Monday, December 12, 2016

Sob o Olhar das Estrelas Cap. 9

Enquanto Daniel e Paulo Botelho almoçavam no restaurante do hotel, Letícia aproveitou o horário de almoço para ler. Sentada num banco da praça que era próxima do escritório onde trabalha, ela tentou concentrar-se na leitura, mas o ruído de crianças brincando num parquinho infantil chamo sua atenção. Ela os fitou com uma expressão sonhadora e, ao mesmo tempo, triste. Já não sentia certeza nos laços que a uniam a Daniel. Os sonhos construídos juntos ao longo dos anos já não pareciam fazer sentido. Havia uma sombra se projetando sobre eles, ela sabia. Talvez, no fundo do coração, ela sempre soubesse que o amor deles havia sido assentado sobre bases muito frágeis. Algo que estava além do que conseguia compreender.
Houve um tempo, talvez alguns momentos, em que julgou conhecer Daniel como a palma de sua mão, tão adoravelmente transparente ele lhe parecia. Havia no seu olhar um brilho quase infantil que a enternecia. Quando o conheceu, ele parecia tão solitário em seu jeito desajeitado de se relacionar com o mundo, que ela sentiu que precisava protegê-lo das pessoas, mas essa sensação durou pouco e foi logo substituída por outra: a de estar, por sua vez, confortavelmente amparada por alguém que a amava e se mostrava mais forte que o mundo que ela conhecia, com todas as suas contradições.

Agora já não tinha a certeza de conhecê-lo como pensava. Não era apenas a forma como havia reagido à notícia de sua gravidez, nem sua estranha mania por discos voadores. Havia algo mais em sua natureza. Uma incongruência sutil no modo como ele agia, como se a sua própria existência não fosse real.
Obstinadamente, Letícia ligava detalhes, que antes não havia percebido, numa colcha de retalhos que teimava em não fazer sentido, mas zombava dela pelos significados que ocultava. Sabia de sua natureza estranha desde que o conhecera, mas não se importava. Talvez fosse isso mesmo que a atraía. Desde menina, pouco ligava para os garotos que não sabiam sonhar algo que não fosse os sonhos de pequeno burguês. O que a afligia eram as mudanças que percebia nele nos últimos dias. Sabia que algo o consumia por dentro, mas sentia-se incapaz de ajudá-lo sem saber o que estava acontecendo. Precisava saber muito mais do que ele talvez estivesse dispostos a falar, mas ela o faria soltar-se. Tinha que conhecer o que lhe ia na alma, mesmo que isso significasse um rompimento definitivo entre eles.
Resoluta, Letícia sentiu-se melhor. Não queria de modo algum ver seu castelo desabar e ficar apenas observando. Se a queda fosse inevitável, que fosse, mas ela queria saber o motivo disso.
Ela olhou novamente para as crianças e, quase sem pensar, acariciou o próprio ventre.
- Seja como for, eu já tenho você. – Disse com um meio sorriso, ainda que triste. De algum modo, sentiu que a vida que já levava consigo, concordava.
Com um longo suspiro, recolheu o livro e consultou o relógio. Precisava voltar ao trabalho.

