Tuesday, June 23, 2020

Zaphir - A Guerra dos Magos - Capítulo VIII

Eles ficaram um longo tempo olhando a tela do computador. Pareciam hesitar mais uma vez. O ambiente virtual daquele RPG se mostrava cada vez mais envolvente e sedutor a cada fase, de tal modo que a própria realidade parecia ainda mais sem graça, à medida que iam avançando. É verdade que os acontecimentos dos últimos dias não haviam colaborado muito para que essa percepção negativa da vida houvesse mudado. Contudo, os garotos tinham consciência de que um simulador nunca substituiria a experiência real, por mais desinteressante que ela pudesse se tornar ao longo de suas vidas. A questão que se insinuava em suas mentes era para onde a experiência virtual os levaria e como isso os afetaria, depois que a imersão total naquele jogo se completasse. Naturalmente, o que lhes ocorria não era um pensamento claro e articulado sobre esse dilema. Parecia mais um alerta intuitivo, que se insinuava em seus pensamentos a respeito do jogo.

— Pronta? — Perguntou Michel, após colocar o DVD na gaveta do leitor ótico. Gabriela aquiesceu com o olhar e ele empurrou o disco.

Logo após o computador inicializar o jogo houve uma mudança repentina na luz ambiente. Embora ainda fosse dia e as cortinas estivessem abertas, o quarto escureceu e um vento gelado surgiu do nada, como se um poderoso ar condicionado tivesse sido acionado.

— Tem alguma coisa errada! — Exclamou Gabriela. De repente, ela estava com um terrível pressentimento.

— Que frio! — Disse Michel, ao constatar que as janelas estavam fechadas. — De onde tá vindo esse vento?

— N-não sei... Acho melhor desligar essa coisa. — Respondeu ela, tentando fechar o programa.

O vento aumentou e um redemoinho surgiu e sugou as roupas espalhadas pelo quarto. Gabriela lembrou vagamente que deveria ter arrumado aquela bagunça no dia anterior. Foi só um pensamento passageiro. Apenas o bastante para ela sentir-se estúpida em preocupar-se com suas obrigações naquele momento. Na verdade, era o que ela gostaria de fazer: acordar daquele pesadelo e arrumar o quarto.

— Olha o espelho!

Ela seguiu o olhar apavorado de Michel e viu a superfície do espelho se tornar opaca e deformar-se como um lago agitado pelo vento. Com o canto dos olhos Gabriela percebeu que os móveis pareciam também se deformar e afastarem-se deles. A impressão que tinha era que o quarto estava se tornando maior.

— Desligue isso! — Pediu Michel em pânico.

— Não consigo! Puxe a tomada.

Aos tropeços, ele procurou a tomada e, incrédulo, percebeu que o cabo não estava conectado a lugar nenhum. Não havia como desligar o computador, nem compreender como ele estava funcionando. No monitor, o demônio gargalhou e começou a dançar de modo grotesco e assustador.

— Não pode mais voltar atrás, minha criança. O jogo começou pela magia e não há como parar. 

 O vento aumentou e formou um vórtice que os levantou do chão, fazendo-os rodopiar sem controle. Era uma sensação de desamparo nova e desagradável. A gargalhada do demônio foi a última coisa que ouviram antes de serem tragados pelo espelho. Quase imediatamente, o quarto voltou ao normal.

Sugados pelo vórtice de natureza mística, Gabriela e Michel tentaram dar as mãos enquanto rodopiavam num vazio escuro e gelado, mas uma força invisível os afastava um do outro cada vez mais. Sem pontos de referência, eles tinham uma apavorante sensação de impotência, que parecia não ter fim.

Então, quando a tensão já se tornava insuportável, tudo acabou. Gabriela sentia-se enjoada e com receio de abrir os olhos. Poderia apostar toda a mesada de que não estava no quarto, a julgar pelo cheiro do ar, úmido e putrefato, que respirava.

— Michel?! — Chamou cautelosa. Nenhuma resposta. Abriu os olhos e percebeu que estava na margem de um pântano. Isso explicava a origem do mau cheiro. Chamou por Michel novamente, mas ele não respondeu. Ela estava só.

Confusa, Gabriela olhou onde estava. A vegetação que amorteceu sua queda era uma espécie de capim com caules longos e grossos. Suas folhas largas apresentavam uma coloração azulada, assim como todo o resto da vegetação rasteira. As árvores, por outro lado, tinham uma variação maior de tons, que iam de um azul pálido ao mais escuro.

