Enquanto Daniel e
Paulo Botelho almoçavam no restaurante do hotel, Letícia aproveitou o horário
de almoço para ler. Sentada num banco da praça que era próxima do escritório
onde trabalha, ela tentou concentrar-se na leitura, mas o ruído de crianças
brincando num parquinho infantil chamo sua atenção. Ela os fitou com uma
expressão sonhadora e, ao mesmo tempo, triste. Já não sentia certeza nos laços
que a uniam a Daniel. Os sonhos construídos juntos ao longo dos anos já não
pareciam fazer sentido. Havia uma sombra se projetando sobre eles, ela sabia.
Talvez, no fundo do coração, ela sempre soubesse que o amor deles havia sido
assentado sobre bases muito frágeis. Algo que estava além do que conseguia
compreender.
Houve um tempo,
talvez alguns momentos, em que julgou conhecer Daniel como a palma de sua mão,
tão adoravelmente transparente ele lhe parecia. Havia no seu olhar um brilho
quase infantil que a enternecia. Quando o conheceu, ele parecia tão solitário
em seu jeito desajeitado de se relacionar com o mundo, que ela sentiu que
precisava protegê-lo das pessoas, mas essa sensação durou pouco e foi logo
substituída por outra: a de estar, por sua vez, confortavelmente amparada por
alguém que a amava e se mostrava mais forte que o mundo que ela conhecia, com
todas as suas contradições.
Agora já não tinha
a certeza de conhecê-lo como pensava. Não era apenas a forma como havia reagido
à notícia de sua gravidez, nem sua estranha mania por discos voadores. Havia
algo mais em sua natureza. Uma incongruência sutil no modo como ele agia, como se
a sua própria existência não fosse real.
Obstinadamente,
Letícia ligava detalhes, que antes não havia percebido, numa colcha de retalhos
que teimava em não fazer sentido, mas zombava dela pelos significados que
ocultava. Sabia de sua natureza estranha desde que o conhecera, mas não se
importava. Talvez fosse isso mesmo que a atraía. Desde menina, pouco ligava
para os garotos que não sabiam sonhar algo que não fosse os sonhos de pequeno
burguês. O que a afligia eram as mudanças que percebia nele nos últimos dias.
Sabia que algo o consumia por dentro, mas sentia-se incapaz de ajudá-lo sem
saber o que estava acontecendo. Precisava saber muito mais do que ele talvez
estivesse dispostos a falar, mas ela o faria soltar-se. Tinha que conhecer o
que lhe ia na alma, mesmo que isso significasse um rompimento definitivo entre
eles.
Resoluta, Letícia
sentiu-se melhor. Não queria de modo algum ver seu castelo desabar e ficar
apenas observando. Se a queda fosse inevitável, que fosse, mas ela queria saber
o motivo disso.
Ela olhou novamente
para as crianças e, quase sem pensar, acariciou o próprio ventre.
- Seja como for, eu
já tenho você. – Disse com um meio sorriso, ainda que triste. De algum modo,
sentiu que a vida que já levava consigo, concordava.
Com um longo
suspiro, recolheu o livro e consultou o relógio. Precisava voltar ao trabalho.
Quase ao mesmo
tempo, como se estivessem conectados, Daniel pensava nela e no filho que estava
vindo. Sentia tanto tê-la magoado, sem ter tido a coragem de explicar o
verdadeiro motivo de sua reação. Mesmo agora ainda não saberia o que dizer. Por
muitos anos perseguiu algo que não compreendia, mas que sabia faltar em sua
vida. Era um solitário por natureza, mas seu temperamento esquivo se devia mais
à sua inadequação social do que aversão à companhia de outras pessoas. Desde
que era uma criança, ainda no orfanato onde crescera, tentava ser aceito. No
entanto, suas tentativas de socializar quase sempre esbarravam numa barreira
feita de indiferença e descaso, quando não explicitamente hostil. Ele não se
sentia bem vindo em lugar nenhum, mas não se queixava. Sabia que de alguma
forma era diferente dos outros, mas haveria o dia em que encontraria pessoas
como ele. Essa sensação o acompanhou durante toda a sua vida, numa busca que
parecia não ter fim.
