria poderes mágicos e poderia enfrentar os valentões que o perseguiam na escola. Ficou imaginando o que faria. Talvez os transformasse em algum animal rastejante e gosmento, algo assim. Não sabia se elfos podiam fazer essas coisas, mas se não pudessem, certamente poderiam fazer alguma poção que fizesse crescer orelhas de asno e pelos nas mãos de cada um daqueles idiotas. Uma poção? Por que não? De repente tudo se tornou claro para ele. Já sabia o que fazer e levantou-se da cama. Antes de qualquer coisa, tinha que encontrar a caixa de remédios de sua mãe. Felizmente ela não costumava jogar nada fora e, certamente, ele encontraria o que precisava. Depois pensaria nos detalhes, disse para si mesmo antes de adormecer.

Na escola, Gabriela se esforçava para concentrar-se no treino. Ela adorava jogar vôlei, mas detestava treinar saque. Sentia-se como um jogador de futebol que só treinasse cobrança de pênalti. Sabia que era importante dominar cada fundamento, sempre buscando a perfeição, mas sua alma não estava naquele treino.

— Mais uma vez. — Ordenou o treinador.

Aquilo parecia uma sessão de tortura chinesa, mas ela obedeceu e recomeçou os saques. Havia decidido dar o melhor de si e extravasar a raiva que estava sentindo. Ficou tão concentrada nesse esforço que não percebeu a aproximação de Valéria e um pequeno grupo de alunos.

— Ei! — Gritou Valéria, da lateral da quadra. — Se acertar o próximo saque, ganha uma cueca.

As outras garotas riem e algumas imitam o andar masculino.

— Perereca musculosa. — Disse Valéria perto dela e depois se afastou rindo.

Esse tipo de provocação não costumava afetar Gabriela, mas ela não estava definitivamente num bom dia. Olhou fixamente para Valéria por um segundo e a fez desviar os olhos. Em ato contínuo jogou a bola para o alto e desfechou um golpe com toda a força de que era capaz. A bola partiu certeira e atingiu a desafeta na testa. Ela nem teve tempo de perceber e caiu desacordada. O treinador correu para socorrê-la e a levou para a enfermaria, não sem antes olhar para Gabriela.

— Não saia daqui. Nós temos que conversar sobre isso.

Os desdobramentos desse último acontecimento não foram, como se poderia esperar, muito favoráveis para a reputação de Gabriela junto à direção da escola. Logo depois de levar Valéria para a enfermaria, o treinador a conduziu para a sala do diretor e chamou sua mãe. Uma hora depois ela foi instada a explicar o motivo da agressão cometida contra outra aluna. Quando terminou seu relato, o silêncio do diretor a deixou inquieta.

— Isso realmente aconteceu, treinador?

— Eu percebi que havia um grupinho à beira da quadra falando com ela, mas o que eles disseram eu não consegui ouvir, pois estava do outro lado e havia muito barulho. Contudo, percebi que elas estavam prejudicando o treino dela e atravessei a quadra, mas antes disso Gabriela acertou a garota.

“Mentiroso”. A palavra ecoou na mente de Gabriela, mas ela nada disse. Lembrava que o treinador, na verdade, estava bem próximo e era impossível não ouvir os insultos de Valéria.

— Nós compreendemos que você tenha sofrido uma afronta, mas a agressão que cometeu não poderia ter acontecido. — Disse o diretor da escola. — As consequências disso poderiam ter sido muito graves. Você compreende?

— Sim, senhor.

— Eu não entendo como minha filha fez isso. Não é da natureza dela. — Falou a mãe de Gabriela pela primeira vez, com um tom de voz que denotava a decepção que sentia. Aquilo fez com que Gabriela se encolhesse na cadeira. Há muito compreendia o quanto era difícil para sua mãe lidar com a própria solidão e cuidar dela. Era justamente a partir dessa compreensão que se esforçava para não lhe causar nenhum tipo de aborrecimento, até que cometera aquele ato impensado.

— Desculpe mamãe. — Murmurou.