Ainda um pouco zonza, Gabriela sentia-se dolorida, mas aparentemente não tinha sofrido nenhuma fratura. Após se refazer, ela saiu à procura de Michel.

De repente, um leve ruído vindo de trás de uma árvore a deixou em estado de alerta. Lidar com surpresas naquele nível de imersão não era exatamente o que Gabriela esperava de um RPG. Ela ainda não sabia o que tinha acontecido, mas uma hipótese praticamente inacreditável tomava forma em seu inconsciente.

— Quem está aí?

Não houve resposta, mas o ruído se repetiu. Gabriela respirou fundo. Olhou em volta e decidiu contornar a árvore. Por precaução, afastou-se um pouco mais, a fim de evitar uma posição que lhe deixasse mais vulnerável.

Quando começou contornar a árvore, ela viu a sombra. Alguma coisa enorme, de orelhas pontudas, se ocultava atrás do tronco da árvore.

— Quem está aí? — Ela perguntou novamente e pegou uma pedra para se defender. De repente um cão enorme surgiu por detrás da árvore e a fitou com grandes olhos amarelados.

O animal viu a pedra e rosnou para ela, mas permaneceu onde estava. Eles se fitaram por alguns segundos, como se examinassem o grau de ameaça que um representava para o outro. Sentindo que precisava tomar a iniciativa, Gabriela tentou falar com o cão. Estava apavorada demais para pensar em outra coisa.

— Amigo?

O animal permaneceu um momento impassível. Depois se sentou sobre as patas traseiras, como se ainda não houvesse decidido se ela era uma presa ou algo para temer. Para sair daquele impasse, a menina se arriscou e soltou a pedra. Em resposta o cão pegou algo no chão e se aproximou devagar.

— O que é isso?

Cautelosamente ela pegou da boca do animal o que parecia ser uma pequena bolsa de couro. Gabriela a abriu e encontrou um pedaço de cristal de coloração vermelha, que tinha um formato hexagonal e era perfeitamente lapidado. Ao ser tocada a pedra brilhou intensamente como se emitisse sua própria luz.

— Que linda! — Exclamou, impressionada com o brilho avermelhado, que parecia querer fundir-se com a ponta de seus dedos. Após hesitar um momento, ela devolveu a pedra à bolsa de couro e a prendeu em seu cinto.

— Pena que não seja real.

O cão latiu e lambeu sua mão. O contato súbito e molhado, embora amigável, a sobressaltou. O animal soltou um breve ganido e recuou. Aliviada, ela soltou o ar preso em seus pulmões.

— Bem... Pelo menos agora já não tô sozinha. — Disse, tomando coragem para afagar a cabeça do animal. — Você bem que poderia me ajudar a encontrar Michel, não poderia?

O cão latiu em resposta, como que assentindo. Ela começou a andar e o animal a seguiu. Depois lhe tomou a dianteira e continuou farejando a relva pelo caminho.

— Parece que você sabe o que está fazendo. — Disse ela, seguindo-o.

Após alguns minutos andando atrás do cão, tudo o que ela conseguia ver era uma paisagem lúgubre, formada por uma vegetação rasteira, que margeava de um lado uma densa floresta e, de outro, a água escura e inerte de um imenso pântano. Vez por outra, sua superfície era ocasionalmente perturbada pelo estouro das bolhas de metano que se desprendiam do fundo lamacento.

— Isto aqui tá parecendo o cenário de “A Bruxa de Blair”. — Disse para o cão, estranhando o som da própria voz, ligeiramente mais grave do que o normal.

Gabriela fez um esforço para dominar a inquietação, provocada mais pelo desaparecimento de Michel do que pela estranha situação em que se encontrava. Sem outra opção, continuou seguindo o cão. O animal, pelo menos, parecia conhecer bem aquele lugar.

Caminharam por alguns minutos e encontraram uma trilha que acompanhava a margem do pântano. Sem nenhuma noção de onde estava ela decidiu seguir por ali. Pelo menos não correria o risco de ficar ainda mais perdida, caso decidisse voltar ao mesmo local. À medida que o tempo passava, ficava mais aflita, sem saber o que havia acontecido com seu companheiro naquela aventura.

