Thursday, May 15, 2014

O Sonho



Ele sabia que estava sonhando, mas sentia-se como se estivesse desperto. Tão real parecia a percepção daquele lugar, que poderia jurar que estava acordado, não fosse a profusão de cores berrantes e a textura da paisagem, que parecia uma pintura surrealista. Com uma sensação contínua de perplexidade deparou-se com objetos que conhecia, mas de proporções fora do comum. Semienterrado na areia azul daquele estranho lugar jazia um relógio de bolso gigantesco. Apesar da distância, ele julgou ouvir o tic-tac contínuo e compassado do ponteiro de segundos. O ruído metálico, na sua
imaginação, parecia marcar a linha do tempo de sua vida. Essa última percepção lhe veio com uma sensação de pesar pelo tempo perdido. Isso o fez desejar voltar atrás, para o momento em que começou a jogar aquele RPG. Todavia, o tic-tac silenciou e ele percebeu que o ponteiro de segundos do relógio havia parado, como se o tempo deixasse de fluir. Aquele lugar parecia reagir ao seu estado de espírito e ele imaginou que o silêncio que se seguiu era para confortá-lo. Com efeito, a tristeza que sentia se dissipou e ele passou a perscrutar o lugar com interesse redobrado.
Em todas as direções, para as quais se voltava, havia elementos inusitados na paisagem e ele se sentia dentro de um quadro pintado por um artista tão genial quanto insano. A alguns metros à sua esquerda, jazia um crâneo humano gigantesco, cujas órbitas vazias pareciam querer dar-lhe boas-vindas àquele mundo aparentemente sem nenhum sentido. Entretanto, a mandíbula levemente deslocada para o lado direito num sorriso torto, caçoava de seu espanto, como se tudo ali fosse perfeitamente natural, menos ele próprio.
De repente ele ouviu o estranho farfalhar de asas atrás de si. Voltou-se rapidamente, temendo que estivesse para ser atacado por alguma criatura estranha. Ao invés disso, foi envolvido por milhares de borboletas. Michel ergueu a mão, num gesto instintivo para proteger o rosto, mas isso não foi necessário. As borboletas, embora voejassem muito próximas, não o tocaram. Exceto por uma, que pousou em sua mão.
Ao contrário de quase tudo que via naquele lugar, a borboleta pousada em sua mão tinha um tamanho que poderia ser considerado normal, embora não fosse muito pequena. Contudo, não foi o seu tamanho que intrigou o garoto, mas o aspecto da criatura. Ao vê-la de perto, Michel percebeu que estava segurando uma espécie de borboleta mecânica, que parecia também estudá-lo com muito interesse. Seus olhinhos pareciam diminutas câmeras de vídeo e suas antenas vibravam constantemente, como se estivessem emitindo, ou recebendo, algum tipo de comunicação. Desconcertado com o que parecia ser um exame, ele sacudiu as mãos. As borboletas que o envolviam de repente se dispersaram e se afastaram dele, mas não por esse motivo. À sua frente, um camaleão gigante o olhava com insolente indiferença, como se deparar-se com um garoto atrapalhando sua caçada fosse algo perfeitamente natural. Talvez fosse. Afinal, o que não poderia ser normal naquele lugar, onde tudo parecia fora de contexto e de proporções?
— Acho que atrapalhei sua caçada, né? — Disse o garoto de modo amigável, esperando que o bicho não o considerasse uma alternativa para o almoço.
O Camaleão nada disse, naturalmente. Apenas se voltou em direção contrária com um movimento preguiçoso e bamboleante. Provavelmente ele pensou ser necessário continuar a caça em outro lugar e, lentamente, desapareceu por detrás de uma duna azul.
— Parece que fiquei só. — O garoto disse para si mesmo. Só nesse momento se deu conta que sua voz soava estranha, como se estivesse subindo uma montanha num carro veloz.
Ele olhou ao redor e não encontrou ninguém naquele lugar desolado e triste. Não havia temor nessa constatação, pois de algum modo tinha convicção de que não corria perigo. Afinal tudo era apenas um sonho, apesar de absurdamente real. Talvez pudesse explorá-lo um pouco mais, antes de acordar. Mal teve esse pensamento, viu um ponto se movendo na linha do horizonte. O objeto, embora indistinguível pela distância, estava se aproximando dele. Contudo, sua trajetória parecia errática, quase em zigue-zague. Aquilo durou quase um minuto, quando Michel finalmente pode ver o que se aproximava. Estupefato, ele viu um tubarão alado se aproximando de si. A criatura inusitada era desprovida de asas, mas se comportava no ar como se estivesse na água. A certa distância dele, o tubarão começou voar em círculos cada
vez mais próximos. Confuso e perplexo, Michel percebeu que seria alvo de ataque de um tubarão voador em seu próprio sonho.
— Ele não vai fazer isso. — Disse para si mesmo.
Mal ouviu sua própria voz, percebeu que a criatura interrompeu sua trajetória em círculo e arremeteu em sua direção com a boca escancarada. Não havia mais tempo para fugir e ele apenas pensou em fechar os olhos.
— Não acredito! — Gritou apavorado ao ser sacudido violentamente.
“Acorde garoto!” — Falou Bullit de mau humor, por ter sido acordado por um pesadelo que não era dele.
Ainda ofegante, o garoto abriu os olhos. Estava novamente em cima da carroça. Na verdade, nunca tinha descido dela.

Do Romance Zaphir

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