As pessoas do
círculo mais próximo de Letícia evitavam tocar no assunto, mas intimamente se
perguntavam a razão dela insistir naquela relação. Ela mesma se perguntava isso
algumas vezes, principalmente quando instigada por sua mãe. A resposta sempre
lhe vinha imediata e sem nenhuma dúvida: ela o amava. Daniel não era exatamente
um príncipe encantado, mas tinha suas qualidades, ela dizia para si mesma. Ele até
que era bonito, se ela ignorasse as roupas fora de moda e esquisitas. Era também
engraçado, e sabia fazê-la rir por motivos que sempre a surpreendiam. Sua
inteligência e cultura a encantavam. O
que mais uma garota podia querer? Talvez se fosse um pouco menos desligado e
tivesse uma noção mais apurada de uma noite romântica, ele seria perfeito. Mas
ela sabia que não se pode ter tudo e se conformava.
Aquela manhã
a encontrou assim, enquanto preparava o café, revia as eternas questões que sua
mãe levantava sobre o seu namoro com Daniel.
- Então... Já
marcaram a data? – Perguntou Dona Aurora, a mãe de Letícia, enquanto contava as
gotas do adoçante que caiam na sua xícara.
- Que data,
mãe?
-Como que
data? A do seu casamento é claro.
- Ah! Isso? Não
deu tempo.
-Não deu
tempo? O que vocês estavam fazendo? Não, não me conte.
Letícia
suspirou profundamente. Por mais que amasse sua mãe, Dona Aurora sempre lhe
pareceu difícil de aguentar no início da manhã.
- O que
estávamos fazendo? Estávamos vendo estrelas... Literalmente.
-Daniel
continua com aquela mania de caçar disco-voador?
-Infelizmente!
-Tô falando
alguma mentira? Você vive correndo atrás de Daniel o tempo todo. E o que ele
faz? Sai por aí, procurando disco-voador. Tenha a santa paciência!
- Mamãe! –
Exclamou Letícia, em protesto, mesmo sabendo que não ia adiantar.
Dona Aurora
não era do tipo que podia se conter, principalmente quando se tratava do que
ela entendia ser a felicidade da filha única.
- Minha filha!
Você não poderia ter se apaixonado por um homem normal? Tinha que ser aquele
lunático?
-Chega,
mamãe! É melhor eu ir trabalhar.
-Tá certo. Eu
não falo mais nada. Você nunca me ouve, mesmo.
-Tchau.
-Vai com
Deus. E vê se não bate a porta!
Apesar do
aviso, ela ouviu a porta bater fortemente no batente.
- Meu Deus! Ela
faz isso desde criança e não aprende. – Disse Dona Aurora, para si mesma, enquanto
erguia a xícara. O café frio parecia lhe dizer que havia falado demais.
Do outro lado
da cidade, o início do expediente na repartição pública onde Daniel trabalhava
também não estava muito animador. Algumas pessoas conversavam em um pequeno
grupo no hall de entrada, quando ele entra. Não precisou mais que alguns
segundos para perceber que era o assunto, mas tentou ignorar.
-Chegou o
caçador de ET. – Disse Fábio, um desafeto habitual de Daniel em todas as
ocasiões, no ambiente de trabalho. Mas ele não era o único que implicava com
sua mania por discos voadores.
-Como é que é
Daniel? Já conseguiu um contato de 3º grau com alguma “drag-queen” marciana? –
Provocou Andrade, um puxa-saco habitual de Fábio.
Ele o seguia
como um cachorro servil.
-Para isso,
eu não preciso sair desse escritório. – Disse Daniel com uma ironia fria, numa
referência não muito sutil à amizade de Fábio e Andrade. Normalmente jamais
faria isso, mas já estava farto da maledicência daqueles dois, e resolveu
dar-lhes uma dose do próprio veneno. Eles também eram alvos frequentes de comentários
mordazes de seus colegas de trabalho, e Daniel aproveitou-se disso. O clima
entre eles, que já não era bom, desandou de vez.
- O que você quer
dizer com isso? – Inquiriu Fábio Belicoso.
- Sim.
Explique isso. – Admoestou Andrade.