— Eu sabia que isso não ia dar certo. — Resmungou sem se dar conta de que estava falando sozinha de novo. — Que outra coisa se poderia esperar daquele saci? Só queria ter a chance de encontra-lo de novo. Ele ia aprender a não se meter comigo, ora se ia.

Frustrada, ela chutou um cascalho e prosseguiu tentando encontrar algum sinal do paradeiro de Michel, sem perceber que o cão tinha ficado subitamente alerta. O animal disparou pela trilha, deixando-a sozinha.

— Ei! Volte aqui, seu vira-lata pulguento.

Sem alternativa ela foi atrás do cão, torcendo para que o animal tivesse encontrado alguma pista do seu amigo. Mais adiante a trilha se estreitava, espremida entre uma enorme rocha e a margem do pântano. Depois fazia uma curva e era interrompida por uma grande árvore caída. Atravessada no caminho, a árvore tinha parte do tronco mergulhado na água escura e malcheirosa.

O cão estava parado e com os olhos fixos no tronco da árvore.

— Ah! Você está aí. O que encontrou? — Perguntou desanimada, ao ver o enorme tronco atravessado na trilha. — Grande! Agora vou ter que contornar pelo mato. O que mais falta acontecer nesta aventura idiota?

— Isto é só o começo, mocinha. — Disse uma voz que lhe soou familiar. — Ainda vai piorar, do seu ponto de vista.

— Quem disse isso? — Perguntou Gabriela, enquanto continha o cão que rosnava furioso. – Quieto!

Para sua surpresa o animal obedeceu e sentou-se, mas ninguém lhe respondeu. De repente ela ouviu um estalo, seguido da queda de um pedaço da casca da árvore. Havia alguém em cima do tronco.

— Quem está aí? Apareça cretino.

— Corajosa hein? Isso é bom, muito bom. Muitas são as provações por que irá passar, minha cara.

— Vai aparecer ou não vai? — Desafiou Gabriela, exasperada.

Uma sombra se movimentou claudicante no alto do tronco.

— Tenha paciência, mocinha. É difícil descer daqui com uma perna só, viu?

— Uma perna só? Icas?

Ele surgiu arrastando-se pelo tronco do lado em que estava Gabriela. Olhou para ela e esboçou o mesmo sorriso torto, com o velho cachimbo fedorento pendente do canto da boca. Era Icas, sem dúvida.

 — Finalmente você chegou. Por que demorou tanto?

Gabriela não respondeu. Desconfiou que estivesse sonhando, mas aconteciam coisas estranhas demais com ela, até para um pesadelo.

— O que você está fazendo aqui? – Perguntou por fim.

— Estava esperando você. Creio que a pergunta que gostaria de fazer é o que você está fazendo aqui, não?

— Este é o meu pesadelo. — Respondeu ela, dando de ombros. Não ia deixar aquele anão esquisito amedronta-la no seu próprio sonho.

— Então pensa que está sonhando... — Retrucou Icas, imitando a forma como ela sacudia os ombros, numa indiferença aparente. — Lamento discordar, mas você não está sonhando.

— Não? E onde estou, então?

— Você está no mundo de Az’Hur, minha cara. De volta ao seu mundo, devo dizer.

— Mundo de Az’Hur? Estou dentro daquele jogo maluco?

— Se prefere pensar assim... É um modo de encarar as coisas.

O DVD do jogo havia sido dado por ele. A lembrança disso deixou-a furiosa e ela avançou em sua direção, disposta a obter algumas respostas. Com um safanão tirou a carapuça de Icas, que soltou um guincho e pulou para trás assustado. A expressão velhaca, que beirava o desdém, havia desaparecido de sua face. No olhar havia apenas o pavor de um animal acuado. Ao ver aquela expressão, Gabriela se perguntou se era real.

— Devolva minha carapuça. — Guinchou.

Indiferente ao tom aflito na voz dele, Gabriela olhou para a carapuça em suas mãos. Aquele trapo lembrava-lhe algo, mas era uma lembrança fugaz.

— Você quer isso?

— É minha. Devolva... Por favor.

— Hum... Acho que não. — Disse ela girando a carapuça nos dedos. — Prefiro você como vejo agora, e desconfio que sua mudança de atitude tenha haver com esse trapo.

Com um movimento súbito Icas fez menção de saltar, na tentativa de recuperar a carapuça. Mas o cão se interpôs entre ele e Gabriela. Um rosnado ameaçador fez o anão recuar.