Quase ao mesmo tempo, como se estivessem conectados, Daniel pensava nela e no filho que estava vindo. Sentia tanto tê-la magoado, sem ter tido a coragem de explicar o verdadeiro motivo de sua reação. Mesmo agora ainda não saberia o que dizer. Por muitos anos perseguiu algo que não compreendia, mas que sabia faltar em sua vida. Era um solitário por natureza, mas seu temperamento esquivo se devia mais à sua inadequação social do que aversão à companhia de outras pessoas. Desde que era uma criança, ainda no orfanato onde crescera, tentava ser aceito. No entanto, suas tentativas de socializar quase sempre esbarravam numa barreira feita de indiferença e descaso, quando não explicitamente hostil. Ele não se sentia bem vindo em lugar nenhum, mas não se queixava. Sabia que de alguma forma era diferente dos outros, mas haveria o dia em que encontraria pessoas como ele. Essa sensação o acompanhou durante toda a sua vida, numa busca que parecia não ter fim.
Então ele encontrou Letícia. Ela não era como ele, mas parecia compreender a dor que tinha e o envolveu com o seu amor incondicional. Daniel ainda se sentia um ser estranho, mas já não estava só. Talvez até pudesse ser feliz assim, mas sentia que deveria continuar sua busca, mesmo sem compreender o que estava procurando. Tudo o que sabia era o fascínio que as estrelas exerciam sobre si. Chegou a pensar que poderia ser um astrônomo, tal era a vontade de contemplar o universo, mas não chegou a fazer nada de concreto para isso. Embora fosse um autodidata brilhante, o máximo que conseguiu foi concluir o segundo grau e, mesmo assim, foi apenas pela necessidade de ter um diploma para conseguir um emprego público. A estabilidade financeira era importante para o que pretendia, embora nunca tenha realmente pensado nisso com a convicção necessária. Ele ainda não sabia o que procurava.
O interesse por discos-voadores veio numa noite estrelada, quando apontou sua luneta para Vênus. O que viu o deixou quase paralisado. Um objeto brilhante se movia logo abaixo do planeta e percorria uma trajetória estranha para um satélite ou estrela cadente. Ele mudava de direção, como se procurasse algo. Fascinado, Daniel o acompanhou enquanto pôde mantê-lo sob o foco.
Desde aquele dia, sua busca parecia ter algum sentido. Finalmente sua vida parecia ter adquirido algum propósito e isso quase o deixou feliz. Durante anos pesquisou o assunto e travou conhecimento com pesquisadores de todo o mundo. Conheceu gente de todo tipo, desde pesquisadores sérios a charlatães e malucos de toda sorte. Então conheceu Letícia e o equilíbrio cósmico de sua existência virou de cabeça para baixo.
Do ponto de vista afetivo, ele nunca havia esperado muito da vida. Acostumara-se a ser um solitário e convivia relativamente bem com a solidão, até que ela surgiu e ele viu que carregava um vazio enorme em sua alma, exatamente do tamanho dela. Junto com sua obsessão por discos-voadores, Letícia tornou-se o centro de sua vida. Sua exuberância afetiva era tal, que ele se sentia quase pleno. Todavia, o mistério de sua origem permanecia e, com ele, as inquietações que carregava dentro de si continuaram a assombrá-lo. É verdade que Letícia tornou suas dores mais brandas, em alguns momentos quase inexistentes, mas elas ainda estavam lá. Com suas garras afiadas, os fantasmas que o atormentavam ainda espreitavam da escuridão, até que os estranhos chegaram. Então ele soube a razão de nunca ter se encaixado em nenhum lugar deste mundo. Ele era um deles.
De repente tudo fez sentido, mas Daniel ainda não conseguiu sentir-se feliz. Onde Letícia e seu filho, que ainda estava por nascer, se encaixavam nisso tudo? Abrir mão de uma existência, para encontrar seu lugar no Universo, iria mantê-lo com sempre viveu: fragmentado, incompleto. O dilema que se avizinhava não parecia ter solução. Seria essa a sua sina? A angústia era tal, que mal ouvia o que Paulo lhe falava. Tudo o que podia pensar é que tinha apenas 48 horas para decidir se deixava a vida na Terra, com tudo que significava para ele, em troca do retorno às suas origens, para junto daqueles que lhe eram semelhantes. 
Saber que Letícia esperava um filho seu, o havia abalado tanto quanto pensar na possibilidade de deixá-la para trás. Depois disso, sentia seu coração definitivamente preso à Terra, mas as estrelas o reclamavam para si ainda com mais força.
- Terra chamando Enterprise, câmbio. – Brincou Paulo com voz anasalada.
- O que você disse? – Ele perguntou confuso.
- Você quer saber o que eu disse agora, ou o que eu falei a meia hora atrás?
- Desculpe.
- Esqueça. Imagino a confusão que está em sua cabeça.
- Multiplique o que você imaginou por mil. – Retrucou Daniel, do seu jeito costumeiro. A mordacidade sempre foi para ele uma ferramenta de defesa num mundo quase sempre hostil, mas naquele momento parecia mais um lamento.
Paulo não riu. Sabia colocar-se no lugar do amigo e perceber o conflito que se armava em sua mente.
- Rapaz! Eu não queria estar no seu lugar agora.
- Nem eu.
A réplica de Daniel teve o dom de fazê-los cair na gargalhada, apesar de tudo. Isso lhe deu a chance de descontrair um pouco, mas o dilema permanecia.
- Já decidiu? – Perguntou Paulo, de repente muito sério.
- Não. O prazo está se esgotando e não sei o que devo fazer.
- Já falou com Letícia à respeito disso?
Daniel abanou a cabeça e soltou um longo suspiro.
- Quando eu ia lhe contar, ela me disse que estava grávida. Aí tive que engolir o que ia dizer. Aquele momento não era bom. Acho que nunca vai ter um momento bom para isso.
- Sim. Ainda mais com um filho a caminho. Mas quer saber? Você tem que dividir o peso disso com ela.
- Já tentei e não consegui.
- Não é disso que estou falando. Não estou dizendo para você comunicar sua decisão para ela, seja qual for. Apenas conte o que está acontecendo, entendeu?
- Acho que sim.
- Letícia é a pessoa mais indicada para discutir com você sobre a decisão que vai tomar. Mas, se me permite, eu vou dar minha opinião. Não, nada de permissão. Vou dar minha opinião de qualquer modo, mesmo que você não queira.
- Eu esperava por isso. – Retrucou Daniel. – Pode falar.
Paulo pigarreou e começou a falar. Estava disposto a esmiuçar todos os aspectos da situação, tendo em mente ajudar Daniel a tomar a decisão mais acertada, ou pelo menos, a menos dolorosa possível.
- Primeiro ponto: você é um ET, sem ofensa. É um alienígena, e como tal, não pertence a este lugar. – Disse Paulo, abrindo os braços. – É um estranho no mundo.
- Obrigado por me lembrar.
- Não agradeça ainda. Tem mais. De alguma forma, você sempre soube disso, não é? Sempre foi o esquisitão que quase todo mundo prefere ignorar. Agora você tem a chance de ir para onde é o seu lugar, em tese.
- Em tese?
- Sim. Você já parou para pensar que pode se sentir um estranho também no mundo onde nasceu? Afinal, nossa querida mãe Terra é o único lugar que você conhece. Talvez seu planeta não seja tudo aquilo que você espera.
- Entendo o que você quer dizer. É possível que essa sensação de estranhamento nunca me abandone, não é?
Paulo deu de ombros. Era difícil falar certas coisas, ele pensou, antes de continuar.
- Algumas pessoas carregam isso dentro de si. Não importa onde estejam, vão continuar com a sensação de que não pertencem ao lugar. Você parece ser uma dessas pessoas.
- Isso é tudo?
- Não. Ainda tem Letícia e o bebê que vai nascer.
- Sim. No fim, eles são tudo o que importa.
- Inclua você nesse “tudo”. Afinal, só você sabe o tamanho de tudo em sua vida.
As palavras de Paulo resumiam bem a situação, mas não tornavam mais fácil sua decisão. Talvez ele estivesse certo num ponto, pelo menos. Letícia deveria saber o que estava acontecendo. Compartilhar com ela era a coisa certa a se fazer. Ele não protelaria mais aquela conversa por nenhuma razão.
Algum tempo depois, despediu-se do amigo e voltou para o trabalho. À noite conversaria com Letícia sobre tudo, ele pensou. Depois lembrou-se de que ela o encontraria no seu apartamento para juntos endereçarem os convites de casamento. Realmente, nunca haveria o momento certo para uma conversa daquelas. Com isso em mente, Daniel voltou a ter dúvida se teria coragem de levar adiante seu propósito.
Ao chegar no escritório, Daniel decidiu que não pensaria mais no assunto durante a tarde. Quanto mais pensava, mais hesitante ficava e isso não era bom. Definitivamente, não era bom. Talvez pudesse arrumar uma nova discussão com Fábio. Isso ajudaria a manter sua mente longe do que realmente o preocupava, pelo menos até o fim do dia.

