Sunday, July 19, 2020

Lírio e a bruxa

Em meados da década de 60, havia em Florianópolis um sujeito que se tornou uma lenda entre os malandros da cidade, por conta do seu sucesso com as mulheres. Não tinha pra ninguém: onde houvesse um rabo de saia com os hormônios em ebulição, lá estava o Lírio fazendo a festa. Mas aquilo não lhe subia à cabeça. Havia algo que o atormentava em sua decantada virilidade. Ninguém sabia, mas a fama de garanhão que o acompanhava, embora justa e merecida, tinha uma mácula. Algo que ele escondia tanto quanto possível do implacável julgamento da malta invejosa. Ele temia, sobretudo, o desprezo que adviria e o acompanharia no ostracismo a que certamente seria condenado

Algumas vezes, o risco de ser descoberto o deixava prostrado, com uma depressão que parecia não ter fim. Isso aconteceu naquela segunda-feira, em pleno carnaval. Ele estava com Deoclésio, velho parceiro de farras, no esquenta do bar do Nino. Apesar de toda aquela animação, Lírio se mostrava ausente e desanimado.

 — O estrupício! —  Exclamou Deoclésio, incrédulo. — Tu não viste a loura te dando bola, istepô?

— Onde?

Seguindo o gesto de Deoclésio, que apontava meio que disfarçando, lírio viu a garota sorrindo para ele do outro lado do salão.

— Ah! tá!

— Não acredito! Parece que tu só gostas de mulher feia.

Deoclésio jamais poderia imaginar o quão perto estava da verdade. Por alguma razão, que só os deuses poderiam explicar, o ímpeto de garanhão do seu amigo de farras só se manifestava com mulheres feias. Quanto mais feia fosse a mulher, mais ele se empenhava em conquistar seus favores. E tinha ainda outro detalhe. Lírio adorava mulher de pés grandes. Quando descobria que o seu objeto de desejo calçava mais de 40, ia à loucura. Já com as mulheres bonitas, ele sentia uma indiferença atroz do seu velho companheiro de batalhas. Não havia nada que acordasse o, antes, impávido colosso.

Sujeito simpático, e de grande traquejo social, ele era bastante popular nas rodas de samba nos botequins e gafieiras. Nessas ocasiões, podia ser visto rodeado de belas mulheres, mas sempre terminava a noite nos braços de uma mocreia qualquer. Essa era a vida do Lírio. E seria uma vida boa, se ele se conformasse com o que tinha. Mas, no fundo da alma, o gaiato se ressentia e sonhava com o dia em que teria nos braços uma daquelas lindas meninas que frequentavam as boates do Lira Tênis Clube e do Paineiras, nas noites de verão. Disposto a mudar sua vida, Lírio foi à luta. Num baile de terça-feira do clube Limoense, ele reencontrou a loura. Seu nome era Aline, recém-chegada de Blumenau. A atração foi mútua e eles dançaram a noite inteira, com alguns amassos dissimulados, nos intervalos. Todavia, a moça era de respeito e não deu mole para o incorrigível conquistador.

Experiente no trato com as mulheres, Lírio logo percebeu que devia refrear seu temperamento ardoroso e esmerar-se no galante papel de um cavalheiro cheio de boas intenções. Apesar dessas restrições iniciais, ou por causa delas, começaram a namorar várias semanas depois daquele primeiro encontro. Depois de algum tempo, ele já frequentava a casa dos pais de Aline, e ela já não se mostrava tão puritana quando eles trocavam carícias na parte escura da varanda da casa dela, onde tinha até uma lâmpada providencialmente queimada. Tudo parecia perfeito. Contudo, Lírio vivia apavorado com o momento em que teria que fazer jus à fama de garanhão, que granjeara durante tanto tempo. E, se dependesse do entusiasmo da moça, esse momento não tardaria a chegar.

As carícias foram se tornando mais ousadas e ela mais exigente. Lírio, por outro lado, desconversava quando as coisas se tornavam mais quentes e ocultava suas dificuldades sob o manto do respeito que a ela dedicava. Aquele era um bom pretexto, mas não ia durar muito. Ele precisava encontrar uma forma de superar a ausência de reação que lhe afligia nos momentos mais calorosos. Pesquisando discretamente, ouviu falar numa benzedeira que vivia na costa da Lagoa da Conceição, e que sabia preparar uma garrafada que era tiro e queda para o problema que o afligia. A queda ele dispensava, naturalmente, mas foi procurar a mulher.

Ocorre que a benzedeira era uma bruxa, na verdade. Uma das últimas feiticeiras da ilha de Florianópolis, que ainda resistia ao impacto negativo dessa tal pós-modernidade. Ela ainda era procurada por qualquer um interessado em se livrar de verrugas ou se proteger do mau-olhado dos invejosos. Também era capaz de fazer poções para os mais diversos fins.

De aspecto grotesco, a bruxa era conhecida como a mulher mais feia da Costa da Lagoa. Até mesmo para Lírio, ela era uma empreitada difícil de encarar. Felizmente, ele a procurou por outros motivos. Se ela iria ajudá-lo, ele não saberia dizer, quando a encontrou em certa noite sem luar.