Então ele encontrou
Letícia. Ela não era como ele, mas parecia compreender a dor que tinha e o
envolveu com o seu amor incondicional. Daniel ainda se sentia um ser estranho,
mas já não estava só. Talvez até pudesse ser feliz assim, mas sentia que
deveria continuar sua busca, mesmo sem compreender o que estava procurando.
Tudo o que sabia era o fascínio que as estrelas exerciam sobre si. Chegou a
pensar que poderia ser um astrônomo, tal era a vontade de contemplar o
universo, mas não chegou a fazer nada de concreto para isso. Embora fosse um
autodidata brilhante, o máximo que conseguiu foi concluir o segundo grau e,
mesmo assim, foi apenas pela necessidade de ter um diploma para conseguir um
emprego público. A estabilidade financeira era importante para o que pretendia,
embora nunca tenha realmente pensado nisso com a convicção necessária. Ele
ainda não sabia o que procurava.
O interesse por
discos-voadores veio numa noite estrelada, quando apontou sua luneta para
Vênus. O que viu o deixou quase paralisado. Um objeto brilhante se movia logo
abaixo do planeta e percorria uma trajetória estranha para um satélite ou
estrela cadente. Ele mudava de direção, como se procurasse algo. Fascinado,
Daniel o acompanhou enquanto pôde mantê-lo sob o foco.
Desde aquele dia,
sua busca parecia ter algum sentido. Finalmente sua vida parecia ter adquirido
algum propósito e isso quase o deixou feliz. Durante anos pesquisou o assunto e
travou conhecimento com pesquisadores de todo o mundo. Conheceu gente de todo
tipo, desde pesquisadores sérios a charlatães e malucos de toda sorte. Então
conheceu Letícia e o equilíbrio cósmico de sua existência virou de cabeça para
baixo.
Do ponto de vista
afetivo, ele nunca havia esperado muito da vida. Acostumara-se a ser um
solitário e convivia relativamente bem com a solidão, até que ela surgiu e ele
viu que carregava um vazio enorme em sua alma, exatamente do tamanho dela.
Junto com sua obsessão por discos-voadores, Letícia tornou-se o centro de sua
vida. Sua exuberância afetiva era tal, que ele se sentia quase pleno. Todavia,
o mistério de sua origem permanecia e, com ele, as inquietações que carregava
dentro de si continuaram a assombrá-lo. É verdade que Letícia tornou suas dores
mais brandas, em alguns momentos quase inexistentes, mas elas ainda estavam lá.
Com suas garras afiadas, os fantasmas que o atormentavam ainda espreitavam da
escuridão, até que os estranhos chegaram. Então ele soube a razão de nunca ter
se encaixado em nenhum lugar deste mundo. Ele era um deles.
De repente tudo fez
sentido, mas Daniel ainda não conseguiu sentir-se feliz. Onde Letícia e seu
filho, que ainda estava por nascer, se encaixavam nisso tudo? Abrir mão de uma
existência, para encontrar seu lugar no Universo, iria mantê-lo com sempre
viveu: fragmentado, incompleto. O dilema que se avizinhava não parecia ter
solução. Seria essa a sua sina? A angústia era tal, que mal ouvia o que Paulo
lhe falava. Tudo o que podia pensar é que tinha apenas 48 horas para decidir se
deixava a vida na Terra, com tudo que significava para ele, em troca do retorno
às suas origens, para junto daqueles que lhe eram semelhantes.
Saber que Letícia
esperava um filho seu, o havia abalado tanto quanto pensar na possibilidade de
deixá-la para trás. Depois disso, sentia seu coração definitivamente preso à
Terra, mas as estrelas o reclamavam para si ainda com mais força.
