Wednesday, July 22, 2020

Requiescat in Pace - Crônicas da Cidade dos Mortos - Capítulo VIII

Estela levou-me até a saída da Tumba. Parecia querer certificar-se de que eu sairia dali, como se pudesse ser de minha vontade permanecer nos domínios de Belial. Esse seria um desejo pouco provável, depois de presenciar aquela cena terrível de canibalismo ectoplásmico. O triste fim do coveiro ainda ressoava em minha mente, de modo que suspirei aliviado quando me encontrei do lado de fora, a contemplar a silhueta das lápides sepulcrais, recortada pela luz dos postes de iluminação.

Fora da Tumba, em meu pensamento havia somente a face de Berenice. Minha uma ansiedade por encontrá-la beirava a obsessão. Não conseguia mais pensar em qualquer outra coisa e apressei o passo. A chuva já havia parado, mas os relâmpagos ainda teimavam em riscar a escuridão como rastros nervosos de espectros inquietos. O odor do ozônio rompido naquela violência celeste parecia querer anunciar tristes presságios para minha jornada. O medo se insinuava em mim como um fado inevitável. Nesse estado de ânimo senti a presença de Poe. Era como se ele estivesse compartilhando meus temores, talvez por que ele próprio lembrasse de sua Lenora. Este é um pensamento estúpido, eu sei. Devo estar completamente desprovido da razão, mas não me importo.

É assim, desse modo caótico, que recomponho minha alma despedaçada, antes de seguir em direção ao túmulo em que Berenice costuma sentar, para contemplar a noite na necrópole. Em meu íntimo havia um tênue fio de esperança a se insurgir inutilmente contra os maus presságios dessa noite aziaga e triste.

Meu trajeto, embora traçado quase em linha reta, nunca me pareceu tão longo. Eu parecia estar envolto numa bolha temporal, cujo fluxo contrariava a física e seguia num ritmo angustiosamente lento. Aquele era um momento estranho para relembrar a teoria da relatividade, mas minha mente funciona assim. Talvez essa dispersão seja apenas um jeito de lidar com os meus temores, não sei dizer com certeza. Provavelmente deve ter acontecido o mesmo em meu derradeiro momento, quando a minha vida se esvaía pelos ferimentos infligidos pelo coveiro ensandecido. Sobre isso, só posso conjecturar, já que não lembro de nada do que me tenha ocorrido naquela noite fatídica.

Ante a visão do túmulo que eu procurava, invadiu-me a alma um sentimento de pesar tão opressivo que julguei melhor deixar de existir, caso fosse minha essa prerrogativa. Ela não estava sentada sobre a lápide, como eu esperava. Não havia sinal de Berenice entre aquelas sombras sepulcrais. Na verdade, nada havia ali, além do vento que ecoava meu lamento em lúgubres gemidos a evocar o nome dela. Seria esse o tormento legado por minhas almas ancestrais? Uma existência sobrenatural em eterna procura?

Eis que de repente um ruído me põe alerta. Não é o som de passos, mas um par de asas a esvoaçar sobre minha cabeça. Não é minha Berenice, travestida em um anjo sombrio que retorna de algum festim macabro. O que vejo a adejar é um pássaro negro que paira sobre uma cruz, onde finalmente pousa e se deixa ficar, num mutismo insolente. Ele espreita minha agonia. A criatura sem alma parece rir-se de minha aflição. Todavia, não tardei em me dar conta de onde vinha aquela aparição.

Diante de visão tão estranha, que me evocava passagens daquele poema sombrio, quase vejo o vulto atormentado de Poe a recitar inutilmente à ventania o nome de Lenora. Teria ele vindo das profundezas de Hades para compartilhar de minha agonia? Creio que não. Era mais provável que a aparição do pássaro negro apenas tornasse ainda mais evidente uma esperança vã.