— Acho que o meu amigo não gosta de você. Por que será?

— Ele é o cão das sombras. Não é amigo de ninguém e é muito perigoso.

— Bem, por alguma razão ele me adotou. Agora você vai responder umas perguntinhas, a menos que queira se entender com o cão.

— Acho que prefiro a primeira opção.

— Pois muito bem, agora as perguntas...

— Depois você me devolve a carapuça? – Interrompeu Icas, tentando tirar partido da situação adversa.

— Talvez. — Respondeu Gabriela, ainda tentando resgatar na memória o que a carapuça lembrava tão vagamente.

O anão já não a olhava nos olhos e parecia teme-la. O cão, por sua vez, olhava fixo para ele e acompanhava atentamente seus movimentos. Gabriela voltou a duvidar da autenticidade daquela demonstração de temor, mas nada disse. Preferia limitar a conversa ao que lhe interessava.

— Que lugar é esse? E como vim parar aqui? — Ela perguntou impaciente.

— Quantas perguntas... — Reagiu Icas de modo evasivo. Sua atitude voltou a ser a mesma de quando ela o viu pela primeira vez, no dia em que entrou naquele sebo em companhia de Michel. Parecia novamente o duende velhaco e dissimulado que conhecera.

— Não enrola. Foi você que nos deu aquele DVD, não foi? Então estamos aqui por sua causa. — Ela acusou. — Você nos trouxe para cá. Por quê?

O saci saltitou ao redor dela, como se procurasse uma resposta satisfatória. O movimento despertou a atenção do Cão das Sombras e o animal rosnou ameaçadoramente, fazendo com que ele parasse.

—... Acho que esse bicho realmente não gosta de mim.

— Começo a pensar que ele deve ter bons motivos para isso.

O Saci riu. Era um riso sorrateiro, como ela já tinha ouvido antes. Era justo pensar que aquela criatura estivesse escondendo algo.

— Agora fiquei magoado. — Ele disse canastrão. — Está bem, minha jovem. Eu mesmo não conheço todos os detalhes, pois não sou deste mundo também, como você já sabe.

— Desembucha de uma vez.

— Pois bem, já que está pedindo com tanta gentileza, eu vou lhe contar. Você veio para este mundo para cumprir uma profecia.

— Eu?

— Sim, você. Há muito tempo, uma profecia menciona sua volta ao mundo de Az’Hur.

— Você quer dizer aqui? Mas eu nunca estive neste lugar.

O saci aproximou-se dela, de tal jeito que o Cão das Sombras rosnou para ele. Entretanto, desta feita, Icas não pareceu se amedrontar e segurou a mão dela. O contato foi inesperado e Gabriela se retraiu, mas não antes de ter sua mente invadida por imagens que evocavam lembranças que não eram suas, mas pareciam estranhamente familiares.

— Esteve sim. — Ele disse. — Mas você não lembra, não é?

— O que você quer dizer com isso? — Ela perguntou quase sem fôlego. Ainda estava abalada com as imagens em sua mente.

— Quero dizer que você viveu neste mundo, numa outra vida. Uma vida que se encerrou bruscamente há treze anos, pela escala de tempo do mundo de onde você veio.

Era difícil acreditar naquilo tudo que ouvia, mas a curiosidade era ainda maior que a dificuldade em admitir aquela história como sendo verdadeira.

— O que aconteceu com... Comigo?

— Você era Zaphira, a princesa de Walka, um pequeno reino que estava sob a ameaça de Antária, o reino dos Magos Celestiais.

— Que maluquice. Mas você ainda não respondeu à pergunta que fiz.

— Eu já ia chegar lá, menina impaciente. Você desapareceu numa batalha com o Grão Mestre da Ordem dos Magos Celestiais, segundo ouvi dizer. Aliás, ele também desapareceu. Logo depois, Mordro, um mago renegado de Antária descobriu uma antiga profecia que falava de sua vida, de sua morte e renascimento em outro mundo. A mesma profecia previu também sua volta ao mundo de Az’Hur. Durante muito tempo, Mordro perscrutou as estrelas em busca de um sinal. Um dia percebeu uma anomalia nas vibrações da barreira mística que há entre Az’Hur e a Terra. Encontrou uma forma de perscrutar o seu mundo e constatou que Zaphira, isto é, você, havia renascido. Ele a encontrou.