Alguns quilômetros acima, uma nave extraterrestre pairava silenciosamente no firmamento escuro, aguardando uma decisão que estava por ser tomada. Seus ocupantes não ignoravam o que estava em jogo, mas esperavam que a natureza daquele que vieram buscar se mostrasse forte o bastante para guiá-lo na direção certa, que era juntar-se aos seus iguais.
Diante de um monitor que mostrava o planeta azul abaixo, Sybil mantinha-se em silenciosa expectativa. O resgate de um ser de sua espécie, que havia sido dado como perdido, era um acontecimento especial para ela. Mesmo contra a decisão do conselho que governava seu mundo, ela continuou monitorando aquele quadrante da galáxia. Havia assumido certo risco naquela empreitada, mas tinha a convicção de que estava certa. Após vários ciclos de busca infrutífera, ela captou um sinal fraco, emitido por um dispositivo da astronave acidentada. A transmissão captada por seus instrumentos durou o suficiente para confirmar sua identificação, a presença de sobreviventes e fornecer a localização.
Restava agora esperar a decisão de Daniel. Ele deveria decidir sozinho, sem interferência, como era o costume em seu mundo.
- Daniel já tomou a decisão? – Perguntou Jan, aproximando-se.
- Ainda não. Receio que isso seja muito difícil para ele.
- Espere que ele resolva vir conosco. Daniel tem um grande potencial, que já está se manifestando. O planeta Terra já não é mais lugar para ele, agora.
- Ele já tem consciência disso. – Respondeu Sybil. – Mas esse fato não diminui a dificuldade de abrir mão de sua vida na Terra.
- A decisão é realmente difícil. Este é o mundo que ele conhece. Seus laços afetivos estão aqui.
- Sim, e agora mais ainda. Se os humanos deste mundo não fossem biologicamente compatíveis conosco, talvez certos dilemas não existissem.
Jan preferiu ignorar aquela última observação dela. O que ela disse não lhe parecia muito adequado. Aquilo não o surpreendia de todo. Sybil já tinha se mostrado inadequada em muitas ocasiões. Numa multidão de iguais, onde tudo era programado, vez ou outra surgia alguém que representava um ponto fora da curva. Era o inesperado, num mundo livre de contradições e incertezas.
- Ele ainda tem algumas horas para pensar e decidir se vem conosco. Vamos aguardar.
- Sim. – Respondeu Sybil com voz neutra. A decisão de Daniel, fosse qual fosse, não lhe acarretaria nenhum prejuízo. Sua missão já estava cumprida perante o conselho. Apesar disso, levá-lo de volta ao lar representaria um grande trunfo político para ela. Intimamente, lamentava por não poder levar a mulher com eles. Isso seria demais, até mesmo para ela.
Sem muito o que fazer, Sybil sintonizou um cana de notícias da Terra. Sua missão não se limitava ao resgate de Daniel. Haviam outros assuntos pendentes. Coisas que requeriam igualmente sua atenção, antes que retornassem ao seu mundo.

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