— O bullying é uma prática abominável, mocinha. — Continuou o diretor. — E lamentamos muito você ter sido vítima disso e, justamente aqui, na nossa escola. Contudo, reagir com violência não é a melhor forma para lidar com situações como essa.

— Eu... Compreendo. — Repetiu ela, ansiosa para sair da sala do diretor. Sabia que aquelas palavras eram vazias e não significavam nada. A única coisa verdadeira ali era o constrangimento de sua mãe.

— Fico feliz que você tenha compreendido isso. Doravante, situações como essa devem ser relatadas imediatamente aos professores.

— Sim, senhor. — Ela respondeu apática. Todo aquele discurso era um amontoado de bobagens politicamente corretas. Ela sabia que os professores nada fariam. Há meses que Michel era perseguido, agredido e afrontado em sua dignidade, sem que houvesse qualquer atitude da direção da escola. Ninguém se importava.

“Bando de hipócritas”.

— Infelizmente não podemos relevar a agressão que você cometeu em represália à ofensa que sofreu. Assim, fica suspensa das aulas por dois dias e obrigada a fazer um trabalho sobre violência na escola durante o cumprimento dessa suspensão. O trabalho será apresentado no auditório para todos os alunos no dia que você voltar, durante a pausa.

“Que ótimo”. Pensou Gabriela. “Agora toda a escola vai me odiar”.

— E Valéria? — Ela perguntou.

— A menina que você agrediu? O que tem ela?

— Desculpe diretor, mas a pergunta dela é pertinente. — Intercedeu a mãe de Gabriela. — Minha filha foi vítima de bullying. O que o senhor vai fazer quanto a isso?

— Mas a outra já levou uma bolada. E foi sua filha mesma quem se encarregou disso.

— Gabriela reagiu a uma ofensa, mas a tal garota infringiu o regulamento da escola, não é mesmo? Além disso, a prática de bullying é crime, não é?

— Bem...

— Eu exijo que a outra garota também seja punida. — Interrompeu a mãe de Gabriela, subindo o tom da voz.

— A senhora tem razão. — Respondeu o diretor, por fim. – Ela será suspensa também, mas por três dias. Está bem assim? Além disso, também será obrigada a fazer um trabalho de aula sobre bullying e apresenta-lo no auditório na hora da pausa, como Gabriela.

— Isso me parece satisfatório, mas vou acompanhar de perto o fim dessa história.

— Está no seu direito. — Respondeu o diretor não muito à vontade. — Bem... Se todos estão de acordo, podemos encerrar essa reunião.

Elas se despediram formalmente e saíram da sala do diretor. Alguns minutos depois, já fora da escola, Gabriela quebrou o silêncio opressivo que reinava entre elas.

— Desculpe mamãe.

A mãe dela olhou a com uma expressão de desalento, mas nada disse.

— Por favor, diga alguma coisa.

— Ela realmente disse aquilo para você?

— Sim.

— Ela tinha algum motivo para isso?

— Ela me viu conversando com o namorado dela na biblioteca outro dia. Eu acho que não gostou muito disso.

— Entendo. Ela fez isso por ciúmes.

Havia mais para contar, mas Gabriela decidiu que não gostaria de falar de coisas que ainda não compreendia bem. Sentia um inexplicável pesar que apertava seu coração, talvez pelas palavras que ouviu de Valéria, ou pelas palavras que não foram ditas pela sua mãe. De qualquer modo se sentia magoada e triste.

No dia seguinte, Michel estava na escola sem a companhia de Gabriela pela primeira vez. Isso lhe dava uma sensação desconfortável, mas ele procurou não pensar muito a respeito.  Todavia, a ausência dela lhe era oportuna, pois desta feita queria que Jorjão e seu bando de arruaceiros se sentissem à vontade para molestá-lo.

Reviu tudo que havia planejado para esse dia. Não poderia se esquecer de nada, caso contrário estaria em maus lençóis. Um pouco ansioso, enfiou a mão no bolso do casaco para se certificar, pela centésima vez, que havia trazido tudo que ia precisar. O contato dos dedos com o saco plástico o tranquilizou. Estava tudo ali. Agora só lhe restava esperar pela hora do recreio e pela sanha costumeira de seus opressores em infernizar sua vida.