Após ouvir uma atrapalhada explicação sobre o problema de um suposto amigo, a tal benzedeira lhe propôs um trato. A bruxa resolveria o problema relatado por ele e, em troca, Lírio deveria passar uma noite de amor com ela.

O garanhão pensou, pensou e, depois de muito pensar, topou a parada. Encarar aquele tribufu não seria assim tão difícil, com a sua já vasta experiência no campo das mulheres feias e mal amadas.

— Mas isso é garantido, mesmo? — Ainda perguntou desconfiado.

A criatura soltou uma gargalhada esganiçada.

— Nada é garantido nessa vida, moço bunito. Mas se não der certo, tu não paga. Vai topar ou correr?

— Eu topo.

Depois que Lírio confirmou sua disposição de aceitar a proposta, ela se virou para sua mesa repleta de frascos e potes. Em pouco mais de uma hora, a bruxa preparou uma beberagem para ele, composta de vinho, ovo de pata, amendoim e algumas ervas estranhas de que Lírio nunca tinha ouvido falar. O resultado daquela mistura foi um litro de um líquido marrom escuro, de aspecto não muito atraente.  

Ao fim, ela entregou-lhe a garrafada com instruções para que ele a enterrasse numa noite de lua cheia e a deixasse de repouso por três dias. Após isso, Lírio deveria tomar um cálice daquela beberagem todos os dias antes de dormir. Quando o conteúdo da garrafa tivesse acabado, seus problemas estariam resolvidos.

A bruxa estendeu a garrafa para ele, mas não a soltou de imediato. Antes, segurou em suas mãos e o encarou com os olhos gulosos de um jacaré.

— Na próxima lua cheia, tu volta aqui, para cumprir tua parte no trato.

— Sim. — Ele balbuciou, já arrependido.

Alguns dias depois que Lírio começou aquele “tratamento”, seu encontro com Aline foi uma gloriosa batalha entre as pedras da praia de Itaguaçu. Lírio sentiu-se livre das amarras que o tinham atormentado a vida inteira. Foi assim, nesse estado de euforia, que Aline o encontrou certo dia. Estava entusiasmada com a possibilidade de ficar sozinha com ele em sua casa, em razão de seus pais irem para Blumenau no fim de semana. Era a oportunidade que eles tanto desejavam, segundo a moça. Todavia, ao regalar-se nos braços da mulher tão sonhada, ele se esqueceu do que havia prometido e não voltou ao reduto da bruxa para cumprir sua parte no trato.

Lírio, que já estava ficando confiante na eficácia da garrafada, de repente ficou inseguro novamente e ficou apavorado com a aproximação do fim de semana. Estava tão apavorado quando a sexta-feira chegou, que tomou o restante do conteúdo da garrafa de uma só vez, antes de ir ao encontro de Aline.

Todo aquele líquido no estômago o fez sentir-se um tanto estranho, mas não fez caso disso. Resoluto, foi para a casa dela, martelando na mente aquele velho mantra: “Seja o que Deus quiser”. No caminho ele se acalmou, e quanto mais pensava em Aline, mais sentia suas calças apertarem. Estava funcionando, pensou entusiasmado. Apressou o passo, pois sentia que não devia perder tempo.

 Mal Aline abriu a porta, Lírio a agarrou. Tal era o seu ímpeto que ela sorriu toda feliz com a reação que tinha provocado no amado. Aquilo dissipava as dúvidas que a estavam incomodando ultimamente, quanto ao que ele sentia por ela. Pelo jeito não ia dar tempo nem para degustar o jantarzinho caprichado que ela havia feito. Isso não a incomodava, é claro. A ordem dos fatores não alterava o produto. e aquela noite prometia.

 Foram atravessando a sala deixando peças de roupa pelo caminho, dando a Lírio a certeza que havia conseguido dissipar o bloqueio que tanto lhe atormentava. Graças à benzedeira. Esse último pensamento o lembrou da promessa não cumprida. Foi aí que tudo desandou. Suas entranhas pareciam estar entrando em colapso, como se tivesse tomado litros de algum laxante. No segundo espasmo sentiu que deveria correr para o banheiro. Antes que desse um passo, veio o terceiro espasmo, e ele percebeu que não havia tempo para mais nada.

Aline olhou para ele perplexa, ainda sem compreender o que estava acontecendo. Depois, tapou o nariz e correu para o banheiro. Lírio ficou só, com sua dignidade esvaindo perna abaixo. Aquilo era o fim, pensou. Mas o fim ainda não havia chegado. A porta da sala se abriu naquele momento atroz, e o pai de Aline entrou para pegar a carteira de motorista que havia esquecido. Felizmente para Lírio, sua desgraça foi também a sua salvação, pois o que seria difícil explicar foi creditado a um mal-estar súbito acarretado pela sua emergência intestinal. Todavia, o namoro com Aline não prosperou. Depois daquele vexame, ele decidiu nunca mais se arriscar com beberagens estranhas e voltou para os braços das feias e mal amadas da ilha.


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