Wednesday, April 30, 2014

Vitória!



O garoto segurava o taco sobre os ombros com aparente desenvoltura, apesar do seu porte franzino. O boné, com a aba virada para trás, e a expressão atenta no olhar, não demonstravam o receio que sentia em fracassar. Franzino e desajeitado, ele nunca tinha sido muito bom no jogo de taco, mas não queria decepcionar a parceira que estava na outra base. O olhar dela, firme e tranqüilo, longe de acalmá-lo, o deixava mais tenso. Isso tornava ainda mais evidente, a si próprio, o contraste entre a serena confiança que ela demonstrava e a tremedeira que ele sentia nos joelhos.

De repente, ele percebeu que o olhar dela havia se desviado para o lançador. Havia chegado o momento. O anticlímax o fez lançar uma prece silenciosa a todos os deuses que conhecia, mesmo tendo a convicção de que Odin não se importaria com o miserável destino de um simples mortal no jogo de taco.
O lançador deu uma cuspidela para o lado e fez uma cara de mau. Era um garoto forte e agressivo, e estava disposto a arrasá-lo. Ser o melhor amigo da única garota da turma tinha lá seus percalços. Sua inaptidão para o esporte e a popularidade dela, uma atleta privilegiada, tornava incompreensível aos demais a forte amizade entre eles.
A bola veio rápida em sua direção, mas a impressão que tinha era que ela vinha em câmera lenta, como se ele estivesse participando de um filme e o diretor usasse esse recurso para tornar ainda mais evidente a sua atrapalhada atuação. O taco parecia feito de chumbo e ele o moveu com uma lentidão ainda maior do que lhe pareceu o movimento da bola. Ela vinha certeira em direção ao marco de sua base, uma lata de azeite que estava atrás dele. Tinha que rebater a bola, ou perderiam a posse dos tacos. Esse foi o seu último pensamento, antes que o bastão cruzasse o vazio e a bola batesse na lata com um estalo oco e a derrubasse, junto com sua dignidade.
Envergonhado, ele deixou o taco cair no chão, temendo olhar para parceira, enquanto os garotos menores, que assistiam ao jogo, começaram a vaiá-lo.
- Michel é mariquinha! Michel é mariquinha! – Gritavam em coro, rebolando os quadris, imitando o que lhes parecia o jeito de andar das meninas.
- Aí, bobão! Não vai pegar a bola, não? – Perguntou o garoto que a havia lançado. – Vai perder o jogo, mesmo fazendo dupla com a Gabi.
Respirando fundo, ele se afastou.
- Perdedor! – Ouviu, ao virar-se para buscar a bola.
Não foi necessário que ele fosse buscá-la, entretanto. Andando de cabeça baixa, Michel deu de cara com Gabriela, que o olhava sorridente com a bola na mão. Ela puxou seu boné sobre seus olhos e lhe deu um tapinha amigável no queixo.
- Não liga, não! É só um jogo. – Disse-lhe estendo a bola. – Mas ainda podemos ganhar.
Gabriela não parecia estar decepcionada, percebeu com alívio. A péssima jogada que fez já não lhe parecia tão atroz, agora. Como ela conseguia fazer isso? Gabriela o levava do céu ao inferno, e vice-versa, com um simples olhar e umas poucas palavras. Meninas sempre lhe pareciam mágicas e enigmáticas – principalmente se eram bonitas – mas Gabriela não era nenhuma beleza. Na verdade, parecia mais com um garoto do que uma menina. Mas ela sempre lhe pareceu especial. Com um leve suspiro, afastou esses pensamentos, esperando não estar apaixonado. Já tinha problemas demais.
Era sua vez de ser o lançador. Gabriela, postada atrás do rebatedor, gritava-lhe palavras de encorajamento.
- Vai, Michel! Lança essa bola, que ele não é de nada.
Isso ele podia fazer. Lançar a bola não era tão difícil quanto rebatê-la, achava. Fechando um olho, ele mirou na altura da cintura do garoto que o humilhara na jogada anterior. Jogar a bola contra o corpo do rebatedor tornava mais difícil acertá-la corretamente. Se ela resvalasse para trás da base, o adversário perderia a posse do taco e a possibilidade de marcar pontos.
Respirando fundo, Michel lançou a bola com toda a força de que era capaz. O esforço foi tão grande, que o seu cotovelo estalou como um chicote, doendo tanto que ele não chegou a ver o rebatedor pular para o lado, ao mesmo tempo em que brandia o taco. Foi uma batida seca e certeira que mudou a trajetória da bola e ela voltou em sua direção. Instintivamente, Michel ergueu a mão para proteger o rosto.
- Pega! – Gritou Gabriela.
Quando a bola bateu em sua mão direita, ele sentiu o impacto como se fosse atingido pelo próprio taco do adversário. Todavia, apesar da dor, conseguiu segurá-la.
- Vitória! – Gritou ele, com esforço.
Conseguiu! Agarrar a bola rebatida era a jogada final, não importando quantos pontos o adversário tivesse. Não sabia como, mas tinha vencido o jogo, devolvendo a humilhação que havia sofrido momentos antes.