Havia duas aulas antes da pausa do recreio. Em sua ansiedade, aquelas duas aulas duraram uma eternidade, mas o sinal da última aula finalmente soou e interrompeu o professor. Como em qualquer escola, ali também o sinal que anunciava o fim da aula era a senha para um verdadeiro estouro de boiada. A rapidez com que os alunos deixavam a sala contrastava fortemente com a disposição de entrar.

Em poucos segundos a sala estava praticamente vazia, exceto pelo professor e Michel com seus três únicos amigos, além de Gabriela. Ela estava ausente nesse dia. Eles sempre saíam por último, pois não era bom ficar no caminho dos mais afoitos.

— Vocês não vão para o recreio? — Perguntou o professor. Aqueles quatro alunos sempre lhe despertaram a curiosidade. Não correspondiam ao padrão medíocre dos alunos da escola. Na verdade, eles pareciam não se encaixar em lugar nenhum, mas gostava deles.

— Já estamos indo. — Respondeu Michel.

Eles se levantaram e saíram da sala em silêncio, até que chegaram ao pátio de recreio.

— Tem certeza que quer fazer isso? Perguntou um dos garotos para Michel.

— Sim. Mais que qualquer outra coisa. — Respondeu ele frio.

Esteve ansioso até aquele momento, mas depois que começou a pôr seu plano em prática sentia uma excitação crescente, como um anticlímax da vingança que estava por vir. Não haveria contemplação para aquele bando de idiotas.

— Cara, tô ficando com medo de você. — Disse outro dos seus amigos, com uma risada nervosa.

— Peguem uma mesa e esperem por mim, como combinamos. Vou buscar o suco de laranja. — Disse ele tomando a direção da cantina.

Ele pegou uma bandeja de plástico e colocou quatro copos grandes de suco de laranja. Olhou ao derredor para certificar-se que não estava sendo observado e, depois, despejou o conteúdo do saco plástico que trazia no bolso em cada copo. Metódico, esforçou-se para que cada um recebesse uma dose igual à do outro. Enquanto usava uma colher para homogeneizar a mistura, ele procurava Jorjão e seu bando. Precisava passar perto deles para que seu plano desse certo. Não demorou muito para que ele os localizasse próximos de onde estavam seus amigos. Ele não poderia desejar uma situação melhor para o que pretendia fazer. Pegou a bandeja e seguiu em direção deles.

— Ei, olhem só o CDF levando suquinho para os namorados. — Gritou Jorjão com desdém.

— Ei, menininha! Perdeu a noção do perigo? — Gritou um dos moleques levantando-se a um sinal do líder. Era a senha para os outros o cercarem.

— O que temos aqui? Uma bandeja com quatro copos de suco de laranja. — Falou Jorjão. — Trouxe para nós?

— Me deixa em paz. — Retrucou Michel, com a costumeira expressão apavorada no olhar.

— Bota essa bandeja aqui na mesa, bobalhão.

— Não.

— Tá querendo ir de novo para a caixa d’água? Pessoal, eu acho que ele gostou de ser amarrado naquele cano.

Os moleques riam de forma espalhafatosa e chamavam a atenção de outros alunos que estavam próximos. Não demorou muito para juntar uma pequena aglomeração.

— Que tipo de bichinha você é? — Perguntou Jorjão com desdém. — Será que é daquelas que gostam de apanhar?

Outro moleque respondeu à pergunta com voz em falsete.

— Me bate amor.

Michel ouvia as risadas, mas não se importava. Levaria seu plano adiante e depois riria por último.

— Bota a bandeja na mesa. — Repetiu Jorjão em tom ameaçador.

Mais uma vez ele fingiu resistir, mas colocou a bandeja na mesa para não os irritar demais. Não queria correr o risco de os copos serem derrubados.

— Muito bem. Nada como uma bichinha esperta. — Disse o brutamonte distribuindo os copos entre seus comparsas. — Vamos brindar à saúde dela. Não é, rapazes?