— Fala sério! — Ela retrucou, contendo um ataque de riso. Apesar disso, algo lhe dizia que aquele sujeitinho esquisito não estava brincando, de modo que resolveu manter o jogo. — Por que Mordro estava tão interessado em mim?

— Ele foi seu mestre na outra vida — Disse o saci, como se pudesse ler sua mente. — Isso aconteceu depois que Mordro foi banido da Cidade Celestial, por haver se rebelado contra o Grão Mestre e praticado alguns encantos proibidos.

— Encantos proibidos?

— Sim. A ordem dos Magos Celestiais proibia certas práticas, que ele insistia em ignorar. Alguns feitiços arcanos antigos, magia negra... Essas coisas, você sabe. – Respondeu Icas, novamente evasivo.

— Sei?

— Sabe, sim..., mas não lembra, é claro.

Para Gabriela era difícil acreditar em algo tão fantástico, principalmente se comparado à vidinha monótona e sem graça que ela acreditava ter vivido até então. Não que nunca tivesse fantasiado ser uma princesa, ou desejado outra vida, mas aquilo era um pouco demais. Era tudo tão fantasioso, e ao mesmo tempo tão impressionante, que ela quase esqueceu que ainda havia lacunas no relato do saci, que precisavam ser esclarecidas.

— Por que esse mago tem tanto interesse nessa profecia?

O saci deu de ombros

— Zaphira era sua aliada e Mordro teria muito a ganhar com a volta da princesa guerreira.

Aquilo era uma maluquice, mas ela decidiu continuar dando corda ao saci. Precisava saber mais.

— Como você se envolveu nisso tudo?

— Para voltar às minhas origens. Eu nem sempre fui o que você está vendo e Mordro prometeu ajudar-me. Por isso concordei em levar até você o sortilégio que a faria vir para este mundo.

Enquanto o saci falava, Gabriela ficou pensando o quanto ele poderia estar envolvido naqueles acontecimentos estranhos.

— E Michel? Por que ele veio também?

— Isso eu não sei explicar. Era para ter vindo somente você.

Novamente ela tinha a sensação que o saci não estava contando tudo. Começava a pensar que estava envolvida em algo maior do que um simples jogo de RPG. Para desvendar os mistérios daquela estranha aventura, ela percebeu de repente que deveria rever seus conceitos e olhar tudo de outro jeito.


 

Enquanto isso, longe dali, Michel lidava com dificuldades de outra ordem. Ele não sentia  que estivesse em outra realidade, como Gabriela, mas a conexão com seu avatar foi difícil. O elfo jazia inconsciente por entre os escombros de uma velha torre. O corpo estava inerte, em contraste com a mente agitada e ainda envolta nas terríveis sensações da morte do Beron.

O garoto não conseguia entender a razão de sentir tanto a morte do centauro, já que o mesmo tinha sido o avatar escolhido por Gabriela. Chegou a pensar que havia inadvertidamente acionado outro personagem, quando se lembrou do elo místico que Bullit partilhava com Beron. Essa ligação explicava o sentimento de pesar de seu personagem, entremeado pela culpa por ter falhado em proteger a torre. As sensações emanadas do seu avatar eram surpreendentemente intensas, como se ele fosse o próprio elfo, mas sabia que aquilo que estava sentindo era fruto da sua imersão no jogo.

Onde estava Gabriela? Perguntava-se, enquanto lutava para sair da escuridão que teimava em envolve-lo. Ela deveria estar ao seu lado, sentada em frente ao computador. Esforçou-se para manter aquele resquício de consciência, mas sentia-se demasiado cansado e preste a se deixar esvair daquela realidade.

Dias se passaram naquela realidade, enquanto Michel jazia inconsciente, mas quando acordou, a noção de tempo decorrido tinha sido de apenas alguns minutos na escuridão.

 Ainda lutando para permanecer desperto, Michel percebia pensamentos alheios fluindo sem controle em sua mente, como se vivesse uma vida dentro de outra vida. Exausto, ele deixou sua a mente flutuar para além da consciência, em direção da acolhedora escuridão que ficava no limiar da não existência. Ele ainda lutava por se refazer, sem saber que havia um destino a cumprir, para aqueles que ultrapassavam as fronteiras da realidade.