- Terra chamando
Enterprise, câmbio. – Brincou Paulo com voz anasalada.
- O que você disse?
– Ele perguntou confuso.
- Você quer saber o
que eu disse agora, ou o que eu falei a meia hora atrás?
- Desculpe.
- Esqueça. Imagino
a confusão que está em sua cabeça.
- Multiplique o que
você imaginou por mil. – Retrucou Daniel, do seu jeito costumeiro. A
mordacidade sempre foi para ele uma ferramenta de defesa num mundo quase sempre
hostil, mas naquele momento parecia mais um lamento.
Paulo não riu.
Sabia colocar-se no lugar do amigo e perceber o conflito que se armava em sua
mente.
- Rapaz! Eu não
queria estar no seu lugar agora.
- Nem eu.
A réplica de Daniel
teve o dom de fazê-los cair na gargalhada, apesar de tudo. Isso lhe deu a
chance de descontrair um pouco, mas o dilema permanecia.
- Já decidiu? –
Perguntou Paulo, de repente muito sério.
- Não. O prazo está
se esgotando e não sei o que devo fazer.
- Já falou com
Letícia à respeito disso?
Daniel abanou a
cabeça e soltou um longo suspiro.
- Quando eu ia lhe
contar, ela me disse que estava grávida. Aí tive que engolir o que ia dizer.
Aquele momento não era bom. Acho que nunca vai ter um momento bom para isso.
- Sim. Ainda mais
com um filho a caminho. Mas quer saber? Você tem que dividir o peso disso com
ela.
- Já tentei e não
consegui.
- Não é disso que
estou falando. Não estou dizendo para você comunicar sua decisão para ela, seja
qual for. Apenas conte o que está acontecendo, entendeu?
- Acho que sim.
- Letícia é a
pessoa mais indicada para discutir com você sobre a decisão que vai tomar. Mas,
se me permite, eu vou dar minha opinião. Não, nada de permissão. Vou dar minha
opinião de qualquer modo, mesmo que você não queira.
- Eu esperava por
isso. – Retrucou Daniel. – Pode falar.
Paulo pigarreou e
começou a falar. Estava disposto a esmiuçar todos os aspectos da situação,
tendo em mente ajudar Daniel a tomar a decisão mais acertada, ou pelo menos, a
menos dolorosa possível.
- Primeiro ponto:
você é um ET, sem ofensa. É um alienígena, e como tal, não pertence a este
lugar. – Disse Paulo, abrindo os braços. – É um estranho no mundo.
- Obrigado por me
lembrar.
- Não agradeça
ainda. Tem mais. De alguma forma, você sempre soube disso, não é? Sempre foi o
esquisitão que quase todo mundo prefere ignorar. Agora você tem a chance de ir
para onde é o seu lugar, em tese.
- Em tese?
- Sim. Você já
parou para pensar que pode se sentir um estranho também no mundo onde nasceu?
Afinal, nossa querida mãe Terra é o único lugar que você conhece. Talvez seu
planeta não seja tudo aquilo que você espera.
- Entendo o que
você quer dizer. É possível que essa sensação de estranhamento nunca me
abandone, não é?
Paulo deu de
ombros. Era difícil falar certas coisas, ele pensou, antes de continuar.
- Algumas pessoas
carregam isso dentro de si. Não importa onde estejam, vão continuar com a
sensação de que não pertencem ao lugar. Você parece ser uma dessas pessoas.
- Isso é tudo?
- Não. Ainda tem
Letícia e o bebê que vai nascer.
- Sim. No fim, eles
são tudo o que importa.
- Inclua você nesse
“tudo”. Afinal, só você sabe o tamanho de tudo em sua vida.
As palavras de
Paulo resumiam bem a situação, mas não tornavam mais fácil sua decisão. Talvez
ele estivesse certo num ponto, pelo menos. Letícia deveria saber o que estava
acontecendo. Compartilhar com ela era a coisa certa a se fazer. Ele não
protelaria mais aquela conversa por nenhuma razão.