Eles ergueram os copos à maneira de cavaleiros medievais, ou pelo menos era assim que imaginavam, numa pantomima que pretendia ser engraçada. Depois olharam para ele e esvaziaram o conteúdo dos copos rapidamente.

— Esse suco tava com um gosto estranho. — Disse um dos moleques desconfiado.

— Besteira! — Exclamou Jorjão dando-lhe um tapa nas costas. — Você nem sabe o gosto que tem um suco de laranja.

Os outros riram como focas amestradas. Internamente Michel ria também, mas teria que aguardar o resultado daquilo antes que pudesse comemorar.

— Tá fazendo o que aqui, bichinha? Cai fora! — Falou Jorjão, ameaçando-o com um pontapé.

Michel afastou-se rapidamente. Já tinha concluído o que pretendia e só precisava aguardar o estrago que aquela mistura faria no estômago daqueles infelizes.

— Deu tudo certo? – Perguntou um dos seus amigos quando ele se aproximou.

— Deu. Eles tomaram tudo até a última gota. Agora é só esperar para o resultado.

— Quanto tempo demora?

— Não sei, mas não deve demorar. Eu coloquei uma dose pra cavalo em cada um dos copos.

— Caraca! Espero que isso não mate aqueles idiotas.

— Tô nem aí. — Respondeu Michel, surpreendendo-se com a própria frieza.

Antes não sabia ser capaz de tanto ódio. De repente percebeu que estava no limite do que poderia suportar e, a partir disso, o que restava era o pior de si mesmo. Um lado obscuro que não desconfiava existir e muito menos manifestar.

De repente, ele sentiu-se mal. Depois de dar uma desculpa, Michel correu para o banheiro e trancou-se, antes que a náusea que lhe acometia fizesse seu estrago na frente de seus camaradas. Depois chorou copiosamente, como há muito não acontecia.

O sinal do fim do recreio ecoou no pátio. Era o momento de voltar para a sala de aula. Era onde, esperava, tudo iria acontecer. Felizmente, seu grupo ficava sentado próximo à porta da sala e isso poderia ser útil para o caso de ser necessária uma retirada estratégica.

— Vamos. Alea jacta est. — Disse Michel, mal contendo sua ansiedade.

— O que você disse? — Perguntou um dos garotos.

— É latim, bobão. Quer dizer “A sorte está lançada”. — Respondeu outro.

Logo depois que eles entraram na sala, o inimigo número um de Michel também entrou. Os demais membros daquela gangue estudavam em outra turma. Ao passar por Michel, Jorjão lhe deu um peteleco na orelha.

— Tá na minha mira, moleque. Fica esperto.

Com a orelha ardendo, Michel se absteve de qualquer reação. Logo teria a sua vingança e ele saberia esperar por isso.

O professor entrou na sala de aula e o burburinho logo cessou. Era dia de prova oral de biologia e ele era conhecido pelo rigor nas suas avaliações. Até mesmo os alunos mais turbulentos o temiam e evitavam incorrer na sua ira.

— Hoje faremos a prova oral do bimestre. Vocês foram avisados com bastante antecedência e tiveram muito tempo para estudar. Então eu espero que me façam feliz hoje e me mostrem que não perdi meu precioso tempo com essa turma. A prova constará de quatro questões e terá peso dois na avaliação do bimestre.

Após essa introdução não muito animadora para a maioria dos alunos daquela turma, o professor pegou um saquinho de plástico, remexeu o conteúdo e chamou uma aluna que sentava logo à sua frente.

— A chamada será em ordem aleatória. Por favor, pegue um dos rolinhos de papel que está neste saco.

A garota fez o que o professor pediu e lhe entregou o papel. Um aluno que sentava no fundo da sala foi chamado para frente. Das quatro questões ele conseguiu responder duas e voltou para sua carteira com uma expressão aliviada. Trinta minutos depois, a maior parte dos alunos já havia sido chamada. Michel estava entre eles e, quando estava na frente respondendo às questões formuladas pelo professor, aproveitou para ver o estado de Jorjão. A mistura que colocou no suco de laranja já devia ter surtido efeito, mas o brutamonte não aparentava sentir nada.