Junto com esses pensamentos estranhos, me veio a percepção ridícula de me expressar como se estivesse num poema de Poe. Talvez por isso aquela ave agourenta tenha aparecido. Eu mesmo a havia convocado, em minha insanidade. O real e o imaginário se confundiam em minha mente e era difícil discernir a realidade, se é que realmente existia naquilo que os vivos entendiam como o mundo do além. Às vezes, eu me imaginava ainda vivo e tudo não passava de um construto de minha mente insana. Mesmo assim, ansiava por encontrar Berenice.

Minha procura era inútil, pensei naquele momento. Como tinha acontecido com Poe, tudo que me restava eram suas lembranças e nada mais. Faltava-me, no entanto, ouvir daquela criatura agourenta o triste refrão que ecoaria pela eternidade em minha alma atormentada: Nunca mais! Ele diria, para depois rir de minha triste sina.

Longos minutos se passaram e a ave continuou ali, empoleirada sobrea a cruz e sem desviar o olhar. Nada falou a criatura, mas em minha mente surgiu a ideia do esquecimento. Sim, era esse o recado. O caminho do esquecimento deveria ser a trilha a seguir, ou então entregar-me-ia à danação eterna, que era a espera de um destino que nunca iria se cumprir.

Esse era o estado de minha alma, já quase sem forças para resistir ao fado que se anunciava. No entanto, eu ainda sentia a pequena centelha da esperança, que teimava em resistir. Ela subsistia em algum canto escuro de minha alma. Esse sentimento me acometeu bem no momento em que o ar me pareceu tornar-se mais denso. Numa ira desesperada, atirei o que pude naquela ave agourenta.

— Vá embora, vil criatura! Vá! Estenda suas asas no escuro véu desta noite profana e desapareça.

A ave negra abriu suas asas e alçou voo, enquanto soltava o refrão repetitivo e sinistro. Assim ela lançava seu protesto por ter sido expulsa do seu improvisado poleiro. Por algum tempo voou em círculos, talvez à procura de outra cruz onde pudesse pousar. Depois, como que desistindo do intento, subiu cada vez mais e sumiu nas trevas.

Acompanhei com o olhar o voo incerto do corvo, enquanto ainda podia vê-lo, até que senti o perfume de Berenice. Contive minha ansiedade, temendo ter sido apenas uma impressão, ou uma brincadeira cruel de algum espectro brincalhão. A dúvida só persistiu até o momento em que ouvi sua voz atrás de mim.

— Então, agora deu para atirar pedras em um pássaro indefeso? — Ela perguntou, com um olhar levemente zombeteiro.

Eu me virei de chofre. Meu coração, digamos assim, era de pura alegria. Ela estava diante de mim, surgida não sei de onde. Suas vestes, em tecido diáfano e negro enfatizavam a palidez sobrenatural de sua tez. Estava encantadora como nunca a tinha visto antes. Uma visão digna de ser comparada à Lenora. Esta era a imagem que me era evocada pelo poema de Poe, como ocorria com aquela maldita ave agourenta.

Tal era meu prazer por reencontrá-la, que mal podia articular algum pensamento inteligível. Queria tocá-la, mas me contive, ao relembrar o tormento sentido alguns minutos atrás.

— Um corvo não é exatamente um pássaro indefeso. — Eu disse com azedume, na tentativa de recuperar o domínio de mim mesmo.

— Um corvo? Curioso... Poderia jurar que não há corvos por aqui.

Ela estava certa. Não havia corvos em nossa região. Aquele pássaro errante pareceu vir de um lugar distante, mas aproveitei a deixa para falar do que me angustiava.

— E não há. — Concordei. — Ocorre que ele talvez não seja uma criatura do mundo dos vivos, assim como nós.

Ela parou de sorrir e me olhou séria.

— Então você já sabe?

— Sim. Por que você não me contou?