Somente quando tirou os olhos da bola é que percebeu o silêncio à sua volta. Os garotos que o haviam vaiado olhavam para ele, incrédulos. Ainda com a mão dolorida, Michel mandou uma banana para eles. Foi quando viu o rebatedor vindo em sua direção, ainda segurando o taco. O grandalhão era um mal perdedor, e ele, que não se sentia nenhum herói, achou que era o momento de uma retirada estratégica. Mentalmente traçou uma rota de fuga, mas não foi necessário sair correndo. O rebatedor não tinha dado mais que cinco passos, quando foi atingido na cabeça por uma lata de azeite. Não foi um grande estrago, pois a lata estava vazia. Mas aquilo era um recado, e ele sabia de quem. Voltou-se e olhou para Gabriela, irritado.
- E aí? – Intimou ela, com as mãos na cintura.
O rebatedor devolveu-lhe o olhar de desafio, mas não se moveu. Já tinha tentado enfrentá-la em outra ocasião, e o resultado foi um olho roxo e a vergonha por apanhar de uma garota. O Constrangimento só não foi maior porque Gabriela era mais que uma menina. Ela era um deles, e todos sabiam disso. E como se não bastasse, sempre tinha toda a turma a seu favor. Aquele bando de pirralhos comia na sua mão, e a seguiam como cachorrinhos. Após alguns segundos, que para Michel pareceram uma eternidade, o rebatedor largou o taco e saiu do campinho sob uma vaia ensurdecedora.
- Jorjão é mariquinha! Jorjão é mariquinhaaa! Dá uma de machão, mas tem medo de menina! – Gritaram em coro, até que ele sumiu atrás da cerca de tábuas que circundava o terreno baldio onde eles costumavam jogar.
Michel respirou aliviado, embora estivesse constrangido por ter sido defendido por Gabriela. Sua reputação entre os garotos, que já não era grande coisa, ia sumir de vez.
- Você não precisava ter se metido. – Protestou ele, sem muita convicção, ao vê-la
aproximar-se.
- Claro que não! – Respondeu ela, com veemência.
Ele olhou firma para ela a procura de algum traço de ironia nas suas palavras, mas nada encontrou além do seu costumeiro olhar, firme e resoluto.
- Mas somos parceiros, não somos?
- Sim. – Respondeu ele, incerto.
- Além disso, você já tinha sido o herói do jogo. Deixe um pouco de glória para mim. – Ela falou, observando a turma se dispersar. Já era final de tarde, e o sol não tardaria a se pôr.
Ele sorriu, lembrando o feito. Jamais conseguiria repeti-lo, mas ninguém precisava saber disso.
- Foi um puta jogo, não foi?
- Foi apenas um jogo. – Respondeu ela, dando de ombros. Estava acostumada com vitórias como aquela. Mas diante de sua expressão magoada, condescendeu.
- Mas ganhamos! – Exclamou Gabriela, dando-lhe um vigoroso tapa nas costas. – Agora vamos procurar a bolinha, para você guardar de lembrança. Onde a largou?
Ele não tinha a mínima idéia. O campinho, atrás da base terminava em um matagal cerrado e, apesar de rasteiro, em alguns locais onde havia pés de mamonas, chegava a atingir dois metros de altura. Pôs-se a procurar, junto com ela, mas não acreditava que pudessem encontrar a bolinha. Já haviam perdido muitas por ali, só recuperadas quando o dono do terreno mandava limpá-lo. Ele, porém, só fazia isso após a prefeitura ameaçá-lo com uma multa severa. Contudo, Gabriela não era de desistir facilmente, e não demorou muito para que soltasse um grito de triunfo.
- Achei! – Exclamou, olhando para uma mancha amarela entre o verde de uma touceira de capim.
Postando-se de quatro, ela afastou a folhagem, com todo o cuidado para não deslocar a bolinha. Num instante, ergueu-se triunfante com ela na mão.
- Tome. – Disse-lhe Gabriela, estendendo a bolinha para ele.
- Mas a bolinha é sua. – Lembrou Michel.
- Tenho outras. Para você esta é especial, não é?
- Acho que sim.
- Fique com ela. – Insistiu a garota. – Agora vamos embora.
- Sim. Já tá anoitecendo. Minha mãe fica p... da vida quando eu me atraso pro jantar.
Ela sorriu. Horário para voltar para casa era uma velha implicância de todas as mães, inclusive da sua.
- Vamos pela rua debaixo, então. – Propôs Gabriela. – Assim cortamos caminho para sua casa.
- Tá. – Respondeu ele, com alívio.
Gabriela não disse mais nada, mas ele sabia o que ela estava pensando e, a contragosto, concordou. Era melhor não correr o risco de encontrar-se sozinho com o Jorjão por algum tempo. O sujeito demoraria a esquecer-se daquele jogo e a afronta que havia sofrido.
Em silêncio, atravessaram a tábua solta na cerca e desceram a rua. Embora nada falassem, ambos sabiam que aquele dia tinha sido para ele o melhor dia do resto de sua vida.

Trecho adaptado do romance Zaphir.

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