Michel terminou sua prova oral e o professor estendeu o saco para ele chamar o próximo aluno. Ele estava frustrado e, nem mesmo o fato de ter respondido facilmente todas as questões, o deixou muito animado.

— Jorjão. — Chamou o professor. — É a sua vez.

Quando Jorjão levantou-se e andou para frente da sala, Michel percebeu que seus passos eram incertos. Alguma coisa estava acontecendo com ele.

— Primeira pergunta. — Anunciou o professor. — Qual a função da mitocôndria na célula?

Ao invés de responder à pergunta, Jorjão soltou um ruído flatulento e o característico cheiro nauseabundo se espalhou rapidamente.

— Credo! — Exclamou o professor recuando. — Você está bem?

Não houve resposta para a pergunta. Jorjão se esvaía nas calças, num processo que parecia não ter fim.

— Olha só... O Jorjão tá se cagando todo. — Gritou um dos alunos.

Constrangido, o brutamonte procurou Michel com o olhar furioso. Ele havia se lembrado do suco de laranja e compreendeu que havia caído numa cilada. Tentou avançar em sua direção, mas um novo espasmo o conteve.

Michel aproveitou do momento em que as atenções estavam voltadas para Jorjão. Evadiu-se discretamente da sala de aula e seguiu para a biblioteca.

. Com o coração disparado, ele procurou a sua mesa preferida, que ficava num canto e quase oculta por uma estante.

— Dia difícil? — Perguntou uma voz conhecida atrás de si, assim que ele sentou.

Ele se virou rapidamente e deu de cara com Gabriela segurando um livro.

— Gabi? O que faz aqui? Pensei que tinha pegado uma suspensão.

— E peguei. Mas me deram um trabalho para fazer, como parte do castigo. Agora me diz por que está tão agitado?

— Peguei o Jorjão e sua turma.

— Pegou? — Ela arqueou a sobrancelha numa expressão cômica que traduzia incredulidade. — Conta essa história direito.

— Na verdade, só vi o que aconteceu com o Jorjão, mas o mesmo deve ter acontecido com o restante daquele bando de idiotas.

Encontrar Gabriela foi inesperado, mas era tudo o que ele precisava para se acalmar. Michel então contou o plano de vingança que tinha colocado em prática. No começo as palavras saíam aos tropeços, mas logo se tornou uma narrativa fluente e entusiasmada.

— Caraca! Isso foi sinistro. — Exclamou Gabriela rindo. — Daria tudo para ter assistido.

— É... Foi pena você não ter visto.

— Tudo bem. De qualquer modo foi bom ver que você soube se virar sozinho. Os últimos dias também não foram muito fáceis para mim.

Ele lembrou o que tinha acontecido com ela, mas evitou falar diretamente sobre isso. Conhecia Gabriela e sabia que ela tinha sua própria maneira de lidar com as adversidades.

— Eu sei. Essas coisas me fazem pensar que a vida é muito difícil.

— Quando se sente assim, o que você faz? – Perguntou ela, com um interesse especial sobre aquele assunto.

— Fico me imaginando em outro lugar, vivendo outra vida.

— Como naquele videogame?

— Mais ou menos. Já pensou como seria legal ter poderes mágicos e viver uma grande aventura?

— Já. Acho que vivo pensando nisso. — Ela respondeu.

— Pena que isso não seja possível, mas pelo menos temos aquele videogame. A gente podia jogar hoje, depois do jantar.

— Não vai dar. Minha mãe me deixou de castigo e só vou poder jogar no domingo.

— Pena. Eu queria voltar a usar aquele personagem, Bullit. Acho que vou aprender algumas coisas com ele.

 — Eu acho que ainda não encontrei um personagem que me agradasse totalmente, mas vou experimentar a princesa guerreira. Acho que é mais a minha cara.

A realidade pode não ser muito atraente quando se é adolescente num mundo opressivo e cheio de contradições. Gabriela e Michel não estavam imunes a esse tipo de pensamento e seria inevitável pensar em Az’Hur. Talvez fosse um lugar melhor para se viver, mesmo com o demônio e toda sua violência.


 

 

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