Para os
desafetos de Daniel na repartição, aquela manhã se arrastava de tal modo, que
parecia não acabar. Para alguns, a pouca disposição para o trabalho se refletia
na percepção do tempo e o resultado disso era um imenso tédio. Sem nada de relevante
para fazer, Fábio e Andrade se ocupavam de seu passatempo predileto: falar dele
pelas costas.
Estavam tão
entretidos na extenuante tarefa de tecer comentários jocosos a respeito do
colega esquisito, que quase não notaram a entrada do chefe na sala.
-Alguém viu o
Daniel? Perguntou Prudêncio, já com o costumeiro arquear de sobrancelhas, ao
ver a ociosidade escancarada.
-Deve estar
longe... Talvez no mundo da lua. – Respondeu Fábio, sempre sarcástico.
-Ou em algum
lugar, onde o homem jamais esteve. – Disse Andrade, se achando muito
espirituoso.
-É melhor
pararem com isso, antes que a coisa engrosse.
-Ora, o que
você quer? O sujeito é todo esquisito, não se mistura com ninguém... – Retrucou
Fábio, belicoso.
-Ainda por
cima quer dar uma de gostoso! – Completou Andrade.
Numa ocasião
como essa, Prudêncio imaginava se um dia seria possível demitir aqueles dois
imbecis. Era só um sonho. Ele sabia que estava de mãos atadas pela legislação,
que protegia a todos indiscriminadamente. Inclusive o mal funcionário.
- Se vocês
conseguissem alcançar o nível dele, talvez não tivessem essa dificuldade de
relacionamento.
- Pô! Essa
doeu. – Falou Andrade.
-Deixem-no em
paz. Ele pode ser estranho, mas não faz mal a ninguém.
- Falando
nisso...
- Lá vem
bomba! – Exclama Prudêncio contrafeito.
- Mas é da
boa. Lembram daquela vez em que foi apresentada a planta do novo prédio? Ele
corrigiu um erro do engenheiro na frente de todo mundo.
- É verdade.
Eu lembro disso. – Falou Andrade. – Como é que um sujeito, que tem apenas o segundo-grau,
pode entender de cálculo estrutural?
- Surpreendente...
De fato, mas é possível. Não há nada de estranho nisso.
- Não? Então
escuta essa. – Insistiu Andrade. - Outro
dia, ele estava lendo um livro. Eu fiquei curioso e perguntei qual era o título.
- E daí?
Muita gente gosta de ler. Se ele não estava lendo em horário de expediente, não
vejo mal nenhum nisso.
- Ele estava
lendo no intervalo do almoço. A questão não é essa. O que me surpreendeu foi o
tipo de leitura. Ele estava lendo um tratado de física quântica.
- Isso não
tem nada demais. – Insistiu Prudêncio, já farto daquela conversa. – Muita gente
aprende matemática apenas porque possui uma aptidão natural para isso. Por que
não física?
-Talvez você
não veja nada de estranho nisso, mas o livro era em alemão.
-Muito
estranho... – Corroborou Fábio. – Agora eu lembro que, outro dia, ele me deu
uma caneta quando eu estava no telefone e precisei fazer uma anotação.
-E o que tem
isso?
- Eu não pedi
a caneta apenas pensei nela.
-Vocês estão
com a imaginação muito fértil. Daqui a pouco vão começar a dizer que o coitado
tem orelhas pontudas.
Fábio e
Andrade aproveitaram a deixa para soltar uma sonora gargalhada.
- Isso é
absolutamente ilógico. – Falou Fábio, entre um acesso de riso e outro.
- Não vai
demorar muito para a Enterprise vir buscar o sujeito. – Retrucou Andrade. Ele
não tinha como saber, mas sua frase era carregada de presságios.
Prudêncio
olhou disfarçadamente para o relógio na parede. Aquela enrolação já tinha
durado demais.
-Chega de conversa
mole! Vão trabalhar, ou desintegro vocês.
- Perigo! –
Disse Fábio, com voz metálica. – Perigo! Perigo! Alienígena hostil se
aproximando.
- Recomendo
uma ação evasiva. – Retrucou Andrade.
Ambos foram para suas mesas, sob o olhar de
Prudêncio. Ele sabia que não aquilo não ia adiantar, mas pelo menos conseguira
acabar com a conversa.