Algum tempo depois,
despediu-se do amigo e voltou para o trabalho. À noite conversaria com Letícia
sobre tudo, ele pensou. Depois lembrou-se de que ela o encontraria no seu
apartamento para juntos endereçarem os convites de casamento. Realmente, nunca
haveria o momento certo para uma conversa daquelas. Com isso em mente, Daniel
voltou a ter dúvida se teria coragem de levar adiante seu propósito.
Ao chegar no
escritório, Daniel decidiu que não pensaria mais no assunto durante a tarde.
Quanto mais pensava, mais hesitante ficava e isso não era bom. Definitivamente,
não era bom. Talvez pudesse arrumar uma nova discussão com Fábio. Isso ajudaria
a manter sua mente longe do que realmente o preocupava, pelo menos até o fim do
dia.
Alguns quilômetros
acima, uma nave extraterrestre pairava silenciosamente no firmamento escuro,
aguardando uma decisão que estava por ser tomada. Seus ocupantes não ignoravam
o que estava em jogo, mas esperavam que a natureza daquele que vieram buscar se
mostrasse forte o bastante para guiá-lo na direção certa, que era juntar-se aos
seus iguais.
Diante de um
monitor que mostrava o planeta azul abaixo, Sybil mantinha-se em silenciosa
expectativa. O resgate de um ser de sua espécie, que havia sido dado como
perdido, era um acontecimento especial para ela. Mesmo contra a decisão do
conselho que governava seu mundo, ela continuou monitorando aquele quadrante da
galáxia. Havia assumido certo risco naquela empreitada, mas tinha a convicção de
que estava certa. Após vários ciclos de busca infrutífera, ela captou um sinal
fraco, emitido por um dispositivo da astronave acidentada. A transmissão
captada por seus instrumentos durou o suficiente para confirmar sua
identificação, a presença de sobreviventes e fornecer a localização.
Restava agora
esperar a decisão de Daniel. Ele deveria decidir sozinho, sem interferência,
como era o costume em seu mundo.
- Daniel
já tomou a decisão? – Perguntou Jan, aproximando-se.
-
Ainda não. Receio que isso seja muito difícil para ele.
-
Espere que ele resolva vir conosco. Daniel tem um grande potencial, que já está
se manifestando. O planeta Terra já não é mais lugar para ele, agora.
-
Ele já tem consciência disso. – Respondeu Sybil. – Mas esse fato não diminui a
dificuldade de abrir mão de sua vida na Terra.
-
A decisão é realmente difícil. Este é o mundo que ele conhece. Seus laços
afetivos estão aqui.
-
Sim, e agora mais ainda. Se os humanos deste mundo não fossem biologicamente
compatíveis conosco, talvez certos dilemas não existissem.
Jan
preferiu ignorar aquela última observação dela. O que ela disse não lhe parecia
muito adequado. Aquilo não o surpreendia de todo. Sybil já tinha se mostrado
inadequada em muitas ocasiões. Numa multidão de iguais, onde tudo era
programado, vez ou outra surgia alguém que representava um ponto fora da curva.
Era o inesperado, num mundo livre de contradições e incertezas.
-
Ele ainda tem algumas horas para pensar e decidir se vem conosco. Vamos
aguardar.
-
Sim. – Respondeu Sybil com voz neutra. A decisão de Daniel, fosse qual fosse,
não lhe acarretaria nenhum prejuízo. Sua missão já estava cumprida perante o
conselho. Apesar disso, levá-lo de volta ao lar representaria um grande trunfo
político para ela. Intimamente, lamentava por não poder levar a mulher com
eles. Isso seria demais, até mesmo para ela.
Sem
muito o que fazer, Sybil sintonizou um cana de notícias da Terra. Sua missão
não se limitava ao resgate de Daniel. Haviam outros assuntos pendentes. Coisas
que requeriam igualmente sua atenção, antes que retornassem ao seu mundo.
No comments:
Post a Comment