Algum tempo depois, ele abriu os olhos. Seu corpo dolorido repousava sobre um divã. À sua frente, um centauro estendia-lhe uma taça contendo um líquido quente e viscoso. Ele teria dado um pulo assustado, mas estava cansado demais para isso.

— Quem é você? — Conseguiu balbuciar.

— Eu sou Anthar, mestre Bullit. Sou o chefe da guarnição dessa torre. Fomos atacados por um feiticeiro tchala. Não consegue lembrar?

— Não. Isto é, não tô entendendo nada. Não me chamo Bullit e você é um centauro.

— E você é um elfo.

— Elfo? Do que você está falando. Eu sou um garoto. Há quanto tempo estou aqui?

— Há várias noites. Você bateu com a cabeça e, desde então alterna estado de consciência e delírio. Beba isto e se sentirá melhor. — Falou o centauro imperturbável.

Cautelosamente, Michel aspirou aos vapores que se desprendiam do cálice. Tinham um leve odor de canela e vinho, que lhe evocava lembranças de um tempo quase esquecido, na casa de sua avó. Ele lembrou que nunca tinha provado daquela bebida, pois era ainda pequeno. Era um momento bem esquisito para lembrar essas coisas, mas sua memória não obedecia a critérios que pudessem fazer sentido e tinha tendência para fazer associações estranhas.

Depois de aspirar mais uma vez os odores que se desprendiam do cálice, ele sorveu um pequeno gole.

— Isso é bom.

— Sim. Vai tirar suas dores e prepara-lo para ir atrás do demônio.

— Eu? Tá maluco? Eu não vou atrás daquele monstro de jeito nenhum. – Disse Michel, ainda sem entender o que estava se passando.

O centauro olhou para ele impassível. Era preciso ter paciência com essas criaturas elementares.

— Já há relatos de uma chacina cometida contra uma tribo de centauros do norte. — Disse Anthar, por fim.

— Eu sei. Estava lá.

— Estava? — Perguntou o centauro sem compreender.

— Quero dizer... Imaginei que isso fosse acontecer.

— Só os Magos Celestiais têm o poder necessário para conter aquele flagelo, elfo. Você sabe disso, não sabe?

— Eu não sei de nada. — Respondeu Michel com um suspiro exasperado. Pare de me chamar de elfo. Eu sou um garoto e não sei o que estou fazendo aqui. Eu deveria estar no quarto de Gabriela jogando videogame e não dentro do jogo. Isso é uma loucura.

Anthar não simpatizava muito com elfos e outros seres de magia. Para ele, tais criaturas estavam na origem de todos os males que assediavam o mundo de Az’Hur.

— Não compreendo o que você está falando, nem sei que jogo é esse. — Disse o centauro.

Ele saiu do vestíbulo por um instante, voltou com um espelho e o colocou em frente do garoto.

— Se você não é um elfo, então eu não sei o que mais possa ser.

A imagem refletida no espelho era de uma criatura de pele esverdeada, ar bonachão e grandes orelhas pontudas. Era a imagem do personagem que escolhera no início daquele jogo. Sem dúvida não se parecia com ele, mas repetia seus movimentos e expressões faciais com a precisão de um reflexo verdadeiro.

— Caraca! Tô parecendo o Yoda. Como isso foi acontecer?

— Não sei quem é esse tal de Yoda, mas para mim você é Bullit, o elfo. Por agora trate de recuperar-se. A sua missão é difícil.

— E agora, o que vou fazer?

O sentido da pergunta era meramente retórico, mas o centauro não podia perceber isso. Para Michel significava como iria sair daquela enrascada. Aparentemente estava dentro do ambiente virtual daquele jogo e no corpo do seu avatar. Isso já não parecia mais tão divertido. De repente lembrou-se de Gabriela. Ela também havia sido tragada pelo espelho.

— Você sabe onde Gabi está?

— Gabi?

— Sim, uma menina que estava comigo quando...

— Não conheço nenhuma menina, e estamos isolados aqui já por duas estações.

Mais um problema, pensou Michel. Eles deveriam estar juntos, mas parecia não haver nenhuma lógica nos acontecimentos ligados ao jogo. Talvez Gabriela tivesse ido parar em outra fase, se é que ele estava realmente num mundo virtual. Precisava encontrá-la antes de pensar numa saída. Deveria haver uma em algum lugar.

— Se entramos no ambiente do jogo, deve ter uma saída. — Disse para si mesmo.