Sem me responder diretamente, Berenice rodeou o túmulo, como se estivesse escolhendo um lugar para sentar. Eu percebia seu corpo se movimentando sob o tecido fino do vestido e contive a custo o desejo que se insinuava. Como isso era possível? Isto é, não tínhamos uma existência corpórea. Então, como diabos, eu podia sentir o que eu estava sentindo? Ainda não tenho uma resposta satisfatória para isso, mas percebi que o mesmo ocorria com Berenice. Em seus movimentos graciosos, havia uma intenção não declarada de sedução e volúpia. Ela brincava comigo, estabelecendo um jogo de gato e rato, onde não era eu a dar as cartas.

— Este é o meu túmulo. – Ela disse baixinho, sem me olhar.

Era verdade. Na lápide ainda dava para ler uma inscrição em latim: Requiescat in Pace. Logo abaixo conseguia ler parte do seu nome. O resto já estava ilegível, mas algumas ranhuras na pesada tampa de mármore indicavam que ela tinha sido removida muitas vezes. Um sinal claro de sua nova existência após a morte.

— Como aconteceu? — Perguntei.

Antes que ela respondesse, percebi uma sombra de tristeza em seu olhar. Imediatamente maldisse a mim mesmo por ter iniciado aquela conversa.

— Eu fiquei muito tempo aqui, sem compreender plenamente o que tinha acontecido. Apesar de muitas vezes ter desejado, a morte não parecia uma coisa provável de acontecer comigo. Não dessa forma, pelo menos. Eu nem mesmo acreditava em vampiros. Ter sido transformada em um desses monstros sanguessugas não deixa de ser uma ironia do destino, não é?

Eu podia entender o que ela dizia. Eu também não acreditava na vida após a morte, até que comecei a ver e falar com almas penadas. Agora eu era uma delas. Se o destino tem um caráter irônico em suas manifestações, receio que elas sejam permeadas por humor negro nada sutil.

— Creio que sim. — Respondi com sinceridade.

— Você quer saber como eu me tornei uma... vampira? — Ela perguntou, enquanto mostrava os dentes. As presas já não existiam. Quero dizer... Os caninos estavam normais e tudo o que eu via era sua boca tentadora, em uma cômica representação de um rosnado bestial.

— Eu perguntei como você morreu.

— Não é a mesma coisa?

— Há uma diferença semântica, eu acho, mas você tem razão. No fundo é a mesma coisa.

Ela ergueu as pernas sobre o túmulo e abraçou os joelhos. Parecia uma menina desamparada e em nada lembrava a criatura sinistra que eu vi trucidar o coveiro Pé Redondo. Se eu ainda estivesse vivo, talvez pensasse que ela estava tentando me manipular, mas agora isso não fazia o menor sentido. Com os olhos semicerrados, Berenice deu início à sua história.

— Até pouco tempo, eu nem lembrava que tinha morrido. Só percebi isso quando vi você pela primeira vez, não é estranho?

Para mim, tudo ali era estranho, mas me abstive de qualquer comentário. Preferia evitar que ela se dispersasse, pois tive um pressentimento que seria importante conhecer as circunstâncias de sua morte. Eu estava ficando bom nisso de pressentir coisas, mas não tinha certeza se gostava. Não era raro meus pressentimentos me trazerem algum desconforto, para dizer o mínimo.

— Para mim, eu sempre tinha sido uma vampira. Só depois que vi você, eu comecei a lembrar. Em minha vida passada eu era viciada em drogas. — Ela disse, enquanto me fitava atentamente. Parecia se preocupar com a minha reação ou qualquer juízo que eu poderia ter feito.

— Continue. — Eu disse, sem nem mesmo pestanejar.

— Eu fazia parte de um grupo de adolescentes entediados. Um dia, quando estávamos sem dinheiro para comprar cocaína, alguém sugeriu que fizéssemos um assalto. A ideia não me agradou, mas tive vergonha de falar e acabei concordando.

— Você foi uma assaltante? Não consigo imaginá-la com uma arma na mão.