Um pouco
depois do meio-dia, Daniel encontrou-se com Letícia no restaurante. Ele
esperava que o encontro com ela mudasse aquele dia ruim, mas a conversa não
tinha sido boa. Ela estava visivelmente aborrecida, mas se recusou a falar
sobre o que lhe incomodava.
Meia hora mais
tarde eles se despediram, sem que aquele clima estranho se dissipasse. Daniel
voltou para o trabalho pensando no que poderia ter acontecido. Malgrado sua
inabilidade em lidar com as mudanças de humor da namorada, sabia que tinha algo
a ver com isso.
Durante
aquela tarde, resolveu que faria algumas mudanças em sua vida, antes que fosse
tarde demais. Amava Letícia e, por ela, abriria mão de qualquer coisa. Era um
pensamento bonito, mas assim que o teve, se deu conta que nunca lhe tinha
falado isso. Nem mesmo algo parecido. Em sua mente começou a se formar a ideia
de que era um estúpido completo, em tudo que se referia à sua garota e a
relação que tinha com ela.
No caminho
para o escritório já havia tomado algumas resoluções. Se as cumpriria, seria
difícil dizer, mas ele sabia que algo preciso estava em jogo. Precisava mudar.
Isso significava abrir mão de algo importante. Tão importante, que havia
norteado sua vida até ali.
Durante a
tarde, ele tentou convidá-la para jantar, mas Letícia pediu que marcassem para
outro dia, pois não estava se sentindo bem. Daniel percebeu que precisava se
esforçar um pouco mais. Ela sabia ser irredutível, quando se zangava, mas já no
fim do dia ainda não lhe tinha ocorrido nenhuma ideia de como deixá-la mais amistosa
para uma longa conversa sobre suas vidas. Talvez fosse melhor deixar mesmo para
outra ocasião, como ela sugeria. Isso o levou a pensar que ele também precisava
de um tempo para pôr a cabeça em ordem. Sabia que estava procrastinando, mas
realmente não tinha ideia do que fazer.
Tudo o que
lhe ocorreu, ao final do expediente, foi entrar naquela zona de conforto onde
os homens costumam se encontrar. O bar da esquina. Neste caso, o bar se chamava
muito apropriadamente de Pasárgada. Lá, todos se sentiam amigos do rei. O
estabelecimento ficava próximo do escritório, mas poderia ter sido qualquer
outro, desde que os problemas ficassem do lado de fora.
No fim do
dia, quando os escritórios que ficavam próximo encerravam suas atividades, o
Pasárgada costumava lotar de frequentadores sedentos por uma cerveja gelada e
uma boa conversa. Era a primeira onda de um movimento que ia até as primeiras
horas da madrugada.
Quando Daniel
entrou no bar, o burburinho já havia acalmado. Somente alguns dos habituais
frequentadores permaneciam. Eles aguardavam a chegada dos boêmio contumazes.
Aqueles para os quais a noite era sempre uma festa. Prudêncio era um deles.
Solteirão convicto, ele estava no lugar onde todos os solitários se
encontravam, fosse a solidão ocasional ou não. No caso dele era um modo de
vida, e era feliz assim.
Enquanto
arrumava as bolas de bilhar na mesa, ele percebeu Daniel parado na porta. Aos
olho de Prudêncio, o amigo parecia mais perdido que cachorro em dia de mudança.
Isso era reflexo de um dia cheio de aborrecimentos, mas não era nada que um bom
jogo e uma cerveja gelada não pudessem amenizar.
Entre uma
tacada e outra, eles conversam sobre os acontecimentos recentes. Daniel não era
dado a fazer confidências, mas Prudêncio tinha um dom especial para aquele tipo
de conversa. Não que tivesse um interesse especial por assuntos alheios, mas
considerava Daniel um irmão mais novo.
- Então...
Você já pensou a respeito do que eu lhe falei? – Perguntou Prudêncio, depois
que o garçom se afastou.
- Sim. Vou
pedir Letícia em casamento.
Prudêncio
olhou para Daniel sem compreender. Eles nunca haviam falado sobre aquilo.
- Fico feliz
com a novidade, mas não era disso que eu estava falando.
- Tem razão.
Desculpe. É que na minha cabeça tudo está relacionado de alguma forma.