O chefe da
seção, que até então mantinha-se em silêncio, resolveu intervir, antes que algo
mais sério acontecesse.
- Acho melhor
as meninas se acalmarem, ou vou distribuir suspensão pra todo mundo.
-Eles que
cuidem de suas vidinhas medíocres e me deixem em paz.
- Olha só
quem fala. – Responde Fábio, de forma irônica.
-Calma,
Daniel. Foi apenas uma brincadeira. – Contemporiza Prudêncio. Para ele, aquela
rusga já estava indo longe demais, para um ambiente de trabalho.
- Eu não vou
mais aturar provocações desses imbecis.
- Otário! –
Exclama Fábio, sem desistir de provocar.
Daniel cerra
os punhos, mas Prudêncio o segura.
-Venha
Daniel. - Disse, puxando-o para sua sala.
Daniel se deixou conduzir, mas
Prudêncio sabia que sua irritação ainda está longe de se dissipar. Tudo
indicava que seria um dia daqueles para esquecer. Disfarçadamente afagou seu
estômago. Não queria que sua velha úlcera desse o ar de sua graça. Já tinha
problemas demais naquele dia.
-Por que eles
insistem em fazer de mim o alvo de suas piadinhas idiotas?
-Ah! Não leve
isso a sério. Foi apenas uma brincadeira.
-Brincadeiras
frequentes que me agridem.
Não ia ser
fácil, pensou Prudêncio, mas estava na hora de seu jovem amigo ouvir algumas
verdade.
-Desculpe lhe
falar assim, Daniel. Mas, infelizmente, você mesmo tem procurado essa situação,
com essa sua obsessão por discos-voadores. Pra não falar de outras manias
estranhas.
-Minhas
manias não prejudicam ninguém. Por que não me deixam em paz?
-Porque você
é diferente, talvez. As pessoas têm dificuldade de aceitar qualquer
comportamento que não lhes pareça “normal”.
-Que absurdo!
-Talvez. Mas
você pode evitar esses aborrecimentos deixando de se expor abertamente. Evite
atitudes que possam parecer estranhas. Afinal, ninguém precisa saber o que você
faz nos momentos de folgas.
Já mais
calmo, Daniel assentiu.
-Tá certo.
Bom... Até mais tarde.
-Até.
Daniel saiu
da sala de Prudêncio sentindo uma imensa vontade de falar com Letícia. Precisava
ouvir sua voz. Só assim conseguiria se refazer. Ele ainda não compreendia como
ela conseguia fazer sua vida tão melhor do que realmente era. Parecia algo
mágico.
O que Daniel
não sabia, é que Letícia também precisava de colo. Ela estava aborrecida desde
a conversa com sua mãe. Dona Aurora sabia, como ninguém, puxar os fios de
tensão que apertavam seu jovem coração. Ela desejava ter uma família, mas
Daniel sempre lhe parecera alheio aos seu sonho pequeno-burguês.
O telefone
toca e lhe provoca um sobressalto. Irritada, Letícia tenta ignorar o toque
insistente, mas acaba atendo.
-Alô?
-Oi, querida.
-Oi... O que
você quer? – Ela responde, sem muita paciência ao ouvir sua voz. Preocupada,
ela percebeu que era a primeira vez que isso acontecia.
-Puxa!
Cheguei a ficar com a orelha gelada. Você está bem?
-Desculpe.
Estou um pouco aborrecida, hoje.
Mal acabara
de falar, Letícia teve a impressão de que não estava sendo sincera em seu
pedido de desculpa. Precisava pensar sobre aquilo, pensou. Não, não precisava,
não. Retrucou mentalmente para si mesma. Ele que se danasse.
- Que tal
almoçarmos juntos?
-Olha
Daniel... Acho que nós precisamos conversar, mas esse convite não chegou numa
boa hora.
-Meu dia
também não está sendo fácil. Eu gostaria de ver você.
-Está bem. No
mesmo lugar?
-Sim. Ás
12h30min, ok?
- Tá.
-Um beijo.
-Outro. – Ela
respondeu, sem prestar muita atenção.
Tudo na sua
vida estava ficando sem graça. Precisava fazer alguma coisa sobre isso, mas o
quê. Ela não tinha a menor ideia por onde começar.
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