— Eu tinha uma arma de brinquedo, mas o líder daquele bando de perdedores estava armado de verdade. Foi aí que me ferrei. Durante um assalto a uma loja de conveniência, o atendente reagiu. Antes que eu percebesse, ele foi baleado. A polícia chegou e um policial viu a arma de brinquedo em minha mão. Nervoso, ele atirou em mim, mas não me acertou.

Apavorada eu corri e me enfiei numa viela escura. Algumas viaturas passaram por mim, mas eu estava agachada atrás de uma caçamba de entulhos e os policiais não me viram. Depois que eles passaram, eu vi um carro preto estacionado mais atrás. Era um modelo antigo, enorme. Desses que não se fabricam mais. Ele ligou o motor e se aproximou de mim. O motorista abriu a janela e me perguntou se eu queria uma carona.

Ela fez uma pausa e olhou novamente para mim. Parecia esperar algum sinal de reprovação em meu olhar, mas eu apenas lhe sorri.

— Por favor, continue.

— Foi aí que tomei a decisão mais imprudente da minha vida. Eu estava apavorada e aquela carona podia me salvar da polícia. Eu entrei no carro pensando apenas em sair dali, mas o motorista não ligou o motor. Ficou apenas me olhando com uma expressão sinistra. Naquele momento eu percebi que corria perigo e tentei sair, mas a porta do meu lado estava travada. Então ele me atacou. Eu ainda não consigo lembrar de tudo com clareza, mas de sua boca escancarada eu não esqueço. Isso não me sai da cabeça. Enquanto ele sorvia avidamente o meu sangue, eu sentia minha vida se esvaindo também, enquanto eu ouvia meu coração batendo de forma cada vez mais lenta.

Eu morri sentindo muita tristeza. Não pela minha morte em si, mas por minha vida vazia e sem propósito. Acho que eu sempre quis morrer por algum motivo, pois tudo que eu fazia era destrutivo para mim mesma. Somente quando estava morrendo é que compreendi toda a frivolidade em que consistia minha existência. Isso é tudo que me lembro do momento exato de minha morte, além das batidas do meu coração se extinguindo.

Berenice soltou um longo suspiro antes de continuar. Sua voz soava distante e percebi que ela já não estava falando para mim, mas para si mesma. Talvez porque os acontecimentos passados finalmente estavam ao alcance de sua compreensão, acredito.

— Mais tarde eu vi meu corpo deitado num caixão, ali na capela. — Ela disse, apontando a capela do cemitério. — Eu assisti meu próprio velório.

Naquele momento, eu mesmo, ainda não lembrava da minha morte. Acredito que isso seja um processo demorado, que ocorre na medida em que o espírito se liberta e desapega da existência passada. Mas isso é apenas conjectura, é claro. Morrer e desencarnar é uma experiência nova para mim. E, convenhamos, espero que seja única.

— Apesar de tudo, ser morta por um vampiro ainda não foi o pior que me aconteceu. — disse, depois de uma longa pausa. Dessa vez, sua voz soava tão baixinho, que tive dificuldade em compreender o que ela estava falando.

— Aconteceu mais alguma coisa? Não consigo imaginar algo que possa ser pior do que deixar de existir.

Ela me lançou um sorriso triste.

— Eu apenas morri. Não deixei de existir, e nem você.

Era verdade. Minhas convicções materialistas de nada valiam no Além. Só atrapalhavam minha compreensão da existência neste plano.

— Compreendo. — Respondi constrangido.

Ela sorriu novamente e seu olhar me dizia que entendia minhas dificuldades.

— Na noite do velório, quando meus familiares foram embora, o coveiro entrou na capela.

Ao ouvir aquilo e atinar para o seu significado, senti-me profundamente consternado. Eu ainda não sabia que ela também tinha sido vítima da sanha daquele maldito.