- Não sei se
entendi, mas acho que você está falando em mudança de vida, estou certo?
- Sim... Preciso
de uma vida normal.
- Casar-se
com Letícia é um bom passo. Ela é uma moça sensata e vai ajudar você a
construir uma vida feliz. Mas você sabe que precisará mudar certas coisas em
sua vida, não sabe?
- Sim.
- E o que
pretende fazer a respeito?
Daniel
respirou fundo. Ele não gostava de falar sobre sua inadequação social. Aquilo o
incomodava de tal modo que preferia evitar, mas Prudêncio era um bom amigo. Um
dos poucos que tinha.
- Nunca tive
a intenção de provocar polêmicas, ou incomodar as pessoas com o meu modo de
ser. Jamais pensei que estivesse agredindo os outros por ser um...
- Excêntrico!
- ... Um
pouco diferente. Vou procurar conter algumas atitudes, principalmente em
público. Em outras palavras... Vou esforçar para ser um sujeito “normal”, como
dizia Raul Seixas.
Algo nas
palavras de Daniel não agradou Prudêncio. Soava como o epitáfio de um espírito
inconformista, em favor da mediocridade.
- Sem dúvida,
é uma atitude prudente, mas não exagere. O mundo precisa de pessoas como você. Agora... Quero ver você sair dessa. – Ele
completou, enquanto armava uma sinuca para o amigo.
- Tá valendo
o quê? – Daniel pergunta, depois de um momento olhando para a mesa.
- Hum...
Aquela cerveja artesanal?
- Feito!
A bola branca
dispara pelo feltro da mesa e rebate três vezes, antes de empurrar
delicadamente a bola 8 na caçapa do meio.
- Como fez
isso? – Prudêncio pergunta, de queixo caído.
- Raciocínio
espacial.
- Acho que
você precisa compreender melhor o que significa ser “um sujeito normal”.
- Qualquer um
pode fazer isso... Eu acho.
- É ...
Qualquer um, que seja o Rui Chapéu, ou um maluco como você. Não acredito, perdi
de novo!
-Acontece.
Vamos tomar uma cerveja pra esquecer a mágoa.
- É melhor
mesmo. Garçom!
- Sabe de uma
coisa? – Pergunta Prudêncio, depois de encher o copo de Daniel. Até que, para
um lunático, você é um cara legal.
- Será que
isso foi um elogio?
- Talvez, mas
não vai ficar mal acostumado. Agora me diz como é que um sujeito com tanto
potencial, se limita a uma carreira medíocre no serviço público e se envolve
numa atividade maluca como caçar OVNIS nas horas vagas?
- É uma longa
história.
- Temos a
noite toda.
- Outro dia.
Hoje eu estou treinando para ser um cara normal, esqueceu?
- Está bem.
Mas você fica me devendo, OK?
Antes que
Daniel responda, sua atenção é desviada pelo som da TV, suspensa na parede
atrás do balcão. O Canal sintonizado transmite uma notícia sobre a aparição de
um OVNI.
“Um disco-voador apareceu ontem em uma praia
de Florianópolis. As imagens que estamos mostrando foram feitas por um turista
que estava hospedado no hotel, que fica próximo ao o local onde o OVNI foi
visto. Várias pessoas testemunharam o acontecimento.”
“Eu vi quando ele apareceu de repente em
cima do morro, passou por cima do hotel e sumiu atrás das dunas.”
- Acho que
vou conhecer Florianópolis. – Falou Daniel agitado.
- Vai? E
aquele papo de levar uma vida normal?
- Será a
última vez. Minha despedida.
- Você vai mesmo
atrás dessa história maluca?
- Se não for,
vou passar a vida toda pensando nisso.
- Quando você
vai?
- Agora. Se
dirigir a noite inteira e dormir pela manhã, estarei lá à noite.
-Mas... E o
seu trabalho?
- Eu vou
faltar amanhã. Não tem outro jeito. Agora preciso ir. Garçom?
- Deixe isso
comigo. Eu acho uma loucura, mas se tem que ir...
- Obrigado. –
Disse Daniel, já saindo.
Prudêncio o
acompanha com o olhar, quase sem acreditar que aquilo estivesse acontecendo.
- Que
loucura!
1 comment:
Lovely blog you have
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