— Você fala engraçado, Elfo. Diz palavras cujo sentido eu não compreendo. — Disse o centauro olhando para ele. — Procure descansar.

Dito isso o centauro saiu do aposento. Ele não estava mais à vista, mas Michel ainda podia ouvir seus cascos ressoando no corredor.

— Que lugar maluco. Acho que iria gostar daqui se pudesse voltar a ser eu mesmo.

Michel voltou a fitar-se no espelho. A imagem refletida olhou para ele com uma expressão de desgosto.

— Caraca! Que bicho feio!

Ora! Você também não é lá grande coisa.” — Falou uma voz em sua mente.

— Ai! De novo aqueles pensamentos esquisitos. — Disse o garoto, batendo com a mão na própria testa.

Ei! Devagar aí, hein? Você está batendo na minha cabeça.”

— Bullit? É você?

“Quem mais poderia ser? É o meu corpo que você está usando.”

— Como isso é possível?

“Não faço ideia. Mas vou descobrir. Sei que tenho habilidades telepáticas e posso invadir outras mentes, eventualmente. Mas o contrário nunca aconteceu. Isso é ridículo! Agora me diz quem é você e como veio parar dentro de mim.”

— Não faço a menor ideia. Tudo o que sei é que estava experimentando um jogo com Gabi e, de repente, já não estava no quarto e apareci aqui, no meio dessa confusão, e no seu corpo.

A voz de Bullit permaneceu em silêncio, deixando Michel inquieto. Ele já estava se acostumando a dividir suas preocupações com seu avatar.

— Ei! Cadê você?

Quem é Gabi?” — Perguntou o Elfo, sem fazer caso de sua aflição.

— Gabriela. É minha melhor amiga.

“Gabriela!...” Exclamou Bullit com uma reticência que não passou despercebida ao garoto. O elfo parecia querer falar algo mais, mas “silenciou” a comunicação telepática.

— Sumiu de novo! — Exclamou o garoto. Não era fácil falar com o elfo. Mesmo enfiado em sua cabeça ele sumia. Talvez fosse um defeito em alguma linha de comando no programa daquele jogo maluco.

Jogo? Você pensa que está num jogo?” Disse o elfo de repente.

— Como assim? Isso é só um jogo, não é?

“Talvez na realidade de onde você veio. Isso que chama de jogo é um sortilégio e o trouxe para cá. Aqui tudo é real, inclusive a morte.”

—Você está me assustando.

O elfo não fez caso do seu temor. Aparentemente o menino em sua mente desconhecia o motivo de estar ali. Cabia a ele encontrar uma solução e continuou a pensar a respeito do mistério que envolvia a vinda dele para a sua existência. Lembrava-se de um sortilégio feito para alterar algumas probabilidades ligadas ao cumprimento de uma profecia. Isso aconteceu na época em que se descobriu que o manuscrito que a continha havia sido roubado.

“Talvez o que você chama de jogo seja um portal para outro plano de existência, mas o que poderia ter causado isso?” Disse Bullit. “Preciso pensar. Talvez encontrar sua amiga seja a primeira coisa a fazer.

— Então, o que estamos esperando?

“Que você pare de fazer perguntas e comece a andar.”

— Por que eu? O corpo é seu, não é?

“O corpo é meu, mas por alguma razão é você que está no comando dele. Então, ande! E Ande depressa, pois não temos tempo a perder.”

— Andar? Mas em que direção?

“Walka fica para aquele lado. Siga o poente, para além da planície até o rio.”

— Como você sabe que Gabi está em Walka?

“Eu não disse isso, disse? Apenas penso que sua amiga pode estar nas imediações dos pântanos de Walka, como as vibrações místicas parecem indicar. Precisamos nos apressar, pois a roda do destino de vocês já se pôs em movimento.”

— Como assim?

“Você faz perguntas demais, mesmo para um garoto. A fuga do demônio põe a todos nós em perigo e a presença de vocês em Az’Hur parece ter relação com isso.”

Alguns minutos depois, ele estava no lado externo da Torre.

— De que lado é o poente?

“Atrás de você. Agora ande, não temos muito tempo.”

Michel apressou o passo e rumou na direção do pôr do sol. De repente desejou que aquela fase do jogo chegasse ao fim, embora tivesse um pressentimento de que as regras tinham mudado e não haveria outros níveis a cumprir numa sequência crescente de dificuldade, mas uma jornada integral.

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