— Durante toda a noite ele abusou do meu corpo e eu nada podia fazer. Não tinha domínio sobre a matéria como têm os espíritos mais experientes. Eu gritava para ele parar, mas aquele monstro não me ouvia.

— Você tinha desencarnado algumas horas entes. Ver aquilo acontecer com seu corpo deve ter sido um horror insuportável. Compreendo agora o que você quis dizer.

— Foi grotesco e desesperador. Ele usava meu corpo como se estivesse fazendo aquilo com uma boneca inflável. Tanta injúria... E eu sem poder fazer nada. Como desejei ter alguém que me ajudasse, como fizemos daquela vez em que ele atacou aquela moça.

— Lembro que você o assustou com um tremendo gemido de alma penada. — Eu disse, com uma tentativa canhestra de imitá-la.

Ela riu de minha palhaçada. Quebrar o impacto daquelas lembranças dolorosas era tudo o que eu podia fazer.

— Aquilo foi estranho, mas funcionou. Acho que eu estava tentando impressionar você. No fim, foi o seu gemido que assustou o sujeito.  — Ela disse, com um meio sorriso. Tive a impressão que estava tentando ocultar os caninos.

— Você não é mais uma vampira.

— Eu sei. Acho que é força do hábito. — Ela disse, passando a língua pelos dentes. — Aquele coveiro infernal foi minha última vítima.

Quanto ódio senti daquela cria dos infernos naquele momento. Nem mesmo o fato de ter testemunhado sua execução espiritual conseguiu aplacar minha ira.

— Lamento não ter podido ajudar você.

— Nem poderia, meu querido. Você era um menino.

— Como assim? Sou mais velho que você.

Ela voltou a rir. Dessa vez, meu papel de tolo era involuntário, mas logo descobri o porquê.

— Isso aconteceu há trinta anos atrás, pelo tempo do mundo dos vivos. Mesmo que quisesse, você nada poderia fazer. Provavelmente nem entraria no cemitério à noite, não é?

  Acho que não. Naquela época eu ainda tinha medo de almas penadas.

— Mas você as via...

— Não naquele tempo. Eu apenas as imaginava, depois de assistir algum filme de terror.

— Você pensava estar imaginando, mas via coisas que os outros não viam.

— Sim. Mas ninguém nunca acreditou nisso. Eu mesmo nunca acreditei que aquilo fosse real. Depois as visões sumiram e eu esqueci de tudo, até que comecei a trabalhar aqui.

De repente me dei conta do que ela tinha falado

— Como você sabe disso? Eu nunca falei dessas coisas para ninguém

Ela enlaçou meu pescoço e me deu o beijo mais doce que eu poderia sonhar. Nada poderia traduzir a emoção que eu sentia naquele momento.

— Não sei responder isso. Não lembro de minha existência terrena, mas acho que já nos conhecíamos antes de minha morte.

Isso explica algumas coisas para mim. Berenice me lembrou alguém, desde o momento em que a vi. Eu tinha uma vaga lembrança de uma garota que morava do outro lado da rua onde eu vivia quando criança. Lembro que ela era bem mais velha que eu, mas sempre me olhava à distância. Apesar de nunca nos falarmos, eu sonhava com ela.

— Por que nunca tentou falar comigo?

— Depois que fui atacada pelo vampiro? Minhas lembranças de quando eu era viva logo desapareceram. Eu havia me transformado em outra criatura e teria assustado você, ou coisa pior.

— Foi melhor assim.

— Foi?

— Foi. Eu já lidava com aqueles fantasmas agonizantes e ameaçadores que sempre me importunavam. Uma vampira ia ser um pouco demais para mim.

Ela riu e me abraçou. Assim foi durante toda a noite e os dias e noites que se seguiram. Novamente o tempo nos deixava a sós para manifestarmos aquilo que nos unia. Em algum momento imaginei que havia magia em tudo o que estava acontecendo e temi que ela pudesse acabar. Creio que os românticos, de um modo geral, não existiriam sem uma boa dose de fatalismo a acompanhar seus arroubos emocionais. No meu caso, tudo era novo. Trilhava caminhos que nunca havia percorrido. Quero dizer, nunca os tinha percorrido a partir da minha vida anterior. De outras vidas eu não lembrava e nada sabia do que estava por vir. Era difícil não pensar na possibilidade de alguma entidade sombria pular de repente em meu pescoço, como poderia ter feito o fantasma daquele coveiro maldito.

Em algum momento, quando passeávamos entre os túmulos, me ocorreu abordar algo que eu quase havia esquecido, mas parecia importante saber.

—Estela me disse que você se recusava a acreditar que havia morrido. Também disse que você parecia estar esperando por algo.

— Um vampiro não está exatamente morto. Mas também não está vivo, não é? Eu existia entre dois mundos e era imortal. Não é uma existência ruim, se você puder se manter longe da culpa pelas mortes que provoca. Mas o que mais incomoda é a solidão e o imenso vazio existencial.

— Você se sentia culpada?

— Sim, no começo. Depois desencanei. Os homens são predadores de si mesmos e não merecem muita consideração.

— Não imaginei que vampiros pudessem ter crises existenciais. Até pensei em me tornar um.

Ela me olhou de um modo muito estranho e pensativo.

— Porque diabos você pensou em se tornar deliberadamente um monstro?

— Para ficar com você.

— Entendo. Então foi bom você ter morrido antes disso acontecer. Ter me tornado um vampiro não foi uma coisa boa, acredite.

— Mas você disse...

— Eu sei o que disse, mas lembre-se que isso não foi minha escolha. Minha humanidade me foi arrancada e eu tive que me adaptar ou ficar louca. Eu jamais faria isso com você.

— Por isso se afastou?

— Sim. Eu temia não resistir ao meu instinto bestial.

— De qualquer modo eu morri. — Respondi. Ainda não sabia onde ela queria chegar.

— Sim. Você morreu, mas conservou sua alma intacta. Você não foi corrompido. Quando percebi sua morte, eu vi que meu dilema havia sido solucionado. Nós podíamos ficar juntos, afinal.

— Por isso você renunciou à imortalidade? — Perguntei, evitando usar o termo suicídio. Talvez isso não se aplicasse a um vampiro, uma vez que tecnicamente ela já estava morta.

— Sim. Agora nós somos iguais. Duas almas penadas. Agora podemos seguir adiante juntos.

Aquelas palavras me deixaram inquieto. Normalmente eu não gostava muito de surpresas. Infelizmente o mundo do Além parecia ter um estoque interminável delas. Sempre pensei que a vida após a morte significasse o descanso eterno, como constava dos prospectos das funerárias, mas pelo jeito, precisava rever meus conceitos.

Embora soubesse que não iria gostar da resposta, eu fiz a pergunta.

— Seguir adiante? Para onde podemos ir? Para mim, estamos bem aqui.

Ela me brindou novamente com aquele sorriso lindo, mas dessa vez sua expressão era de uma mãe tentando ensinar alguns dos segredos da vida ao filho. No caso, era da vida além-túmulo, mas pouco importava. Ela estava sendo condescendente e aquilo não me agradou. Sempre tinha sido desconfortável para eu descobrir que ignorava algo que deveria saber, e que outros já sabiam. Minha vida, segundo eu ainda lembrava, tinha sido repleta dessas situações.

— Temos uma jornada a cumprir. — Ela disse. — Devemos fazer isso juntos, daqui por diante.

Acho que consegui suspirar aliviado. Aquilo não era ruim. Fosse qual fosse a jornada, estaríamos juntos, pelo menos. Todavia, eu sabia que as coisas nunca seriam fáceis para mim, como nunca foram em vida. Sempre havia algo para azedar o meu leite, como eu não tardaria em confirmar.


 


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